quinta-feira, dezembro 31, 2015

Uma viagem extraordinária, de Jean-Pierre Jeunet *

O francês Jean-Pierre Jeunet sempre foi um cineasta muito superestimado. Em seus país natal, dirigiu alguns filmes que lhe deram credibilidade cult entre a crítica e o público. Sua fórmula narrativa é simples e por vezes até eficiente – truques estéticos simpáticos, um certo requinte visual, ambientação esquisitinha e o tom agridoce dos roteiros lhe deram uma certa aura autoral. Na coprodução franco-norte-americana “Uma viagem extraordinária” (2013) boa parte desses artifícios foram limados e reduzidos, bem provavelmente por exigência de executivos ávidos por uma acessibilidade comercial que tornasse o filme mais viável comercialmente. Assim, o que se tem é um trabalho derivativo e sem graça, provavelmente a pior coisa que Jeunet lançou. É claro que em alguns momentos até dá para sentir alguns elementos típicos do estilo do cineasta, principalmente na caracterização de algumas situações e personagens, naquela síntese entre fofurice e esquisitice. Mas isso acaba sendo muito pouco para salvar a coisa toda do lugar comum enfadonho que predomina na narrativa. Clichês temáticos e formais são remexidos sem qualquer inspiração ou vigor, resultando em um produto destinado ao esquecimento rápido. Talvez fosse melhor Jeunet retornar a filmar em definitivo na França, pois em terras estrangeiras se revelou um medíocre tarefeiro dos grandes estúdios.

quarta-feira, dezembro 30, 2015

Quando papai saiu em viagem de negócios, de Emir Kusturica ***1∕2

Talvez o aspecto mais fascinante no modus operandi do diretor sérvio Emir Kusturica é a forma com que ele adequa gêneros e clichês cinematográficos dentro de sua linguagem artística particular. Essa característica fica bastante evidente em “Quando papai saiu em viagem de negócios” (1985), uma de suas produções mais estimadas. Num primeiro momento, o espectador pode até achar que está vendo algo convencional, numa trama que mistura referências históricas, memorialismo infantil e comentário político. Aos poucos, entretanto, Kusturica vai envenenando os lugares comuns com uma encenação vibrante, em que a tensão dramática e a ironia sardônica convivem de maneira fluida e natural. O academicismo formal em que esse tipo de obra costuma se basear está lá, principalmente pela vinculação com determinados fatos históricos importantes da Iugoslávia, mas o fato do protagonista ser uma criança faz com que a abordagem estética do filme traga algo de mágico e mesmo delirante na sua atmosfera. Essa oposição de linguagens (naturalista e estilizada) não é gratuita de acordo com o contexto sócio-político em que se desenvolve o roteiro – os absurdos do autoritarismo e da burocracia do governo iugoslavo dos anos 40 por vezes beiram o surreal. Mantendo essa pegada autoral, Kusturica elaborou ainda melhor esses preceitos formais e temáticos naquela que é a sua grande obra-prima, “Underground” (1985).

terça-feira, dezembro 29, 2015

As férias do pequeno Nicolau, de Laurent Tirard *1∕2

Em “O pequeno Nicolau” (2010), o diretor francês Laurent Tirard tinha encontrado um equilíbrio interessante entre um certo tom ingênuo tipicamente infantil e um grau de ironia exato, fazendo com que o filme pudesse ser apreciado tanto pelo público infanto-juvenil quanto pelo adulto. Já nessa sequência “As férias do pequeno Nicolau” (2014) essa química não consegue se concretizar – a direção é burocrática, a trama é banal e não consegue gerar tensão e interesse para o espectador, a narrativa é trôpega e engessada. No geral, tudo parece estar tão no piloto automático que a única sensação genuína que pode induzir é o sono. Nem crianças e nem adultos pouco exigentes provavelmente irão apreciar um conjunto criativo tão preguiçoso e sem vida.

