sexta-feira, setembro 28, 2018

O primeiro mentiroso, de Ricky Gervais e Matthew Robinson **


Em termos conceituais, a trama de “O primeiro mentiroso” (2009) tem até uma premissa interessante: em uma sociedade em que a ideia de mentira é inexistente para as pessoas, o que aconteceria se alguém resolvesse não falar a verdade? Os diretores Ricky Gervais e Matthew Robinson conseguem arrancar alguns momentos engraçados a partir dessa trama, principalmente no terço inicial da narrativa. Posteriormente, entretanto, o filme cai em um modelo bastante convencional de comédia romântica moralista, jogando fora a possibilidade de realizar uma abordagem mais ousada e contundente sobre a hipocrisia e que certamente traria um resultado final bem mais memorável.

quinta-feira, setembro 27, 2018

Vai trabalhar, vagabundo, de Hugo Carvana ****


Um filme como “Vai trabalhar, vagabundo!” (1973) consegue sintetizar de maneira precisa quem era a pessoa que o concebeu, bem como o contexto histórico em que foi lançado. Hugo Carvana era um ator que começou fazendo chanchadas nos anos 50 e depois participou de expressivos filmes do Cinema Novo. Assim, sua obra de estreia como diretor evidencia essa sua trajetória. O roteiro se estrutura como uma comédia picaresca e que frequentemente cai no pastelão. Ao mesmo tempo, a encenação tem um caráter libertário e por vezes antinaturalista que beira o delirante que nos remete ao modus operandi de Glauber Rocha. O que era para ser uma junção confusa de referências artísticas acaba se revelando como uma narrativa bastante funcional e divertida, carregada de um rico subtexto anárquico e humanista. A direção de Carvana é segura e consegue dar uma coerência desconcertante para uma narrativa aparentemente bagunçada – é como se o filme fosse uma grande brincadeira entre amigos, impressão essa reforçada pela sequência final, mas com um acabamento estético-temático que torna tudo muito envolvente para o espectador, além de várias nuances artísticas antológicas, vide a ótima trilha sonora, os diálogos muito espirituosos e um elenco em estado de graça (Paulo César Pereio, Nelson Xavier e o próprio Carvana apresentam algumas de suas mais memoráveis atuações). Obra fundamental na história do cinema brasileiro, “Vai trabalhar, vagabundo!” faz estranhar como o mesmo Carvana apresentou em seus últimos anos trabalhos tão insípidos e desajeitados como “Não se preocupe, nada vai dar certo” (2011) e “Casa da mãe Joana 2” (2012).

quarta-feira, setembro 26, 2018

Uma questão pessoal, de Paolo e Vittorio Taviani ***


Nos anos 70 e na primeira metade da década de 80, os irmãos-diretores Paolo e Vittorio Taviani realizaram preciosos filmes que traziam uma peculiar marca autoral que sintetizava de maneira fluente tanto princípios de abordagem naturalista quanto notáveis nuances de realismo mágico. Posteriormente, sua filmografia, ainda que de considerável competência formal, foi se tornando mais convencional e academicista. Somente com o brilhante “César deve morrer” (2012) eles retomaram aquela veia criativa acima da média. Canto do cisne dessa parceria (Vittorio morreu nesse ano), “Uma questão pessoal” (2017) está bem longe do grande pico artístico dos Tavianni, mas ainda assim é uma obra relevante e também consegue revelar em algumas passagens a típica assinatura artística deles. A fraqueza da produção está no excessivo apego a uma estética algo asséptica e mofada em algumas passagens, principalmente quando a trama fica centrada nos flashbacks do triângulo amoroso no qual está envolvido o protagonista Milton (Luca Marinelli). Na metade final do filme, entretanto, quando a narrativa se concentra nas sequências de batalhas entre fascistas e guerrilheiros na 2ª Guerra Mundial em uma área rural da Itália, prevalece um instigante caráter mais sardônico e amargo a retratar a condição do absurdo existencial em uma guerra – por vezes, a narrativa se mostra localizada em uma estranha área entre o anedótico e o delirante, com destaque para a memorável cena de um demente prisioneiro fascista que fica simulando para uma pequena plateia de camponeses um solo de bateria em estilo jazz-improviso. A bela sequência final de “Uma questão pessoal”, de forte teor poético e libertário, é outro momento a evidenciar a particular concepção estética-humanista dos Taviani.

