Faz algumas semanas que ouvi um depoimento extraordinário de
uma deputada indígena se contrapondo contra um pronunciamento preconceituoso e
reacionário da ministra da agricultura que ofendia a cultura do silvícola
brasileiro. No referido pronunciamento da deputada, ela colocava como era
reducionista tentar enquadrar o índio dentro de uma ótica capitalista-cristã,
quando na verdade a concepção existencial do indígena se baseia em uma visão
completamente diversa do ambiente e do trabalho. Essa lógica particular de vida
é algo que extravasa com um misto de sensibilidade e contundência na produção
brasileira “Chuva é cantoria na aldeia do morto” (2018), e que faz com que a
própria narrativa do filme dos diretores João Salaviza e Renée Nader Messora
tenha de se adaptar a uma linguagem estética bastante na contramão do que se
faz no cinema ocidental contemporâneo. No terço inicial da obra, o espectador
entra de cabeça em um universo paralelo de sensações audiovisuais – a encenação
respeita o ritmo de vida sereno e rústico de uma comunidade indígena Khahô, em
que os sons da natureza e uma imensidão de verde e terra absorvem os nossos
sentidos e fazem com que a união entre o realismo e o metafísico pareça natural
e coerente. Quando a narrativa se volta para um centro urbano, o contraste é
chocante, com uma poluição sonora e visual irrompendo com violência e que se
mostra em desolada sintonia com uma sociedade embrutecida típica das cidades
brasileiras contemporâneas. No terço final, com a trama sendo retomada para o
cotidiano da tribo, a narrativa se torna mais etérea, com danças, cantos e
sutis trucagens visuais constituindo um delicado e envolvente vórtice
sensorial, impressão essa que se reforça na misteriosa conclusão do filme, uma
primorosa cena em que natureza e misticismo se fundem de maneira antológica.
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