segunda-feira, dezembro 28, 2015

Homens, mulheres e filhos, de Jason Reitman *1∕2

Dá para perceber na filmografia do diretor norte-americano Jason Reitman um certo padrão temático constante, em que ele se pretende como uma espécie de cronista moderno dos dilemas existenciais da sociedade ocidental contemporânea. Seus filmes versam sobre relações humanas frustradas (“Amor sem escalas”), gravidez na adolescência (“Juno”), imaturidade emocional (“Jovens adultos”). Ocorre, entretanto, que tais obras acabam não justificando a pretensão do cineasta, pois se formatam dentro de equações narrativas convencionais e pouco imaginativas, além de visões emocionais superficiais e por vezes beirando o moralismo fácil. Tal tratamento artístico volta a se manifestar de forma expressiva em “Homens, mulheres e filhos” (2014), obra em que Reitman se propõe realizar um inventário de registro misto entre o intimista e o social sobre as relações familiares em tempos de internet. Por mais que as questões levantadas pelo roteiro sejam relevantes, falta profundidade para a visão de mundo expressa pelo filme. Reitman se contenta em abusar de truques narrativos e clichês melodramáticos baratos, não sabendo aprofundar seus questionamentos com alguma sagacidade ou contundência. As situações apresentadas pelo roteiro são esquemáticas, além da caracterização dos personagens caírem em caricaturas patéticas (o personagem de Jennifer Garner, em especial, beira o ridículo). 

quinta-feira, dezembro 24, 2015

Califórnia, de Marina Person **

Por um lado, é de se admirar a persistência da diretora Marina Person em fazer de “Califórnia” (2015) uma obra de forte cunho autoral. Dá para sentir em cada fotograma do filme elementos que parecem aludir ao próprio imaginário pessoal da cineasta – trilha sonora repleta de pérolas do rock e pop dos anos 70 e 80, conflitos e dilemas típicos das comédias adolescentes de John Hughes, referências e citações da cultura pop. E as ambições artísticas de Person para sua produção também são louváveis, ao procurar oferecer a partir de uma trama de caráter intimista e memorialista uma perspectiva sócio-política-cultural do Brasil da primeira metade da década de 80, retratando o ambiente dos anos finais da ditadura militar. De certa forma, é como se a história do despertar da adolescente Estella (Clara Gallo) para os dramas e complexidades da vida adulta tivessem uma relação de simbolismo com um país que estava tentando sair das trevas do obscurantismo intelectual e comportamental. O problema de “Califórnia” é que todas essas boas ideias e intenções não conseguem se traduzir em uma narrativa envolvente. Na comparação com outras obras recentes que tiveram a juventude como temática, falta o lirismo brutal de “O cheiro da gente” (2014), a sensibilidade à flor-da-pele de “Depois de maio” (2012) e mesmo a graciosidade natural de “Hoje eu quero voltar sozinho” (2014). A encenação em “Califórnia” é engessada, por vezes beirando o amador, com as caracterizações dos personagens caindo por vários momentos em caricaturas constrangedoras, além do roteiro apelar para simplificações banais e sem graça. Por mais que se tenha simpatia com as mencionadas referências culturais que permeiam a trama, a impressão é que tais elementos não conseguem entrar em sintonia com o universo das situações e personagens. Assim, fica evidente, por exemplo, que o trabalho de direção de arte é por demais artificioso e sem vida. O que salva “Califórnia” do desastre completo é que existem algumas poucas sequências em que dá para vislumbrar o que poderia ter sido o filme se Person tivesse acertado mão na direção – as cenas no quarto de JM (Caio Horowicz) são pulsantes, dinâmicas e ousadas em seus movimentos, edição e diálogos, é quase como se fosse um outro filme dentro de “Califórnia”. Horowicz, aliás, destaca-se de forma disparada no elenco, pois tem uma presença cênica forte. No mais, ainda que “Califórnia” seja uma obra frustrante em sua execução, seus poucos e expressivos momentos positivos mostram que Person ainda é um nome a se prestar atenção. 

