sexta-feira, janeiro 30, 2015

A vida durante a guerra, de Todd Solondz


Durante alguns anos, o diretor Todd Solodndz foi uma espécie de cronista da podridão da classe média norte-americana. Filmes como “Bem vindo à casa de boneca” (1995), “Felicidade” (1997) e “Histórias proibidas” (2001) destilavam raiva e ironia ácida em relação às hipocrisias e idiossincrasias morais da sociedade ocidental. Além da temática, podia-se perceber em tais filmes um homogêneo padrão estético e narrativo – apesar de revolver os recônditos obscuros do comportamento humano e de eventuais quedas para o escatológico, Solondz contrastava com direção de fotografia luminosa, direção de arte asséptica e uma edição clássica e sem enfeites. O resultado final conseguia simultaneamente ser envolvente e perturbador. “A vida durante a guerra” (2009), espécie de continuação de “Felicidade”, retoma os traços característicos do estilo de Solondz, mas sem o mesmo impacto sensorial de antes. Talvez porque a atmosfera do filme tenha um viés mais melancólico. É claro que aquela propensão para a sátira e o choque pontua com freqüência a trama, mas o roteiro também se permite alguns momentos de amarga serenidade, em que dá para ser perceber até uma postura de mais compaixão para os seus personagens. Assim, “A vida durante a guerra” acaba marcando uma espécie de discreto amadurecimento para a amarga visão de mundo que permeava “Felicidade”.

quinta-feira, janeiro 29, 2015

Ida, de Pawel Pawlikowski **1/2


A direção de fotografia de “Ida” (2013) é tão boa que dá vontade de fazer um álbum de fotos com alguns dos enquadramentos do filme, realmente notáveis em termos de composição cênica, iluminação e textura do preto-e-branco. Esse apuro estético nas tomadas, entretanto, não encontra equivalência no ritmo narrativo e no roteiro da produção. As concepções artísticas do diretor Pawel Pawlikowski sofrem de uma assepsia formal e falta de imaginação que acabam beirando o enfadonho. É provável que a intenção do cineasta fosse de que a frieza de sua abordagem, aliada a uma atmosfera de distanciamento emocional, buscasse uma sobriedade necessária para que a obra não caísse em excessos melodramáticos. Todo esse rigor, todavia, acaba se revelando equivocado, pois “Ida” é um filme condicionado a uma fórmula narrativa previsível e desgastada. O encadeamento da trama obedece a mecanismos convencionais, em que poucas vezes se pode perceber alguma vida criativa. Por mais que se pretenda como uma visão adulta sobre fatos complexos derivados da 2ª Guerra, obedece a uma lógica moralista e maniqueísta. O que dizer, por exemplo, da solução de que a personagem que bebe, fuma e trepa adoidada durante o filme na realidade faz tudo isso porque tem o trauma de um filho assassinado na infância e cuja saída final é o suicídio? Ok, essa pretensão de seriedade e superficial bom gosto até pode render alguns frutos momentâneos (tipo indicação a Oscar ou a algum outro prêmio), mas, do jeito que ficou, dificilmente vai ser considerado uma efetiva experiência cinematográfica memorável e estimulante.

quarta-feira, janeiro 28, 2015

Jersey Boys - Em busca da música, de Clint Eastwood ***1/2


O envolvimento de Clint Eastwood com música não é de hoje. Pianista e grande fã de jazz, ele já havia dirigido algumas obras expressivas relacionados a tal temática, como a cinebiografia “Bird” (1988) e o documentário “Piano Blues” (2003). De certa forma, “Jersey Boys – Em busca da música” (2014) pode parecer uma natural extensão desse apreço. Ainda sim, há alguns elementos que evidenciam a capacidade do veterano cineasta de ainda surpreender. O primeiro deles seria de que Eastwood sempre foi um tradicionalista na sua devoção pelo cancioneiro dos Estados Unidos – suas preferências declaradas são o jazz e o blues, além de nutrir uma antipatia em relação ao rock e ao pop. Só que em “Jersey Boys” o foco está justamente na trajetória de Frankie Valli & The Four Seasons, uma banda dos anos 60 cuja música era uma mescla de soul, rhythm and blues e rock and roll. Também foge do habitual do diretor o formato escolhido para contar a sua história: um misto de drama real, musical e filme de gângster, adaptando uma peça da Broadway sobre o grupo biografado. Apesar dessas atipicidades, prevalece a habitual classe de Eastwood para filmar, com ele sabendo conciliar com maestria tanto uma encenação de tons realistas com momentos de estilização narrativa, metalinguagem e números musicais. O resultado é uma obra de vigor narrativo esfuziante, capaz de fazer um retrato apaixonado e esclarecedor sobre os bastidores de criação e gravação de algumas das mais belas canções da música popular do século XX. O filme peca apenas em algumas cenas domésticas banais que revolvem clichês manjados sobre o dilema “sucesso artístico versus infelicidade familiar”. No mais, pode até parecer forçado fazer uma comparação, mas acaba sendo irresistível: enquanto “Tim Maia” (2013) é uma produção que diminui a importância artística de seu biografado e o transforma num junkie mala que de vez cantava ou compunha, “Jersey Boys” é uma obra que dá uma baita fissura em sair correndo para escutar as pérolas musicais de Frankie Valli & The Four Seasons.