terça-feira, setembro 25, 2018

Barbara, de Mathieu Amalric ****


Há uma forte conexão artística-temática entre “Turnê” (2010) e “Barbara” (2017), ambas dirigidos pelo Mathieu Amalric – os dois filmes versam sobre os bastidores de produções culturais, mostrando como a tensão dramática entre aqueles envolvidos em tais atividades também serve como força criativa no resultado final de tais obras. Se em “Turnê” essa abordagem tinha como cenário as viagens de uma companhia de shows de burlesco pelo interior da França, tendo ainda uma narrativa de traço fortemente naturalista, em “Barbara” temática e encenação se tornam mais intrincados – a trama conta a história da produção de um longa de recriação dramática da trajetória da cantora e compositora Barbara Brodi, com Amalric propondo um entrecruzamento constante entre encenação e recortes documentais a um ponto em que a linha entre o real e o imaginário fica bastante tênue. Esse viés estético não é gratuito, pois o foco principal do roteiro está justamente no processo de composição dramática da atriz Brigitte (Jeanne Balibar) para chegar no âmago de Barbara e como nesse processo intérprete e personagem acabam por vezes se tornando uma entidade única. Amalric também interpreta o diretor dessa fictícia produção biográfica e seu papel evoca os dilemas e contradições principais da trama: o quanto daquilo que é recriado em cena apresenta a verdade e o quanto é idealizado/imaginado? A resposta para tais indagações nunca é direta e taxativa. Na verdade, não há nem uma resposta propriamente dita. Nesse fascinante jogo de espelhos engendrado por Amalric, o que efetivamente prevalece é a verdade da legítima e apaixonada expressão artística dos indivíduos.

segunda-feira, setembro 24, 2018

Buscando, de Aneesh Chatanty *


Em tempos em que um grande número de pessoas passa boa parte do seu tempo ligado diretamente ao mundo virtual, é natural que a própria maneira tradicional de se ver um filme acabaria sofrendo essa influência. “Buscando...” (2018) não é a primeira obra cinematográfica a ter praticamente toda a sua ação configurada no espaço de uma tela de computador em diversas modalidades de exposição virtual (redes sociais, sites de notícias, aplicativos de comunicação e afins), mas talvez seja aquela nessa linhagem que tenha tido maior exposição midiática até agora. Nesse caso, dá para dizer que estamos diante de um daqueles casos de ruptura na linguagem cinematográfica? O resultado final da produção dirigida por Aneesh Chatanty prova que não é para tanto. Por mais que os diversos truques estéticos remetendo a uma incorporação de recentes recursos tecnológicos de software a uma formatação narrativa de cinema estejam presentes, eles pouco contribuem para que o filme fuja dos mais manjados e irritantes lugares comuns no gênero suspense em termos formais e temáticos. A edição de “Buscando...” é até competente na preservação de um certo ritmo narrativo, mas a impressão geral é de um trabalho raso e genérico que não apresenta qualquer momento efetivo de alguma transcendência sensorial em termos de experiência audiovisual. Se em um primeiro momento há até um impacto de novidade na forma de sua encenação, com o tempo tais trucagens vão se revelando apenas enfadonhas e cansativas. No mais, o roteiro acentua essa impressão de “velha novidade”: na saga de um pai especialista em tecnologia da informação que está na busca de sua filha desaparecida, há em seu subtexto aquela ideologia tão requentada em Hollywood nos últimos tempos de um justiceiro sagaz e obstinado que se revela muito mais eficiente no combate às injustiças que a máquina corrupta e ineficiente do poder estatal (Bolsonaro, MBL e neoliberais em geral adoram esse ideário...).