quarta-feira, dezembro 23, 2015

O clã, de Pablo Trapero **1∕2

A filmografia do cineasta argentino Pablo Trapero sempre foi marcada por uma pegada autoral própria, em que o diretor procurava criar uma atmosfera marcada por um realismo áspero. Seu formalismo não é caracterizado por grandes voos de virtuosismo, com Trapero preferindo manter uma estética austera para mostrar sintonia com roteiros de forte caráter humanista. Assim foi em obras memoráveis como “A família rodante” (2003), “Nascido e criado” (2006), “Leonera” (2008) e “Abutres” (2010). Ainda que venha sendo expressivamente festejado por crítica e público, com direito inclusive a ser o representante da Argentina para uma possível indicação ao Oscar de filme estrangeiro, “O clã” (2015), o trabalho mais recente de Trapero, foge bastante do estilo habitual do cineasta. Ao invés daquela mencionada sobriedade de concepção, Trapero envereda por uma narrativa bem mais convencional, ajustando-se a um amálgama de cinebiografia e policial que serve para embalar uma premissa e subtexto de trama bastante interessantes – a dos fatos reais de que a ditadura argentina que se estendeu entre parte dos anos 70 e 80 acabou oferecendo treinamento e mesmo salvo conduto para que organizações criminosas praticassem os seus delitos sob o disfarce de defesa dos valores cívicos e morais (prática essa que também ocorreu no Brasil). Até que por vezes essa gestão de clichês soa divertida e envolvente, mas a impressão geral é a de que Trapero resolveu se tornar um Scorsese platino, fazendo com que “O clã” pareça uma espécie de “Os bons companheiros” mal ajambrado, com direito inclusive a inúmeros planos-sequência sem muito sentido e trilha sonora rock and roll anglo-saxã. Ainda que competente em alguns quesitos técnicos e contando com uma ótima atuação de Guillermo Francella no papel do protagonista Arquimedes Puccio, falta uma fluência narrativa e uma abordagem temática menos superficial para que a produção se mostre capaz de ser algo efetivamente memorável, o que acaba sendo frustrante devido à mencionada questão sócio-política que permeia a trama e que acaba sendo tangenciada de maneira amena, ficando longe, por exemplo, da contundência e profundidade do brasileiro “Orestes” (2015) que traz assuntos semelhantes em seu respectivo roteiro.

terça-feira, dezembro 22, 2015

Quando meus pais não estão em casa, de Anthony Chen ***

A proposta artística da produção de Singapura “Quando meus pais não estão em casa” (2013) faz lembrar bastante a do filme brasileiro “Que horas ela volta?” (2015): usando a estrutura narrativa tradicional do gênero melodrama, a obra do diretor Anthony Chen pretende fazer uma espécie de dissecação das relações humanas dentro de uma sociedade marcada preconceitos e desigualdades sociais profundos. No trabalho em questão, não dá para dizer que há grandes transcendências estéticas e mesmo em termos existenciais – os dilemas da trama são aqueles básicos, com uma narrativa que avança de forma linear e sem sobressaltos. O grande mérito do filme de Chen é a sobriedade de sua abordagem emocional, não caindo em soluções sentimentais fáceis e manipuladoras, valorizando uma atmosfera plena de silêncios reveladores e a expressividade de gestos e olhares. Dessa forma, aliada também a uma discreta propensão para a ironia, sua crítica a uma sociedade de consumo que se mostra cada vez mais insensível e absurda em seus valores morais e contradições se caracteriza pela contundência e universalidade.

segunda-feira, dezembro 21, 2015

Mia madre, de Nanni Moretti ****

Os filmes do diretor italiano sempre são marcados por um traço autoral intransferível, trazendo uma espécie de sínteses das obsessões pessoais e artísticas do cineasta. Dentro dessa concepção se misturam elementos diversos como política, reminiscências pessoais, ensaios culturais, intimismo, comentário social e metalinguagem, mas sempre passando por um rigoroso filtro formal e temático que dá uma coerência existencial admirável para sua filmografia, independente do gênero no qual Moretti se aventure. Isso tudo fica bastante evidente em seu trabalho mais recente, “Mia madre” (2015), em que ele volta ao gênero do melodrama, onde ele já tinha se dado muito bem em “O quarto do filho” (2001). Na produção em questão, o diretor retoma seus temas que lhe são mais caros sem que com isso passe a impressão de acomodação. Pelo contrário – Moretti parece aprofundar seu particular estilo dentro de uma equação narrativa cada vez mais desconcertante. É como se tivesse mais de um filme dentro de “Mia madre”. Há aquele plano que mostra o cotidiano de filmagens de uma obra de caráter social por parte da cineasta Margherita (Margherita Buy), mostrando os dilemas artísticos da diretora. Por outro lado, tem uma trama intimista que envolve o tocante drama pessoal da protagonista junto ao irmão Giovanni (Moretti) que passam por todo o calvário de acompanhar os últimos dias da mãe moribunda. Além disso, a própria situação dessa matriarca carrega um forte caráter simbólico no sentido de representar a queda de um humanismo considerado ultrapassado perante uma ordem capitalista cada vez mais obtusa. E há também as sequências que mostram as confusões e constrangimentos causados por um decadente e arrogante ator norte-americano (John Turturro) no set das referidas filmagens e pelas ruas de Roma, em que as trapalhadas desse personagem parecem remeter a um humor melancólico tipicamente italiano na linha das produções de Toto e Mario Monicelli. Moretti junta todas essas narrativas paralelas e lhes dá uma unidade intrínseca extraordinária, compondo um painel humanista que navega de forma extraordinária entre a comicidade, o sentimental e a feroz crítica sócio-política e econômica, tendo por resultado final um filme que tanto pode ser considerado atemporal pela sua grandeza artística como a síntese emblemática de uma época conturbada.