terça-feira, janeiro 27, 2015

Um milhão de maneiras de pegar na pistola, de Seth MacFarlane *1/2



É provável que tanto os fãs do seriado televisivo “The Family Guy” quanto aqueles que curtiram muito “Ted” (2012), ambos criações do diretor e roteirista Seth MacFarlane, terão uma baita decepção ao assistir “Um milhão de maneiras de pegar na pistola” (2014). A premissa da produção até que é interessante: tirar um sarro com os clichês e a aura mítica do gênero dos faroestes. Por vezes, dá para perceber algumas boas sacadas irônicas de MacFarlane nesse processo de dessacralização. O que prejudica tais boas intenções, entretanto, é uma formatação equivocada ao extremo – o espectador tem a constante impressão de que está assistindo a uma longa apresentação de stand up por parte de MacFarlane, tendo como cenários paisagens e cidades poeirentas, locais típicos de um “bangue-bangue”. Tal escolha do diretor traz sérios prejuízos ao ritmo narrativo de seu filme, tirando qualquer traço de fluência e naturalidade. Em algumas sequências, surge um eventual rasgo de boa comédia, com uma abordagem oscilando entre o delirante e o escatológico. Mas no geral o que predomina é uma verborragia irritante de MacFarlane em piadas e comentários pretensamente ácidos e de resultados cômicos pífios.

segunda-feira, janeiro 26, 2015

As aventuras do avião vermelho, de Frederico Pinto e José Maia **1/2


Entender o atual contexto em que “As aventuras do avião vermelho” (2012) está sendo lançado é importante não só para o analisar, mas também para poder embarcar na viagem estética dos diretores Frederico Pinto e José Maia. Em um momento em que a grande maioria das produções de animação envereda para o digital e o 3D, o filme em questão parece se aninhar com convicção num obscuro recôndito anacrônico. E faz isso não por preguiça criativa – os realizadores expressam em suas escolhas formais e temáticas um carinho especial por certos quesitos artísticos fora de moda. Essa aproximação com concepções “fora do tempo e do espaço” aflora um certo caráter contestatório por parte dos diretores. E esse caminho não se dá sem percalços. A base do roteiro é um livro infantil de Érico Veríssimo, mas a adaptação não se preocupa em ser totalmente fiel ao original. O roteiro se permite algumas atualizações e liberdades, com direito a observações críticas sobre aspectos atuais da educação infantil, sem que com isso deixar de preservar a essência da obra literária. Nesse viés, o traço simples e expressivo que marca a concepção estética do filme, distante do realismo típico do 3D, bem como o leve tom ingênuo da trama revelam sintonia com o livro de Veríssimo. Os cineastas ainda se permitem algumas ousadias ao dar uma ambiência delirante para algumas passagens. O que faz com que “As aventuras do avião” não pegue na veia com seu resultado final é a dificuldade de estabelecer uma narrativa fluida, natural – o ritmo por vezes é trôpego, em outros momentos um tanto apressado, fazendo com que as coisas caiam no enfadonho em determinados momentos. Ou seja, há várias boas ideias e sacadas visuais que se revelam instigantes isoladas, mas que não resultam num todo satisfatório. Ainda sim, as inquietações artísticas dessa animação a tornam um trabalho que merece atenção.