quarta-feira, setembro 19, 2018

Camocim, de Quentin Delaroche ***


Em um primeiro momento, a impressão que se tem do documentário “Camocim” (2017) é que o filme escolhe como protagonista a cabo eleitoral Mayara Gomes e que na formatação da narrativa ela seria como uma espécie de heroína idealista na sua luta em ajudar a colocar na câmara dos vereadores de sua cidade um rapaz que ela acredita representar os seus ideais sócio-políticos. Nos diálogos de Mayara com parentes, amigos, conhecidos e eleitores há uma sugestão de que o partido adversário representaria uma velha maneira de fazer política baseada no poder patriarcal e no clientelismo. Ou seja, é como se a obra dentro de sua abordagem temática tivesse um certo caráter maniqueísta a evocar uma luta entre o bem e o mal. Em algumas nuances estéticas e textuais, entretanto, a obra vai adquirindo uma visão artística e existencial mais complexa e amarga sobre a realidade que é focada pela câmera. Por mais que as atitudes e ideias de Mayara se mostrem atrativas pela veemência e espontaneidade com que são retratadas em tela, ao se observar o contexto tanto em um âmbito familiar e pessoal da garota quanto do cenário coletivo da cidade se pode perceber que o embate político está muito mais parecido com uma rivalidade clubística, com tintas de um arrivista jogo de interesses sócio-econômicos, do que com um conflito evidentemente ideológico. Entre os dois partidos que disputam corações e mentes em Camocim em nenhum momento há uma efetiva contraposição de princípios ideológicos, apenas há uma diferenciação pelas suas respectivas cores e números (aliás, vale lembrar que os números de tais partidos são de duas entidades de evidentes tendências de direita). Nessa perspectiva, o documentário dirigido por Quentin Delaroche consegue refletir de maneira perspicaz e contundente a pobreza do debate político dentro da sociedade brasileira, em que a questão ideológica é banalizada e menosprezada em nome de uma difusa e hipócrita combinação de moralismo, religiosidade obscurantista, carreirismo e insensibilidade social. Nesse sentido, a aridez formal de “Camocim” parece o reflexo da aridez de humanismo e racionalidade no atual cenário eleitoral brasileiro.

terça-feira, setembro 18, 2018

O banquete, de Daniela Thomas ***


Há uma forte conexão artística-existencial entre “O banquete” (2018) e o filme imediatamente anterior de Daniela Thomas, “Vazante” (2017). Se neste a cineasta traçava os primórdios da formatação da elite brasileira, em que seus valores e costumes estavam ligados de maneira intrínseca ao regime escravista da sociedade brasileira colonial, na obra mais recente mostra essa mesma elite no princípio da década de 90 perdida entre um hedonismo dissimulado de sofisticação e inconsequentes e arrogantes demonstrações de seu prestígio sócio-econômico. E entre os dois filmes há pelo menos mais uma coisa em comum: entregam menos do que prometem. Os primeiros dois terços da narrativa de “O banquete” são sedutores, com Thomas conseguindo apresentar uma bela síntese entre preciosismo imagético, interação magnética entre sinuosos movimentos de câmera e trilha sonora jazzy que dão uma certa sensação “chapada” ao espectador, espirituosos diálogos e algumas ótimas atuações de seu elenco (Caco Ciocler, por exemplo, tem a melhor atuação disparada de sua carreira). É interessante também que a cineasta consegue oferecer uma interessante perspectiva feminina na exposição do machismo implícito nas relações de poder entre os personagens – Mauro (Rodrigo Bolzan) e Plínio (Ciocler), detrás da respeitável aparência de jornalista e advogado bem-sucedidos, aos poucos se revelam como indivíduos imaturos emocionalmente e com enorme vacuidade moral. O ato final do filme, entretanto, se aprofunda em soluções formais e temáticas óbvias em excesso, o que acaba tirando muito do impacto dramático e mesmo do cruel sarcasmo que antes predominavam no filme. O que era para ser catártico se converte em melodrama barato, desperdiçando, inclusive, contundentes aspectos da trama e mesmo personagens que insinuavam algumas relevantes nuances psicológicas.