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Star Wars: O despertar da força, de J.J. Abrams **

Se examinarmos a forma com que os filmes que compõem as duas primeiras trilogias da franquia “Star Wars” se relacionam, dá para no mínimo concordar com uma coisa: a de que cada um desses episódios mostrava uma evolução na caracterização das situações e personagens mais emblemáticas da saga, principalmente se formos considerar a ordem cronológica dos fatos apresentados nas tramas. E por mais que George Lucas se aproveitasse de elementos tradicionais de outras histórias (e mesmo lendas) para criar a mitologia da série, ele fez isso com muito senso de narrativa cinematográfica, num sentido que conseguiu criar uma ambientação muito particular, personagens cativantes e uma encenação empolgante. Ou seja, estabeleceu um cânone artístico que se tornou referência para fãs e também para uma grande legião de imitadores.

É certo que o parágrafo acima não traz novidade alguma no que se sabe sobre “Star Wars”. Para esse escriba, entretanto, ele é necessário para tentar contextualizar o que faz esse “Star Wars: O despertar da força” (2015) ser tão frustrante. Ao invés de dar um prosseguimento natural para as trilogias anteriores, no sentido de mostrar o amadurecimento dos antigos personagens e a inserção de figuras novas com caracterização psicológica (e mesmo visual) própria, o diretor J.J. Abrams adotou um caminho artístico preguiçoso e sem inspiração ao fazer uma espécie de reciclagem picareta de “Uma nova esperança”. A estrutura de trama e a relação entre os personagens são praticamente os mesmos do filme de 1977, com variações mínimas. É claro que os defensores mais xiitas vão dizer que seria uma homenagem ou algo que o valha, mas convenhamos que repetir na cara dura ideias velhas e já melhor trabalhadas acaba sendo muito pouco diante da expectativa que se criou nos últimos tempos por esse novo capítulo da saga. Além disso, Abrams não consegue dar liga na sua encenação para que pelo menos essa “refilmagem” parecesse minimamente vigorosa. Batalhas aéreas e terrestres são burocráticas na conjugação coreografia e efeitos especiais, não conseguindo extrair alguma efetiva tensão ou emoção para o espectador. Não há nem mesmo uma desenvoltura na forma com que os personagens se colocam em cena – a impressão constante é a de se estar vendo uma convenção de fãs da série fazendo cosplay nos cenários clássicos da saga. E é meio melancólico ver Harrison Ford, Carrie Fisher e Mark Hammill com presenças de cena tão artríticas. Na real, isso até acaba sendo sintomático do que efetivamente representa “O despertar da força”.


Talvez todo o fenômeno de devoção e marketing que assolou o planeta em função de retomada de uma nova trilogia de “Star Wars”, diante do resultado final de “O despertar da força”, acaba sendo também simbólico do que é a relação atual entre religião e comércio que domina o mundo. Fãs/fiéis defendem de forma indiscriminada seus ídolos/deuses enquanto produtores/pastores contam sorridente a bilheteria/o dízimo arrecadados...

quarta-feira, dezembro 16, 2015

O massacre da serra elétrica 2, de Tobe Hooper ****

Hoje em dia quando se fala em continuações ou reboots da franquia “O massacre da serra elétrica” logo se pensa em produções rasteiras e assépticas destinadas mais a levantar um troco fácil para os seus produtores do que acrescentar algo de relevante para a série. Sem querer parecer nostálgico, mas houve uma época em que isso foi diferente e dessa forma mais um capítulo da saga do maníaco Leatherface era algo realmente digno de nota para os apreciadores do cinema fantástico. Nesse sentido, “O massacre da serra elétrica 2” (1986) é um exemplar enfático dessa concepção. O diretor Tobe Hooper já tinha criado uma verdadeira escola dentro do gênero horror com o primeiro filme lançado em 1974, em que combinava com muita criatividade violência gráfica explicita, formalismo cru e atmosfera de sordidez e negativismo. Ao retomar a história e personagens na continuação em questão, mudou sua orientação artística de forma radical, mas preservando a coerência existencial da obra. Nesse sentido, é um trabalho que se mostra em perfeita sintonia com o espírito do melhor que foi feito no âmbito das produções de terror nos anos 80, principalmente naquela síntese contundente de suspense, horror e humor (vide obras como “Um lobisomem americano em Londres”, “Evil Dead” e “O soro do mal”). Há um viés em “O massacre da serra elétrica” que o diferencia bastante desses outros filmes – por trás de um roteiro repleto de delirantes situações sangrentas, há um ácido e sutil subtexto político no retrato caricatural que faz de típicas figuras que habitam o imaginário norte-americano, indo da típica fúria puritana de um policial alucinado em busca de vingança (Denis Hooper, evidentemente cheirado em cena) até nojentos e engraçados rednecks psicopatas (com direito inclusive a um escroto veterano do Vietnã), ou seja, um retrato nada gentil do sul republicano e reacionário dos Estados Unidos. Junto a uma intrínseca junção de dinâmica narrativa bem azeitada, encenação alucinada e ambientação fuleira, acaba se tendo uma legítima pérola cinematográfica marginal que só melhora com o passar dos anos.