sexta-feira, janeiro 23, 2015

Os pinguins de Madagascar, de Simon J. Smith e Eric Darnell **


Dentro das franquias de animação que aparecem atualmente nos cinemas, a de “Madagascar” é uma das menos expressivas em termos artísticos, pouco fugindo da fórmula “bichos fofinhos, referências engraçadinhas e números musicais coloridinhos”. Uma das poucas coisas efetivamente engraçadas e marcantes que havia nos filmes em questão era o grupo de pinguins alucinados, beirando o psicótico, que apareciam em alguns momentos. Dava até vontade de ver um filme só com eles. Os produtores da série parecem que compartilharam da mesma impressão e tiveram a sacada mercadológica de colocar tal ideia em prática. O resultado final, entretanto, é decepcionante. “Os pinguins de Madagascar” (2014), ainda que usufrua do carisma de seus protagonistas, padece da mesma anemia criativa da série da qual se originou. O potencial de esquisitice e ironia dos pinguins é explorado de forma pouco criativa, com os realizadores se contentando com as soluções rotineiras de sempre. Não há, por exemplo, o grafismo exuberante e a tensão dramática de “Operação Big Hero” (2014), mas apenas um desfile burocrático de fofices e piadinha (algumas poucas engraçadas, e boa parte delas nem tanto...).

quinta-feira, janeiro 22, 2015

Livre, de Jean-Marc Valée **1/2


Certas escolhas formais e temáticas em um filme podem sugerir ousadia e maturidade por parte daqueles que se envolveram na realização, no sentido de que eles se afastam de critérios comerciais ou de mero entretenimento para oferecer às platéias um espetáculo mais profundo e questionador. Por vezes, entretanto, tal direcionamento artístico mais revela uma busca por credibilidade do que um desejo em trilhar caminhos menos óbvios. E é dentro dessa segunda alternativa que “Livre” (2014) parece melhor se encaixar. A caracterização pretensamente desglamourizada de Reese Witherspoon no papel da protagonista Cheryl Strayed, a encenação naturalista, a evocação de um estilo documental na estética e a relação de temas adultos na trama (famílias disfuncionais, drogas, promiscuidade sexual, redenção e afins), em um primeiro momento, dão a impressão de uma abordagem desafiadora por parte do diretor Jean-Marc Valée, mas a forma com que a narrativa se desenvolve evidencia um convencionalismo banal, que nivela o filme naquele nicho de dramas de superação pessoal que o pessoal que escolhe os indicados para o Oscar tanto gosta. Não adianta mostrar Witherspoon sem maquiagem e com as unhas caindo se a cada cinco minutos tem alguém proferindo uma lição de vida no puro estilo autoajuda ou ter à disposição belos cenários naturais se o registro visual adotado dá a impressão de um cartão postal ambulante. Falta aquela centelha criativa e espontânea que tornaria “Livre” uma experiência sensorial mais efetiva.

quarta-feira, janeiro 21, 2015

Um amor em Paris, de Marc Fitoussi **1/2


O cinema francês cada vez mais se formata a padrões de narrativa que se adaptam a um denominador comum universal, a um ponto que seus aspectos de identidade cultural e artística fiquem difusos. Nesse sentido, “Um amor em Paris” (2014) é uma obra emblemática de tal tendência– quantas obras recentes da França o espectador já viu versando sobre mulheres de meia-idade (ou mesmo na velhice) em crise existencial no casamento? Há algumas décadas, tal temática receberia uma abordagem mais contundente por parte dos cineastas franceses. Hoje em dia, entretanto, como no filme em questão do diretor Marc Fitoussi, o registro é suavizado, agridoce, beirando até em termos estéticos e textuais algumas convenções de genéricas comédias românticas norte-americanas. É de se convir que Fitoussi não se converte totalmente para tais concepções artísticas. Afinal, por vezes dá para se observar um cuidado formal diferenciado na composição de algumas tomadas, além da dupla de protagonistas Isabelle Huppert e Jean-Pierre Darroussin terem estofo dramático suficiente para darem um impacto consistente para algumas cenas.

terça-feira, janeiro 20, 2015

Uma longa viagem, de Jonathan Teplitzky **


Ser acadêmico não é um demérito por si só para um filme. Os filmes do diretor britânico David Lean, por exemplo, possuíam tal atributo e nem por isso podem ser considerados produções descartáveis e sem personalidade – pelo contrário, eram trabalhos vigorosos e memoráveis, sendo que alguns até se tornaram verdadeiros clássicos cinematográficos. O que incomoda em um trabalho como “Uma longa viagem” (2013) é um academicismo rançoso: tudo está no lugar direitinho, os aspectos formais se configuram competentes em sua execução, mas não há brilho, convicção, na forma com que o diretor Jonathan Teplitzky conduz a narrativa. Mesmo o elenco, contando com nomes expressivos, não consegue se salvar diante da pasmaceira das concepções estéticas de Teplitzly, contentando-se com registros entre o apagado e o canastrão. Por vezes, até se pode sentir o potencial da obra, principalmente nas sequências de flashback, em que alguns momentos de brutalidade e tensão trazem alguma densidade dramática e impacto visual para o espectador. Acaba sendo pouco, entretanto, para tirar a produção do lugar comum e do previsível.

