quarta-feira, dezembro 12, 2018

Tinta bruta, de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon ***1/2


A real Porto Alegre contemporânea parece ser o cenário de “Tinta bruta” (2018). Até mais do que isso: a capital gaúcha por vezes se mostra como uma personagem própria do filme. Dentro da concepção artística-existencial colocada em prática pelos diretores Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, entretanto, esse espaço físico e mesmo o espaço temporal dão a impressão de que estamos assistindo a uma espécie de mundo paralelo distópico. Essa sensação se desenvolve a partir de sutis e reveladoras sacadas narrativas, visuais e textuais – as sufocantes sequências em tribunais, as cenas em festas que se desenrolam de maneira que beiram o clandestino, os olhares que sugerem desaprovação por parte de anônimos, a frieza emocional de ruas e avenidas quase desertas no Centro. Em um pungente diálogo, um personagem diz se sentir em um limbo/purgatório ao descrever qual é a sensação de viver nessa Porto Alegre opressiva e desumanizada. Em mais de uma oportunidade, indivíduos manifestam a vontade de sair da cidade. Impossível não pensar “Bem-vindo à Porto Alegre de Marchezan e ao Brasil de Bolsonaro”... Nesse contexto, a vida virtual de Pedro (Shico Menegat) como performer erótico e o intenso caso amoroso que ele mantém com Leo (Bruno Fernandes), ainda que por vezes reforcem uma ideia de alienação e escapismo, têm o significado de uma transgressão libertária e hedonista diante de uma sociedade que massacra moral e fisicamente o diferente. Nesses termos políticos-existenciais, a obra de Matzembacher e Reolon tem conexão com o também recente “Rasga coração” (2018), mas enquanto o filme de Furtado opta pela prolixidade de seus diálogos e numa marcação que resvala no teatral, “Tinta bruta” é lacônico e preciso no seu texto e enfatiza seu forte componente dramático no vigor da sua encenação, com destaque para voluptuosidade desesperada das cenas de sexo, e na expressividade de silêncios, gestos e olhares. Não à toa, a sequência final da dança solitária de Pedro em uma melancólica rave evoca na lassidão e delicadeza de sua coreografia uma declaração de irresignação e desafio em resistir diante de um repressivo aparato burocrático/político/moral.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

Tinta Bruta é uma representação de uma geração solitária, da qual se vê na luta contra uma cidade de Porto Alegre moldada por sombras conservadoras e retrógradas. Saiba mais no meu blog.
https://cinemacemanosluz.blogspot.com/2018/12/cine-dica-em-cartaz-tinta-bruta.html