terça-feira, dezembro 15, 2015

Tudo que aprendemos juntos, de Sérgio Machado **

O diretor baiano Sérgio Machado tinha demonstrado vigor narrativo em “Cidade Baixa” (2005) e “Quincas Berro D’Água” (2010), obras que traziam uma mistura interessante de brasilidades, erotismo e questões sociais, numa abordagem típica da sua geração de cineastas nordestinos que despontaram nos últimos anos (com destaque óbvio para o pessoal de Pernambuco). Diante desse histórico expressivo, ver a produção mais recente de Machado, “Tudo que aprendemos juntos” (2014), acaba causando forte decepção. Em algumas sequências, o diretor até preserva um certo frescor na encenação, mas acaba sendo muito pouco dentro de um quadro geral que remete a uma enésima versão requentada do clássico “Ao mestre com carinho” (1967). Clichês formais e temáticos são maltratados de forma impiedosa e rasteira. Mesmo que o roteiro tangencie dilemas prementes da sociedade brasileira contemporânea, o filtro estético e textual do filme é tão quadrado e burocrático que faz com que essa pretensão visão crítica se mostre superficial e reducionista.

segunda-feira, dezembro 14, 2015

No coração do mar, de Ron Howard **1/2

O diretor norte-americano tem uma filmografia marcadas por alguns altos e vários baixos. Depois do empolgante “Rush – No limite da emoção” (2013), era até natural que se houvesse uma expectativa positiva para o seu próximo filme. “No coração do mar” (2015), entretanto, mostra que o cineasta voltou ao habitual padrão de produções meia-boca. É claro que não se trata de um desastre completo como “Anjos e demônios” (2009), mas também está muito longe de fazer jus à promissora premissa de sua trama – mostrar os fatos reais que inspiraram Herman Melville a escrever a obra-prima literária “Moby Dick”. Howard é um diretor que sempre teve uma forte tendência para assepsia formal e temática na concepção de seus filmes, e isso acaba sendo justamente o principal equívoco artístico nesse seu trabalho mais recente. A caracterização visual da obra dentro do conjunto fotografia, direção de arte e efeitos especiais é exemplar desse traço característico do estilo de Howard filmar: tudo é tão artificial e limpo que os cenários de uma cidadezinha litorânea e de um baleeiro em pleno ano 1820 mais parecem de um insípido conto-de-fadas do que uma vigorosa reconstituição imagética fiel e realista. Mais grave do que isso é a forma com que as caças aos cetáceos e as batalhas entre a monstruosa baleia branca e o barco liderado por Owen Chase (Chris Hemsworth) são retratadas – ainda que mostrem razoável competência em sua coreografia, tais sequências são elaboradas dentro de padrões gráficos feitos essencialmente para não chocar as plateias, fazendo com que prepondere uma absurda falta de violência e sangue, itens fundamentais para que se ressaltasse o impacto sensorial da brutalidade do conflito entre o homem e a natureza. A verdade é que o viés adotado por Howard é muito mais o do conto moralista edificante, vide diálogos repletos de boas lições morais e os óbvios temas musicais melosos que pontuam a trilha sonora. Dessa forma, o resultado final é até um filme que por vezes diverte, mas que dificilmente consegue se concretizar como uma experiência cinematográfica memorável em nosso imaginário.