segunda-feira, janeiro 19, 2015

As duas faces de janeiro, de Hossein Amini ***


Os livros da escritora Patricia Highsmith costumam ser adaptados para o cinema com relativa freqüência. Dentre tais versões cinematográficas, destaque absoluto para as obras-primas “O sol por testemunha” (1960) e “O amigo americano” (1977). “As duas faces de janeiro” (2014) está bem longe do padrão de qualidade artística dos clássicos mencionados anteriormente, mas mesmo assim é uma obra que se mostra em sintonia existencial com a essência de Highsmith. Isso ocorre porque o diretor Hossein Amini consegue preservar com fidelidade considerável aquela característica atmosfera de ambiguidade moral que permeia o universo da escritora. Além disso, algumas boas sacadas da trama são bem exploradas no desenvolvimento do roteiro– o fato da história se desenrolar na Grécia não é gratuito, tendo em vista a narrativa ter uma dinâmica que alude a uma espécie de conto moral típico das tragédias gregas. A relação dúbia de competição e admiração entre os escroques Chester (Viggo Mortensen) e Rydal (Oscar Isaac) guarda uma simbologia óbvia, mas de resultados de tensão dramática até bem eficientes. No mais, o registro visual dos belos cenários de ruínas e cidades históricas da Grécia não guardam apenas um caráter de “cartão postal”, adquirindo uma função narrativa importante ao caracterizar uma ambiência de mistério e decadência que torna o clima de suspense mais sufocante para os personagens.

sexta-feira, janeiro 16, 2015

Cine Holliúdy, de Halder Gomes *


De certa forma, é fácil simpatizar com “Cine Holliúdy” (2012). Há um misto de ingenuidade e honestidade tanto no roteiro do filme quanto na forma com que o diretor Halder Gomes conduz a narrativa. Além disso, a produção faz questão de ressaltar seu regionalismo particular, o que se evidencia nos diálogos repletos de expressões e neologismos que configuram quase um dialeto próprio (o que tornam necessárias legendas permanentes) e em algumas situações da trama. Esses elementos idiossincráticos, aliados a algumas insólitas referências à cultura pop e ao carisma natural de parte do elenco, por vezes até garantem alguns momentos de graça espontânea para a obra, mas também são incapazes de por si só garantirem o equilíbrio da narrativa. A encenação histriônica elaborada pelo diretor e o excessivo tom mambembe e amadorístico da maioria das passagens de “Cine Holliúdy” o tornam um trabalho enfadonho, reduzindo o destino da obra a ser encarada como uma mera curiosidade exótica do cinema nacional do que propriamente um trabalho interessante.

quinta-feira, janeiro 15, 2015

Operação Big Hero, Don Hall ***1/2


O fato de “Operação Big Hero” (2014) ser a primeira adaptação de uma série da Marvel realizada pelos Estúdios Disney não representa apenas uma nota informativa dispensável de release. Tal animação traz boa parte dos ingredientes característicos do gênero aventura com super-heróis, e é de se ressaltar que tais elementos se combinam com extraordinárias harmonia e convicção. O detalhismo e a beleza do traço, marcado por um extraordinário misto de realismo e estilização, impressionam pelo seu impacto imagético, sendo que combinados com o dinâmico senso de narrativa do diretor Don Hall resultam numa das melhores transições recentes dos comics para a tela grande. É de se ressaltar ainda que colabora para isso um roteiro cujos motes centrais são bem trabalhados e que cujos principais personagens são fortemente carismáticos, com destaque especial para o robô herói Baymax, figura de um encanto notável. Talvez “Operação Big Hero” não se enquadre naquele nível “obra-prima da animação de aventura” de “Os incríveis” (2004) por uma questão mercadológica – o fato da produção ser destinada também ao público infantil faz com que a trama e narrativa não sejam tão enxutas (há situações e personagens histriônicos em excesso), impedindo também que por vezes o filme não atinja o devido grau de dramaticidade. Ainda sim, “Operação Big Hero” é uma obra bastante acima da média do que tem sido feito na linha das animações infanto-juvenis e repleta de sequências antológicas.