segunda-feira, setembro 17, 2018

Encontros e desencontros do amor, de David Wain *


Se em “Mais um verão americano” (2001) o diretor David Wain fez uma inventiva e sarcástica reinvenção dos filmes de acampamento dos anos 80, em “Encontros e desencontros do amor” (2014) ele procura fazer algo parecido em relação ao gênero comédia romântica, mas com um resultado final bem menos satisfatório. De certa forma, essa mesma proposta artística já havia sido elaborada em “Uma comédia nada romântica” (2006), inclusive com a mesma pegada metalinguística e também teve um saldo pífio. Falta ao filme de Wain uma narrativa orgânica e um roteiro mais ousado. Por mais que a aparência seja de uma moderna tiração de sarro com um modelo consagrado de produção, as escolhas criativas do cineasta fazem com que o filme caia em uma formatação conservadora e despersonalizada. Há até algumas boas piadas e o elenco apresenta algumas atuações carismáticas. É muito pouco, entretanto, para sustentar o interesse.

sexta-feira, setembro 14, 2018

O predador, de Shane Black ***


Não se trata de ser saudosista, mas a comparação inevitável que se estabelece entra o clássico “Predador” (1987) e o recente “O predador” (2018) também marca o diferencial do que mudou em termos estéticos e comerciais no que diz respeitos a filmes de ação norte-americanos blockbusters em 30 anos. Entre as grandes virtudes do longa dirigido por John Mc Tierman estavam a narrativa e encenação enxutas, a atmosfera casca-grossa na interação entre personagens e situações do roteiro, as explosões de violência econômicas e graficamente impactantes e uma certa aura de mistério que se conseguia manter em torno da figura do alienígena caçador de humanos, fazendo com que ele se tornasse um ícone cinematográfico por todos esses anos e expandisse a sua influência para outras mídias. Nessa continuação dirigida por Shane Black, o enfoque é bastante diferente – as cenas de ação são espalhafatosas, o ritmo narrativo é frenético, há um tom infanto-juvenil na caracterização de personagens e situações (não à toa, uma das principais figuras da trama é um garoto autista que sofre bullying e é um gênio!), os momentos de violência explícita lembram uma caracterização típica de video grame e as motivações dos predadores são tão esmiuçadas pelo roteiro que não resta espaço algum de tensão dramática para eles. Tudo isso não quer dizer necessariamente que o filme de Black seja ruim. É até bem divertido por vezes. Por mais que se saiba que Black já fez coisa muito melhor (“Beijos e tiros”, “Dois caras legais”), o cineasta revela um seguro domínio da narrativa e consegue garantir o interesse do espectador em meio a uma enxurrada de piadinhas bestas e algumas obviedades formais e temáticas. A sensação de incômodo está na impressão final de que “O predador” dificilmente colará em nosso imaginário como o inesquecível filme de McTierman.

quinta-feira, setembro 13, 2018

O protetor 2, de Antoine Fuqua ***


No seu terço inicial, a impressão é que “O protetor 2” (2018) vai ficar repetindo de maneira incansável aqueles mesmos irritantes maneirismos estéticos e narrativos que marcaram o primeiro filme, além do roteiro semelhante a evocar simplórios moralismos. Só que chega um momento no filme, entretanto, que o próprio diretor Antoine Fuqua dá a impressão de encher o saco desse marasmo criativo e resolve entregar uma bem decente obra no gênero ação, chegando até lembrar aquele cineasta que pareceu tão promissor no ótimo “Dia de treinamento” (2001). Há ótimas sequências de pancadarias e tiroteios, a tensão dramática de algumas cenas realmente envolve o espectador e mesmo Denzel Washington se mostra bem convincente em sua caracterização taciturna e algo altista. Aliás, a presença de Washinton aliada ao formalismo competente engendrado por Fuqua no faz lembrar algumas memoráveis produções dirigidas pelo saudoso Tony Scott. Para coroar essa bela transformação do filme, toda aquela sequência final do duelo do protagonista Robert McCall (Washington) com um assustador grupo de vilões paramilitares em um vilarejo litorâneo tomado por uma violenta tempestade é antológica na sua caracterização imagética e na coreografia da ação, algo como um faroeste reciclado com acentuadas doses de violência gráfica.