quinta-feira, dezembro 10, 2015

O fim e os meios, de Murilo Salles ***

Enquanto “Ausência” (2014) é uma obra que se apresenta como uma lúcida tese sociológica e falha como cinema, com “O fim e os meios” (2014) dá para dizer que as coisas se operam de forma contrária. O roteiro do filme de Murilo Salles se pretende como uma espécie de raio x sobre as estruturas de poder no cenário político brasileiro contemporâneo, em que mesmo aspectos da intimidade dos personagens refletem as relações de dominação econômica e desajustes sociais no Brasil. Os desdobramentos da trama, entretanto, não conseguem sustentar tais pretensões temáticas, resvalando por vezes em simplificações e banalidades que não conseguem sintetizar de forma satisfatória alguns conflitos complexos que são retratados no roteiro. Nesse sentido, não há a agudeza existencial que deixava o espectador inquieto em “Nome próprio” (2007), excelente produção anterior dirigida por Salles. Por outro lado, a encenação concebida pelo cineasta em “O fim e os meios” é tão intensa e fluida que mesmo as inconsistências da trama não impedem que a narrativa seja envolvente em sua condução. Salles tem a manha para criar algumas perturbadoras atmosferas de tensão dramática, sabendo valorizar também as expressões e gestuais de seus autores com bastante sensibilidade. Por mais que o filme tenha uma tendência para o caricatural, o misto de sexo, poder e picaretagem que envolve os personagens vinculam o filme a um pastiche eficiente no gênero policial permeado por uma atmosfera de sordidez perturbadora.

quarta-feira, dezembro 09, 2015

Ausência, de Chico Teixeira **1/2

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A comparação entre “Ausência” (2014) e “Casa de Alice” (2007), filme anterior de Chico Teixeira, mostra que o diretor tem uma certa coerência artística. As duas produções têm tratamentos formais e temáticas semelhante – roteiro e narrativa obedecem a uma lógica rigorosa em seus desdobramentos, revelando uma visão de mundo aguçada na percepção das mazelas existenciais da sociedade brasileira contemporânea. No filme mais recente, a progressão de fatos da trama obedece a uma equação que beira a matemática, em que a sucessão de situações deprimentes faz com que o protagonista Serginho (Matheus Fagundes) entre numa espiral de desilusões. Teixeira faz transparecer em sua obra um severo modus operandi em que cada cena traz uma carga explicativa, e por vezes até simbólica, na construção de uma tese sobre abandono emocional na menoridade. É de se convir que nesse sentido “Ausência” seria uma expressiva peça sociológica a embasar teorias comportamentais. Todo esse acuro filosófica/intelectual, entretanto, não consegue se traduzir num resultado cinematográfico satisfatório. Falta uma vivacidade, uma transcendência artística, dentro desse estilo opaco de Teixeira filmar. O espectador até consegue entender os dilemas e dificuldades de Serginho, mas também não consegue sentir alguma real empatia pelo personagem e mesmo por aqueles que o cercam. Por mais que os diversos tipos de relacionamentos nos quais Serginho se envolve servem para construir a base para a evolução das ideias do filme, nenhuma dessas interações é esmiuçada de uma maneira mais profunda, ficando num desenvolvimento muito superficial. Se a história se concentrasse mais na ambiguidade do relacionamento entre Serginho e o “Professor” (Irandhir Santos), por exemplo, teria um impacto muito maior. No mais, até dá para entender que essa aridez estética e emocional de “Ausência” tenha uma função de evitar que a obra caia no sentimentalismo fácil ao abordar a questão da adolescência à beira-do-abismo, mas obras com temática semelhante como “Os incompreendidos” (1959) e “Pixote” (1981) já mostraram que se pode ter uma abordagem artística mais grandiosa e memorável sem perder a contundência de seu discurso.