quarta-feira, janeiro 14, 2015

Para sempre teu Caio F., de Candé Salles *


O diretor Candé Salles tinha tudo para fazer de “Para sempre teu Caio F.” (2014) uma cinebiografia relevante: uma temática interessante, farto material de arquivo (tanto em fotografias quanto em audiovisuais), uma gama considerável de artistas e personalidades interessantes para falar sobre o biografado, recursos consideráveis de produção oriundos do Canal Brasil. Sua mão pesada na direção e escolhas equivocadas em termos narrativos, entretanto, fazem de seu documentário um dos piores filmes a aparecerem nos últimos anos em nossas telas. Para começar, Salles parece sempre fazer questão de deixar claro que é um grande admirador da obra de Caio Fernando Abreu. Tal apreço faz com que ele cometa um equívoco gigantesco ao transformar o documentário numa insossa hagiografia, em que inúmeros trechos de entrevistas se limitam a exaltar a genialidade de Caio como escritor e sua gentileza como ser humano. Não há tensão ou profundidade em tal abordagem. Para piorar, a estrutura narrativa da produção é sem imaginação, pouco ousada mesmo, limitando-se a um tom que oscila entre o didatismo burocrático e o sentimentalismo rasteiro, dando a tudo uma cara de um grande vídeo institucional. Além disso, Salles recorre a alguns truques que raramente resultam em algo memorável, desde fotogênicos e deslocados atores e atrizes globais a proferirem de forma afetada trechos de obras de Caio até recriações dramáticas patéticas de momentos importantes na vida do escritor. Por que não pegar artistas viscerais como Grace Gianoukas, efetivamente mais identificada com a obra e vida do escritor, para fazer as referidas leituras? E por que perder tempo com recriações dramáticas pueris quando se tem em mãos um material audiovisual tão rico com o próprio biografado em ação? Talvez as respostas para tais indagações estejam no desejo de Salles de ter realizado um filme para já convertidos não tão exigentes ao universo de Caio Fernando Abreu. Afinal, do jeito que ficou “Para sempre teu Caio F.”, dificilmente não iniciados se sentirão atraídos em procurar algum livro do biografado em questão.

terça-feira, janeiro 13, 2015

Vizinhos, de Nicholas Stoller ***


O diretor Nicholas Stoller é um nome que merece que se preste atenção no atual panorama das comédias. Em sua cinematografia, pode-se perceber um discreto toque autoral, ainda que dentro de uma formatação tradicional do estilo cômico norte-americano contemporâneo. Há os habituais truques do gênero: pastelão, exageros, escatologias. Existe também, entretanto, um sutil subtexto no questionamento de como as coisas funcionam em termos intimistas e culturais na sociedade dos Estados Unidos (e, por tabela, de boa parte da sociedade ocidental). Todos esses preceitos se cristalizam com clareza em “Vizinhos” (2014). A trama é básica no seu conflito – um casal de classe média na faixa dos 30 anos e com uma filha recém-nascida entra em fortes atritos com uma fraternidade de universitários que se mudou para a casa ao lado, o que deflagra situações que variam entre o sórdido e o francamente nojento, a maioria delas bem divertida. Ao mesmo tempo, algumas nuances do roteiro revelam uma visão ácida e sarcástica sobre questões prementes da sociedade moderna como a hipocrisia social, a pretensa maturidade dos “jovens adultos” e a pressão sobre a juventude da necessidade de ser bem sucedido economicamente. É claro que as resoluções estéticas e temáticas de Stoller não são tão radicais, afinal se trata de uma produção “made in Hollywood”. Ainda assim, “Vizinhos” se mostra um trabalho muito mais afiado em termos de crítica social do que muito filme dito “sério” ou “profundo”.