quarta-feira, setembro 12, 2018

A freira, de Corin Hardy *


O Hospital Mãe de Deus, localizado em Porto Alegre e que tem em sua administração uma fundação religiosa católica, poucos dias após o STF ter liberado a terceirização em praticamente todas as áreas de trabalho, demitiu mais de 300 funcionários do seu quadro, colocando em seus respectivos lugares terceirizados que ganham bem menos e com direitos trabalhistas sensivelmente reduzidos. A uma atitude cruel e de pura exploração econômica como essa se pode dar o nome de cristã. Sério, depois de uma medida dessa alguém pode dizer que tem medo de satã e outras “maléficas” entidades místicas fictícias afins? Começar uma resenha sobre uma nulidade artística como “A freira” (2018) com essa informação pode parecer até estapafúrdio, mas não pude resistir a fazer tal comparação depois de constatar a carolice constrangedora e estúpida desse filme dirigido por Corin Hardy e ficar sabendo da postura covarde e gananciosa do referido hospital. É claro que a produção cinematográfica em questão não é ruim somente por tal analogia existencial-temática. Trata-se de uma narrativa que engendra de maneira canhestra clichês baratos de horror com os mais batidos preceitos formais e textuais do gênero aventura, tudo isso disposto em tela da forma mais despersonalizada e asséptica possível e com um roteiro artificioso e estéril repleto de simplificações infantilóides. No conjunto geral, algo como uma cruza bastarda escrota de “O exorcista” (1973) com “O código Da Vinci” (2006), e bem distante das eficientes atmosferas de horror retrô da franquia “Invocação do mal” da qual se originou. E a decepção com o filme fica ainda mais acentuada quando se observa a sua defesa patética da igreja católica como guardiã moral e espiritual do mundo.

terça-feira, setembro 11, 2018

A destruição de Bernardet, de Pedro Marques e Cláudia Priscilla ***1/2


Nas sequências iniciais de “A destruição de Bernardet” (2016) há trechos de áudio de um depoimento em que um homem discorre sobre a importância de Jean-Claude Bernardet como crítico de cinema, ressaltando suas virtudes e relevância dentro do panorama cultural brasileiro, bem como também questiona de maneira veemente sobre a sua opção de nos últimos anos enveredar na área da representação em alguns filmes de escasso caráter comercial. A partir de tal veredicto, o documentário dirigido por Pedro Marques e Cláudia Priscilla constrói a sua narrativa, mantendo um caráter ambíguo em suas intenções artísticas e existenciais: a obra quer contestar tal depoimento, reforçar suas impressões ou quer fazer tudo isso ao mesmo tempo? Mais do que simplesmente se mostrar como personagem principal, Bernardet parece conduzir de maneira sutil e algo perversa o direcionamento do filme que versa sobre a sua vida. Há um certo teor de narcisismo na sua figura, tanto naquilo que ele fala como na maneira como se comporta em cena. Esse viés megalômano, entretanto, só reforça o humanismo e o intenso questionamento estético do documentário. Depois de passar anos analisando minuciosamente as produções alheias, é como se Bernardet resolvesse unir a sua visão sobre o cinema, seus questionamentos intelectuais e mesmo alguns aspectos intimistas e configurasse tudo isso em um legado fílmico. Nesse sentido, “A destruição de Bernardet” se conecta profundamente com os longas de Kiko Goifman e Cristiano Burlan nos quais ele atuou, com todos eles servindo como a coerente extensão do pensamento vivo de Bernardet, revelando assim forte coerência com a sua atividade de crítico cinematográfico. Acariciando e comendo borboletas, ironizando carinhosamente detratores, questionando a dominação sócio-econômica do capitalismo sobre a arte e a vida, expressando-se em estranhas danças e vocalizações, voltando-se com seca lucidez sobre reminiscências pessoais e valorizando o cinema como importante atividade artística para gerar desconforto e inquietações na sociedade pequeno-burguesa ocidental, Bernardet toma para si a obra em que ele a princípio deveria ser apenas a “temática principal” e a modela dentro do seu amplo projeto cultural-pessoal, mostrando que vai ser sempre o indomável indivíduo intelectual-artísta de difícil categorização.