terça-feira, dezembro 08, 2015

American Ultra - Armados e alucinados, de Nima Nourizadeh **

Existem filmes cujas premissas iniciais que deram origem aos seus respectivos roteiros são bem mais interessantes que os seus consequentes resultados finais. “American Ultra – Armados e alucinados” (2015) é um expressivo exemplar de tal constatação. Ainda que a profusão de produções sobre superespiões treinados a um limite sobre-humano seja grande (vide as franquias “007” e “Bourne”, além de derivados), a ideia de um agente com amnésia (Jesse Eisenberg) que passa os dias chapado de maconha e desenhando uns quadrinhos doidões e que acaba se tornando alvo de eliminação por uma agência governamental acaba despertando uma certa curiosidade para o espectador apreciador de uma boa aventura escapista. O problema é que a abordagem do diretor Nima Nourizadeh acaba não fazendo jus às expectativas promissoras. O ideal para um filme como esse é que a estrutura narrativa se vinculasse a uma síntese entre a comicidade ácida e a ação enlouquecida. No caso em questão, predomina uma dramaticidade excessiva, fazendo parecer uma obra que se leva mais a sério do que deveria. A encenação raramente encontra um tom adequado entre a comédia e a aventura, com os dilemas da trama mais parecendo uma variação derivativa da linha “Bourne”. E se restava ao elemento ação a chance de salvar “American Ultra” da decepção total, daí as coisas naufragam de vez – o formalismo concebido por Nima Nourizadeh é burocrático e sem inspiração. Estão lá as explosões, tiros, lutas e violência, mas tudo num conjunto incapaz de criar empatia ou alguma cena memorável. Ou seja, tudo bem distante da vigorosa releitura de clichês narrativos que Nourizadeh tinha estabelecido em “Projeto X” (2012), seu trabalho anterior.

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Remake, Remix, Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Pop Cinema, de Cem Kaya ***

Num primeiro momento, o documentário “Remake, Remix, Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Por Cinema” (2014) parece se resumir a uma boa coletânea de infames cenas de produções turcas dos anos 60 e 70 marcadas pela tosquice, cara-de-pau, ingenuidade e humor involuntário. Nesse sentido, talvez o principal mérito da obra é o seu trabalho de edição: por vezes, a ágil sucessão de hilárias sequências repletas de “defeitos visuais”, diálogos constrangedores, encenação amadorística e generosas doses de violência e escatologia levam o espectador a gargalhadas convulsivas. Um olhar mais atento, entretanto, pode identificar no filme dirigido por Cem Kaya um retrato crítico e por vezes até profundo sobre a cultura turca no período focado, época essa marcada por uma conjuntura bem específica e difícil de reproduzir nesses tempos atuais dominados pela internet e outros avanços tecnológicos. Naqueles tempos, a falta de grana constante para produções nacionais, um regime jurídico diferenciado de direitos autorais (ou, na verdade, a ausência de tal regime) e um cenário artístico afetado pela falta de informação e pelo obscurantismo religioso levam a uma profusão de filmes de baixo orçamento e nível formal risível de todos os gêneros (ficção científica, aventura, fantasia, terror, comédia, melodrama). No meio de uma temática marcada pelo grotesco e pela galhofa, Kaya tem algumas belas sacadas narrativas, principalmente por estabelecer conexões de tal filmografia com elementos típicos de vertentes cultuadas por cinéfilos como o exploitation e o trash, além de mostrar a relação da decadência comercial dessas produções com mudanças importantes na Turquia, como a consolidação de um capitalismo mais “profissional” e o avanço do fundamentalismo religioso. Assim, mais do que um mero exercício de nostalgia cinematográfica, “Remake, Remix, Rip-Off” acaba sendo uma interessante obra a dissecar de forma sutil os meandros das transformações políticas e sociais da Turquia, mas que também faz um memorável e contundente retrato da alma fuleira e sincera de um povo.

sexta-feira, dezembro 04, 2015

Pasolini, de Abel Ferrara ****

Quando se fala em cinebiografia nos dias de hoje, a primeira coisa que vem à cabeça é um filme cuja estrutura narrativa se resume a uma espécie de resumão linear da vida de seu protagonista, com alguma ênfase em determinados fatos mais relevantes, mas que no final das contas acaba se mostrando como uma obra superficial e que pouco consegue mostrar da essência de seus “homenageados”. Ainda que possam receber algumas indicações a Oscar ou páginas em cadernos culturais, o destino da maioria de tais produções é o esquecimento pela sua irrelevância artística e mesmo histórica. Sorte que existem exceções como esse “Pasolini” (2014) de Abel Ferrara, em que esse último retrata a últimas 24 horas de vida do genial diretor italiano. Só que nesse curto espaço de tempo focado, Ferrara consegue fazer um contundente inventário emocional e artístico do seu protagonista. O último dia de Pier Paolo Pasolini (Willem Dafoe) é marcado pelos tradicionais dilemas, conflitos e contradições que sempre marcaram sua trajetória como pensador, poeta e cineasta – seu conflito com os moralismos e mesquinharias do status quo econômico e social da sociedade ocidental, suas preocupações em dar vazão às suas obsessões estéticas e temáticas, o seu gosto por envolvimentos sexuais sórdidos. Mas ao mesmo que Ferrara concebe uma abordagem realista nessa visão fatalista dos momentos derradeiros de Pasolini, ele também envereda por um vórtice sensorial dentro da mente do artista, fazendo com que o espectador possa ter um vislumbre das lembranças difusas, anotações pessoais e mesmo projetos abortados pela sua precoce morte. Nesse último quesito, Ferrara emula com sensibilidade o próprio estilo de Pasolini na encenação que faz de um roteiro nunca filmado desse último, fazendo lembrar aquele realismo mágico picaresco e enlouquecido que o italiano criou para a sua “Trilogia da vida”. De certa forma, somente um eterno desajustado como Ferrara poderia ter a manha de nos oferecer um significado bastante aproximado do papel decisivo que Pasolini teve na cultura mundial.