segunda-feira, janeiro 12, 2015

Acima das nuvens, de Olivier Assayas ***1/2


Quando Stanley Kubrick chamou Tom Cruise para protagonizar “De olhos bem fechados” (1999), o estranhamento foi grande para boa parte de público e crítica. Afinal, o que um dos maiores mestres da história do cinema queria com um mero galã no papel principal de sua produção? A grande sacada do genial cineasta, entretanto, estava na utilização da persona de grande astro de Cruise como material dramático na composição da narrativa e atmosfera de seu filme. De certa forma, o diretor francês Olivier Assayas usa um expediente semelhante em “Acima das nuvens” (2014) – tanto a personagem da consagrada Juliette Binoche quanto a da jovem estrela em ascensão Chloë Grace Moretz parecem reflexos das atrizes que as interpretam, havendo uma contundente relação de contraponto entre elas. Como mediadora, surge a figura de Valentine (Kristen Stewart), que serve como uma espécie de consciência do filme. A atuação de Stewart é surpreendente dada a complexidade e crueza que o papel exige – num registro desglamorizado e contido, numa condição de observadora, ela apresenta uma visão lúcida dos dilemas e conflitos que permeiam a trama de “Acima das nuvens”. Assayas também adota uma abordagem estética insólita, mas que está em perfeita sintonia com a essência de sua temática, um ácido questionamento sobre a natureza daquilo que é considerado “arte” ou não. Nesse sentido, a estrutura narrativa evoca uma espécie de pastiche daqueles dramas existenciais europeus – as seqüências naquela casa de campo encravada no interior montanhoso da Suíça parecem um decalque de alguns momentos marcantes de produções dirigidas por Ingmar Bergman. Mais que mera reciclagem, tal formalismo tem um caráter irônico na sua intenção iconoclasta de questionamento de ortodoxias e preconceitos artísticos.

sexta-feira, janeiro 09, 2015

O passado, de Asghar Farhadi ***


Pode-se perceber dentro das concepções estéticas e temáticas do diretor iraniano Asghar Farhadi um padrão artístico constante. Assim como em “A separação” (2010), “O passado” se desenvolve por uma estrutura narrativa bem definida: vincula-se ao gênero melodrama, mas com uma abordagem formal sóbria, sem grandes arroubos barrocos, transparecendo um distanciamento emocional na ambiência intimista de sua trama. Nesse filme mais recente, entretanto, essa equação acaba tendo um desenvolvimento mais irregular, culpa de um roteiro que por vezes se perde em detalhes novelescos de suas nuances. Devido a isso,, algumas situações e personagens apresentam uma carga dramática mais derramada. Não há aquela síntese narrativa mais precisa e seca, beirando a crueldade, de “A separação”. Ainda sim, “O passado” é uma produção que se reveste de interesse, principalmente pela direção elegante de Farhadi e por algumas atuações seguras e contidas de parte do elenco.

quinta-feira, janeiro 08, 2015

A família Bélier, de Eric Lartigau **


Parte da produção cinematográfica da França vem passando por um processo semelhante com o que vem acontecendo com o cinema argentino: em nome de um palatável padrão de “qualidade” artística, tais obras se descaracterizam de uma identidade própria. Seu pretenso universalismo apenas torna tais produções derivativas – se fossem faladas em inglês, passariam tranqüilos como um rotineiro filme norte-americano. É o caso justamente de “A família Bélier” (2013). É claro que os cenários campestres e alguns elementos culturais trazem algo de diferente para a obra do diretor Eric Lartigau. Os conflitos de sua temática, a estrutura narrativa e o seu formalismo, entretanto, evocam um cinema genérico. Pode ser até ser agradável e divertido em alguns momentos, mas o misto de drama de superação e comédia pastelão dá aquela impressão constante de algo fácil de ver e de esquecer. O que é uma pena, pois mesmo com uma trama permeada de clichês havia potencial para um resultado final mais contundente e memorável, o que se evidencia na qualidade dramática de alguns nomes do elenco e na beleza dos números musicais.

quarta-feira, janeiro 07, 2015

Todos os dias, de Michael Winterbottom ****



Em A festa nunca termina (2002), obra que recriava o auge criativo e comercial da gravadora inglesa Factory no período do final da década de 70 até a primeira metade dos anos 90, o diretor Michael Winterbottom acabou fazendo também por tabela um retrato de uma geração mergulhada tanto em um asfixiante vazio existencial quanto em puro hedonismo. Já Nove Canções (2004) se apresentava como uma espécie de espelho comportamental do começo do novo milênio – ao contar a trajetória de um relacionamento amoroso, em meio a seqüências de sexo explícito e de apresentações roqueiras em clubes noturnos, a obra refletia a esterilidade emocional dos “jovens adultos” da sociedade ocidental. Dentro dessa progressão temática, Winterbottom surpreende com uma obra de contraponto, Todos os dias (2012), cuja trama faz uma expressiva celebração da vida familiar. Cabe ressaltar, entretanto, que esse elogio não se efetiva por caminhos óbvios ou meramente moralistas. O cineasta parece tomar como principal referência estética A árvore dos tamancos (1978), obra-prima do realismo poético de Ermano Olmi que focava o cotidiano de camponeses italianos ao som da música celestial de Bach. No filme de Winterbottom, a premissa principal da trama está no dia-a-dia de uma família no interior da Inglaterra cujo pai se encontra preso. Para enfatizar o naturalismo de sua abordagem, o diretor filmou ao longo de cinco anos com os mesmos atores nos principais papeis, sendo que as quatro crianças que fazem parte da família são realmente irmãos na vida real. Tais opções de encenação de Winterbottom acabam se revelando fundamentais para a composição dramática do filme.