segunda-feira, setembro 10, 2018

Yonlu, de Hique Montanari *


A história de Vinicius Gageiro Marques, o Yonlu, é bastante emblemática dos nossos tempos. Adolescente com peculiar talento para música, ilustração e poesia, foi bastante prolífico no ambiente de seu quarto ao produzir a sua arte. Após se matar aos 16 anos, com a ajuda de uma espécie de foro virtual de auxílio para o cometimento de suicídios, acabou tendo suas canções, poemas e ilustrações divulgadas de maneira póstuma (até David Byrne lançou um disco com as gravações de Yonlu). Dessa forma, era natural que uma longa-metragem biográfico de sua trajetória despertasse curiosidade e expectativas. O resultado final de “Yonlu” (2017), recriação dramática dos últimos meses de vida do garoto, entretanto, deixa bastante a desejar tanto no sentido de valorizar a figura humana e artística de seu protagonista como obra cinematográfica em si. Existe a pretensão de que a narrativa esteja em sintonia com a própria natureza instável e complexa do protagonista, fazendo com que o roteiro e a atmosfera da obra por vezes se vinculem a uma abordagem delirante e algo fragmentada. O problema principal desse direcionamento estético é que a soluções criativas do diretor Hique Montanari acabam se revelando equivocadas em termos de concepção e execução. O tom de onirismo de algumas sequências resvala em truques audiovisuais apelativos e simplórios (as representações cênicas do fórum de incentivadores de suicídio, por exemplo, parecem videoclipe oitentista bagaceiro). Mas pior mesmo são as cenas de entrevista de uma repórter (Mirna Zpritzer) com o psiquiatra (Nelson Diniz) que consultava com Yonlu – diálogos e dinâmica cênica dão a impressão de vídeo institucional. Thalles Cabral no papel do protagonista também é outra escolha problemática da produção, pois sua interpretação está mais para uma síntese incômoda de fotogenia asséptica e anacrônica afetação James Dean. Por isso que um dos melhores momentos do filme, ao lado dos bons números de animação da obra, ocorre no final quando aparecem cenas documentais do próprio Yonlu atuando em números caseiros, dando a impressão de insólito encantamento pela bizarrice, espontaneidade e autoironia de sua postura. Aliás, um pouco de senso de humor, ainda que mórbido, típico da persona de Yonlu, é o que faz falta nesse cruzamento de “Malhação”, psicodelia barata e discurso conservador que representa o filme de Montanari.

quinta-feira, setembro 06, 2018

Caçada na noite, de John Mackenzie ****


Em termos de roteiro, “Caçada na noite” (1980) não se diferencia muito daquele modelo clássico do gênero gangster. A trama obedece a uma lógica típica de conto moral – há aquela exposição de uma rotina hedonista originária do lucro dos “negócios”, alguns tiroteios e porradarias caprichando no grafismo violento, lições maquiavélicas sobre poder e a inevitável e fatalista queda dos anti-heróis diante de circunstâncias novas (ou seja, outros bandidos mais espertos). Uma coisa há de se admitir, entretanto: mesmo dentro desses parâmetros previsíveis, o roteiro do filme dirigido por John Mackenzie é muito bem delineado, tanto no encadeamento das situações quanto pelos ótimos diálogos. A força da obra também está na sua precisa e objetiva encenação e na narrativa equilibrada, o que faz com que o filme tenha uma tensão dramática perturbadora e mesmo uma certa ironia desconcertante. Outro acerto é a ótima direção de atores, fazendo com que Bob Hoskins e Helen Mirren tenham desempenhos antológicos. Nesse forte conjunto artístico, “Caçada na noite” acaba se encaixando em um expressivo rol de grandes filmes policiais britânicos, estando ao lado de obras do naipe de “Carter – O vingador” (1971) e “Nem tudo é o que parece” (2004).