quarta-feira, dezembro 02, 2015

A visita, de M. Night Shyamalan ***

O que mais incomodava em “Depois da terra” (2013), o penúltimo longa-metragem do diretor M. Night Shyamalan, era o fato de transparecer uma forte despersonalização por parte do cineasta. Independente de se gostar ou não de Shyamalan, é inegável que em boa parte de sua filmografia dá para sentir um certo traço autoral, a delineação de um estilo particular, o que não ficava evidente na referida obra. Em “A visita” (2015), seu trabalho mais recente, Shyamalan retoma sua veia própria de realizador diferenciado, também retornando ao horror, gênero no qual se destacou em “O sexto sentido” (1999) e “O fim dos tempos” (2008). Nessa nova incursão ao terror cinematográfico, ele surpreende por enveredar por uma concepção narrativa bastante manjada no cenário das produções de horror contemporâneas – a da câmara subjetiva, onde quem registra a ação são os personagens. Diferente do tom previsível e pueril da franquia “Atividade paranormal”, “A visita” demonstra criatividade na utilização desse recurso estético. Na trama, a dupla adolescente de protagonistas está realizando um documentário intimista sobre a relação de sua mãe e os avós, fazendo com que mostrem domínio técnico em termos de encenação e edição. Por vezes, inclusive, chegam a discutir sobre conceitos importantes no gênero documental. A partir de tal arcabouço formal e temático, e tendo como principal cenário uma rústica fazenda isolada no meio de interior norte-americano, Shyamalan consegue extrair uma atmosfera de horror gótico, fazendo com que o filme tenha algumas memoráveis sequencias bastante tensas e assustadoras na sua combinação de temores atávicos, escatologia e violência. Pena que o roteiro insira alguns momentos de melodrama familiar excessivo, o que diminui de forma considerável o impacto e concisão da obra. Ainda assim, “A visita” está bem acima da média do que tem sido feito no gênero nos últimos anos e serve também para mostrar que Shyamalan está longe de ser considerado carta fora do baralho.

terça-feira, dezembro 01, 2015

A ilha do milharal, de George Ovashvili ***

Apesar do exotismo de sua procedência, a produção da Geórgia “A ilha do milharal” (2014) não chega a ser um bicho de sete cabeças em termos formais e temáticos. É claro que para aqueles acostumados com os padrões frenéticos e escapistas de boa parte do que se produz na Hollywood atual a narrativa lenta e detalhista elaborada pelo diretor George Ovashvili pode para esquisita e enfadonha. A trama do filme é simples e sem grandes variações em seu desenvolvimentos e mesmo nas suas viradas, mas guarda em suas entrelinhas alguns simbolismos que são trabalhados de forma eficiente e até mesmo por vezes encantadora. Dentro da concepção artística desse trabalho Ovashvili, a exposição do passar do tempo é essencial na construção dramática. O passo-a-passo do levantamento de uma plantação de milho em uma pequena ilha temporária de um rio interiorano, assim como a amostragem do cotidiano de sua manutenção, é essencial para se dimensionar a carga dos conflitos e dilemas delineados pelo roteiro. A valorização dos silêncios e ênfase nas expressões e gestuais dos personagens também são essenciais para a atmosfera de melancolia e mesmo para a sensação de tragédia iminente e inevitável que pairam de forma constante sobre “A ilha do milharal”. O rigor dessa abordagem estética e emocional encontra um complemento acertado na encenação, principalmente por uma direção de fotografia que consegue captar com uma grandiosidade contida as nuances visuais dos belos cenários naturais do filme. Se em grande parte da narrativa predomina essa discrição nas escolhas artísticas de Ovashvili, as sequenciais finais da tempestade que inunda a ilha e destrói grande parte da plantação de milho representam uma catarse sensorial impactante capaz de fixar no imaginário do espectador por um bom tempo.