Num primeiro momento, a secura do registro visual de Todos os dias, beirando o documental, pode até sugerir um certo distanciamento emocional. Com o desenrolar do roteiro, entretanto, a produção vai ganhando uma amplitude artística muito maior. Winterbottom utiliza alguns truques narrativos e estéticos simples, mas bastante eficientes. As tomadas nas prisões, tanto nas visitas dos familiares quanto na exposição da rotina sufocante do patriarca Ian (John Simm) no confinamento, apresentam uma perturbadora atmosfera asséptica e fria. Nas demais cenas, a abordagem é completamente contrastante, com destaque para os grandes planos a retratar a região rural onde a família de Ian reside. A associação das paisagens de campos verdejantes e praias de uma beleza melancólica, em boa parte das oportunidades permeadas de animais pastando e crianças brincando, à impressionista música de Michael Nyman cria um efeito sensorial que emana uma beatitude contundente. E é aí que reside um dos grandes méritos de Todos os dias, em que a combinação intrínseca de religiosidade e humanismo de sua história e concepção estética não descamba para o discurso conservador obtuso e nem para uma formatação de melodrama “água com açucar” e despersonalizado, mas sim para uma narrativa de ritmo fluido e que de forma sutil imprime um olhar generoso e livre de julgamentos morais. A singeleza tocante da seqüência final, com a família enfim reunida com o pai e caminhando à beira-mar, é a síntese extraordinária do ideário artístico e existencial que Winterbottom oferece para a sua obra.

terça-feira, janeiro 06, 2015

Êxodo: Deuses e reis, de Ridley Scott **1/2


No estranho misto de ficção científica e conto gótico de horror de “Prometheus” (2012) e no policial de ambiências rarefeitas “O conselheiro do crime” (2013), o diretor Ridley Scott buscou caminhos inesperados para o seu cinema, desviando com habilidade de boa parte dos clichês narrativos que por vezes vinham impregnando seus filmes anteriores. Tal ousadia rendeu alguns narizes torcidos por parte de público e crítica. Assim, “Êxodo: Deuses e reis” (2014) é a volta de Scott a concepções formais mais digeríveis, assim como marca o seu retorno a um gênero no qual já havia enveredado, o dos filmes de época épicos (vide “Gladiador” e “Cruzadas”). Talvez a novidade seja que o cineasta agora busque inspiração em episódios bíblicos. Nesse sentido, dá para dizer que há um diferencial nessa nova versão cinematográfica da vida de Moisés em relação ao clássico “Os dez mandamentos” (1956) de Cecil B. DeMille: Scott realmente procurou adaptar a história para um tipo de abordagem mais contemporânea. Assim, o Moisés (Christian Bale) dessa nova adaptação é quase um super-herói guerreiro, uma espécie de misto do Maximus de “Gladiador” (2000) e Batman. Há uma grande ênfase no detalhismo gráfico das cenas de batalha, caracterizações dramáticas caricaturizadas, temas musicais ostensivos beirando o barulhento. Ou seja, a sutileza passa longe daqui... As escolhas estéticas de Scott por vezes são eficientes e divertem como entretenimento, mas no geral dão origem a uma obra genérica e pouco memorável. Esse tratamento artístico acaba deixando de lado alguns aspectos interessantes e até intrigantes de “Êxodo”. O maior deles é a forma como Deus é retratado na trama, na figura de uma criança com rompantes vingativos e cruéis, cujos desígnios beiram o capricho, o que provoca dúvidas existenciais que atormentam Moisés. Scott poderia ter explorado mais esse lado contraditório da natureza das intenções divinas e os consequentes questionamentos de seu protagonista (guardada às devidas proporções, tal dilema faz lembrar o cerne da obra-prima “A última tentação de Cristo” de Martin Scorsese). O diretor preferiu, entretanto, reduzir tal dubiedade e se concentrar no simples espetáculo moralista. Aliás, não é curioso que em 2014, ano marcado pelo maior endurecimento da política de ocupação e repressão dos judeus em relação aos palestinos, tenham sido lançados “Noé” e “Êxodo”, obras que enfatizam o papel dos judeus como escolhidos de Deus?