quarta-feira, setembro 05, 2018

O espelho, de Jafar Panahi ****


Dentro daquilo que se pode classificar como típico no cinema iraniano, “O espelho” (1997) estaria dentro dos preceitos do que se poderia classificar como previsível: uso de crianças como atores, toques de metalinguagem, sutil crítica sócio-política. Por outro lado, a forma com que o diretor Jafar Panahi combina tudo isso é muito original e transforma o ator de assistir ao filme em questão em uma experiência única, independente do seu país de origem. Mergulhar em sua narrativa é uma jornada desconcertante para o espectador – parte-se de uma abordagem narrativa linear e naturalista, em que o registro seco e objetivo de um fato do cotidiano, a espera da filha pela mãe que devia buscá-la na escola e a consequente peregrinação da garota pela cidade na tentativa de chegar em casa, cria uma tensão palpável, além de trazer momentos preciosos na captação de sensações e sentimentos de anônimos nas ruas e nos veículos coletivos, até que de forma abrupta tudo isso se rompe ao se caracterizar como uma filmagem interrompida, ou seja, um filme dentro do filme. A partir desse momento, “O espelho” se converte em várias realidades que se sobrepõem, como universos paralelos se chocando. Panahi incorpora aparentes “defeitos” e imperfeições como importantes elementos estéticos e narrativos, dificultando a precisa determinação entre o real e o imaginário, mas sem esconder a sua própria verdade artística-existencial: por mais que esse jogo formal algo delirante confunda a nossa percepção, sempre está presente a atmosfera de opressão de uma inclemente sociedade patriarcal e obscurantista.

terça-feira, setembro 04, 2018

Rainha do mundo, de Alex Ross Perry ***


A impressão que se pode ter do cineasta norte-americano pela amostragem de sua filmografia até agora é a de uma espécie de Woody Allen reciclado e mais moderninho a retratar o fechado mundo de uma certa elite cultural de “jovens adultos” envolvidos em um restrito universo artístico. A semelhança é tanta que em “Rainha do mundo” (2015) vem a lembrança daqueles filmes em que Allen procurava dar vazão à sua obsessão pelas carregadas atmosferas psicológicas de alguns clássicos de Ingmar Bergman. Ou seja, não chega a ser algo propriamente muito original, mas é de se reconhecer que por vezes Perry consegue extrair momentos bem inquietantes em seu filme. No agressivo jogo de agressões psicológicas entre as amigas neuróticas Catherine (Elisabeth Moss) e Ginny (Katherine Waterston), disfarçado em hipócritas conversas “civilizadas”, fica estabelecida uma ambígua atmosfera de sutilezas comportamentais e pura desintegração mental. Se a encenação e ambientação por vezes sugerem uma abordagem quase resvalando no asséptico, em momentos pontuais o filme deixa extravasar uma perturbadora fúria cênica, principalmente quando retrata a avassaladora dissolução mental de Catherine – nesse aspecto, claro destaque para a interpretação de Moss, que remete ao desempenho antológico de Bette Davis em “O que terá acontecido à Baby Jane?” (1962).

segunda-feira, setembro 03, 2018

As aventuras amorosas de um padeiro, de Waldir Onofre ****


Se o documentário “Histórias que o nosso cinema (não) contava” (2017) defende com a ardor a ideia de uma parcela do cinema brasileiro popular setentista que apresentava um forte grau de inventividade artística e um grande teor de crítica e ironia tanto à ditadura militar da época quanto aos hipócritas valores morais da sociedade ocidental contemporânea, “As aventuras amorosas de um padeiro” (1976) é um exemplar enfático dessa tendência. No único longa-metragem dirigido por Waldir Onofre, há uma junção ao mesmo tempo alucinada e de coerência desconcertante de diversos elementos estéticos e temáticos que se unem em uma narrativa que em um primeiro momento evoca preceitos formais e textuais típicos das comédias de costume da época, mas que aos poucos vai se convertendo em algo cada vez mais deliciosamente inclassificável. Em uma produção “normal” do gênero na época, as desventuras sentimentais-sexuais de Rita (Maria do Rosário) rumariam para uma conclusão moralizante e conciliadora a evocar a infalibilidade das instituições sócio-familiares. No filme de Onofre, entretanto, tudo isso vai para o espaço, com a formatação de conto moral e a encenação naturalista se dissolvendo em nome de uma atmosfera delirante de musical macumbeiro, insólitas referências eruditas, estilizado senso cênico e senso de humor entre o pastelão e o sardônico. Essa bizarra e genial abordagem formal acolhe com sensibilidade um roteiro de caráter libertário e contestador a dissecar sem concessões sexismo, racismo e preconceito de classe. O resultado final desse conjunto artístico sui generis é uma das obras “malditas” (no sentido de desafiadora) mais marcantes da história do cinema brasileiro, ao lado de pérolas como “Os monstros de babaloo” (1971) e “SuperOutro” (1989).