sexta-feira, fevereiro 22, 2008

A Fogueira das Vaidades, de Brian De Palma ***


Comentar adaptações cinematográficas de obras literárias geralmente é uma tarefa complicada. Por mais que digamos que as mesmas devam ser vistas como filmes independentes das obras originais nas quais foram baseadas, acabamos sempre fazendo comparações, ainda mais se tivemos a oportunidade de ler anteriormente os livros em questão. Digo tudo isso porque é exatamente o que sinto ao escrever sobre "A Fogueira das Vaidades", versão para o cinema dirigida por Brian De Palma para o romance escrito por Tom Wolfe.

Lembro-me que na época do seu lançamento, em 1990, havia uma grande expectativa em relação ao filme. O livro de Wolfe faz uma brilhante e corrosiva sátira à questão racial nos EUA ao retratar a queda social de Sherman McCoy, um endinheirado agente financeiro que vê o seu mundo ruir quando acidentalmente atropela um jovem negro que aparentemente tentava assaltá-lo. O escritor não pouca sarcasmo ao mostrar brancos e negros dispostos a tudo para tirarem vantagem do calvário de McCoy, indo de um decadente e alcóoltra jornalista sensacionalista, passando por um jovem promotor judeu oportunista e chegando a um maquiavélico reverendo negro. Aliado a esse ótimo material, podia-se considerar ainda o fato de que Wolfe já tinha um livro adaptado anteriormente para os cinemas que acabou resultando em uma obra-prima, no caso, "Os Eleitos", dirigido por Philip Kaufman. E para concluir, De Palma havia demonstrado brilhantismo nessa área de transposição para as telas de obras literárias ao dirigir o clássico filme de terror "Carrie, A Estranha" (na minha opinião, muito melhor que o próprio livro original de Stephen King). O fato é que tantas expectativas acabaram sendo frustradas, e "A Fogueira das Vaidades" foi tremendamente mal recebido por público e crítica.

A verdade, entretanto, é que assistindo "A Fogueira das Vaidades" pode-se perceber que o filme, apesar de não ser exatamente um clássico, está muito longe de poder ser considerado um fiasco. Para começar, tendo um virtuose como De Palma atrás das câmeras, é difícil termos algo menos que interessante. Só a seqüência de abertura já vale uma conferida no filme: abusando do recurso de plano seqüência, o cineasta acompanha todo o trajeto do jornalista Peter Fallow (Bruce Willis) do estacionamento até o salão de festas de um luxuoso edifício onde o repórter vai ganhar um prêmio Pullitzer. O que torna ainda mais sensacional tal seqüência é fato de Fallow estar bêbado (a cena dele enfiando a mão em um salmão servido na bandeja é antológica), sendo que os movimentos de câmera são tão vertiginosos que parecem refletir justamente a sensação de ebriedade do personagem. Momentos como esse aparecem ao natural durante boa parte do filme, com De Palma criando climas de verdadeiro pesadelo para Sherman McCoy (Tom Hanks, em um estilo de interpretação que já evocava o estilo catatônico de Forrest Gump).

O que impede que "A Fogueira das Vaidades" seja uma obra cinematográfica que entre no nível de espetacular é que todo o seu rigoroso cuidado na edição e fotografia acabou não bastando para torná-lo uma experiência plenamente satisfatória. "A Fogueira das Vaidades" é um filme que dependia muito de um roteiro bem estruturado, elemento esse que acabou não tendo. Muito das nuances fundamentais para a compreensão do espírito do livro de Tom Wolfe perderam-se em simplificações excessivas da adaptação. Personagens e situações se tornaram bem mais rasos e menos interessantes. Isso pode ser constatado, por exemplo, no frustraste e moralista final, em que o Juiz Leonard White (Morgan Freeman no seu eterno papel do bom negro que aconselha seus amigos brancos) dá um discurso edificante em pleno tribunal, descaracterizando totalmente a intenção original de Wolfe para a conclusão de sua obra, que era mais cínica e pessimista (e, conseqüentemente, bem mais interessante). É claro que com tudo isso não estou dizendo que os melhores filmes são aqueles que têm os melhores roteiros (até porque se fosse assim seria melhor ler livros do que assistir filmes). Apenas considero que existem filmes que pedem, além do cuidado visual, um roteiro elaborado com maior precisão, o que é o caso de "A Fogueira das Vaidades". Philip Kaufman, ao dirigir o anteriormente mencionado "Os Eleitos", teve a preocupação em escrever um roteiro que fosse o mais fiel possível às intenções de Wolfe, o que acabou resultando em uma adaptação que foi melhor sucedida que o filme de De Palma.

Mas mesmo com todos esses problemas, "A Fogueira das Vaidades" é um programa obrigatório para quem curte Brian De Palma e bom cinema, pois em termos de linguagem cinematográfica é bem mais ousado e melhor realizado que os Crashs da vida. E mesmo não estando no melhor de sua obra, De Palma não desistiu de continuar fazer filmes baseados em obras literárias, o que acabou revelando ser uma decisão sábia. Afinal, em 1993 ele acabou realizando aquela que é a sua grande obra-prima, "O Pagamento Final", baseado no livro de Edwin Torres.

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