segunda-feira, janeiro 05, 2015

Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro ***


Em “Ventos de agosto” (2014), seu primeiro longa-metragem de ficção, o diretor Gabriel Mascaro conserva algumas influências do gênero onde se projetou inicialmente, o documentário. Isso porque sua abordagem traz uma certa secura na encenação, um naturalismo na forma com que filma situações e personagens. É curioso, entretanto, que em tal concepção cinematográfica há espaço para uma espécie de poético realismo mágico. Sem recorrer a trucagens e se valendo de um registro visual repleto de nuances imagéticas nos seus sutis movimentos de câmeras e enquadramentos de caráter pictórico e de uma narrativa rarefeita, a obra de Mascaro parece se desenvolver num tom entre o aleatório e o casual. Seus personagens se relacionam por tênues ligações ou simplesmente não se cruzam. Aos poucos, entretanto, a narrativa vai adquirindo uma estranha coerência estética e temática, em que os cenários e indivíduos que aparecem na tela dão a impressão de estarem situados em um universo paralelo. A jovem catadora de cocos que adora punk rock, seu amante obcecado por um cadáver sem identificação, o “caçador” de ventos, uma senhora de aparência centenária que ter uma aura de fóssil vivo, todos eles compõem uma fauna bizarra, que tanto dá a ideia de proximidade quanto parece se situar num mundo fora do tempo e do espaço.

sexta-feira, janeiro 02, 2015

Libertem Angela Davis, de Shola Lynch **


É inegável que para todos aqueles que se interessam por história e cultura assistir a “Libertem Angela Davis” (2011) acabe se tornando um programa obrigatório. A importância da temática retratada, tanto pela trajetória pessoal da figura biografada quanto pelo conturbado e complexo período histórico retratado (o começo dos anos 70 nos Estados Unidos), faz com que a produção tenha um grau de empatia muito forte. Há uma profusão de imagens de arquivo bastante relevantes, além de depoimentos reveladores de figuras emblemáticas dos fatos retratados em questão. Como narrativa cinematográfica, entretanto, o documentário dirigido por Shola Lynch deixa bastante a desejar. A cineasta se limita a conceber uma burocrática combinação de trechos de imagens de época com entrevistas no tempo presente – faltam criatividade e dinâmica que ofereçam alguma tensão dramática efetiva para o espectador. O esmiuçamento de detalhes da fuga de Angela Davis e de seu julgamento por atos terroristas pode ser valioso segundo critérios de estudiosos de História, mas também torna a narrativa enfadonha e pouco atrativa para o espectador em geral. Lynch não parece afetada pelo espírito ousado da contracultura, típica da época que procurou retratar. Do jeito previsível e cansativo que ficou, “Libertem Angela Davis” mais parece um vídeo institucional a ser exibido em escolas e emissoras televisivas públicas.

Melhores filmes de 2014




1)      O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese
2)      Garota exemplar, de David Fincher
3)      Todos os dias, de Michael Winterbottom
4)      Tudo por justiça, de Scott Cooper
5)      Era uma vez em Nova York, de James Gray
6)      Bem vindo à Nova York, de Abel Ferrara
7)      O lobo atrás da porta, de Fernando Coimbra
8)      Quando eu era vivo, de Marcos Dutra
9)      Guardiões da Galáxia, de James Gunn
10)  Ninfomaníaca, de Lars Von Trier
11)  Cães errantes, de Tsai Ming-liang
12)  Jogo das decapitações, de Sergio Bianchi
13)  Nebraska, de Alexander Payne
14)  Praia do futuro, de Karim Aïnouz
15)  Educação sentimental, de Julio Bressane
16)  Capitão América: O soldado invernal, de Anthony e Joe Russo
17)  Ela, de Spike Jonze
18)  X-Men: Dias de um futuro esquecido, de Bryan Singer
19)  O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson
20)  Mommy, de Xavier Dolan
21)  A grande beleza, de Paolo Sorrentino
22)  No limite do amanhã, de Doug Liman
23)  Castanha, de Davi Pretto
24)  Na neblina, de Sergei Loznitsa
25)  12 anos de escravidão, de Steve McQueen