quinta-feira, novembro 29, 2018

Motorrad, de Vicente Amorim *


O diretor Vicente Amorim atira para todos os lados em “Motorrad” (2017) – fotografia estilo cartão postal a registrar uma região árida do interior brasileiro, cenas de corridas e perseguições com motocicletas, direção de arte que remete à franquia “Mad Max”, elementos fantásticos e forte teor de violência gráfica que se relacionam a produções de horror contemporâneo. Na ânsia de se mostrar “moderno”, erra em todos os alvos. Os mencionados elementos diversos da narrativa não se ligam com alguma coerência estética e temática. Falta convicção artística para tirar o seu filme daquela zona situada entre o fake e o asséptico. As sequências de ação não têm brilho criativo, resvalando várias vezes no francamente tosco. Não há efetiva tensão dramática nas cenas e os personagens são destituídos de carisma. Nesse conjunto constrangedor de equívocos, o filme cai com frequência no humor involuntário.

quarta-feira, novembro 28, 2018

Tempo de decisão, de Noah Baumbach **1/2


O diretor Noah Baumbach é um dos nomes mais expressivos do cinema independente contemporâneo – a afirmação pode ser óbvia, mas é difícil não sair dela. Para o bem e para o mal. Assim como já mostrou em alguns trabalhos que é capaz de memoráveis picos criativos, em outros deixou evidente uma certa autoindulgência na forma superficial e previsível com que tratou temáticas típicas dessa linhagem cinematográfica, principalmente quando se voltou para o gênero melodrama que trata de questões geracionais. “Tempo de decisão” (1995), uma das primeiras produções que dirigiu, é um exemplar claro dessa tendência de Baumbach em se voltar para o próprio umbigo sob um olhar estético bastante convencional, ainda que se pretenda a formular narrativa e formalismo metidos a moderninho. Em um contexto geral, não chega a ser exatamente ruim. É tudo apenas irrelevante e esquecível em suas ideias e formulações mofadas.

terça-feira, novembro 27, 2018

Infiltrado na Klan, de Spike Lee ****


Pelo meu interesse por cinema e sua história, assisti a “O nascimento de uma nação” (1915) em mais de uma oportunidade. A forma com que estrutura a sua narrativa fez do filme um dos marcos fundadores da linguagem cinematográfica. Nesse sentido, esse aspecto formal e estético da obra dirigida por D.W. Griffith é o que lhe deu uma perenidade histórica e artística. O lado sócio-político da produção é evidentemente repugnante no seu racismo escancarado e na visão histórica distorcida. Confesso, entretanto, que nas oportunidades em que vi o filme esse lado preconceituoso me pareceu algo distanciado, não no sentido de que não houvesse mais racismo no mundo, mas pelo simples fato que o tratamento grotesco oferecido por Griffith soava tão exagerado que parecia não encontrar ressonância tão imediata com os dias de hoje (pelo menos nos períodos em que assisti ao filme). Bem, os fatos dos últimos anos no Brasil e no mundo deixaram bem evidente o meu equívoco nessa apreciação. Assim, não é à toa que Spike Lee cite com tanta frequência “O nascimento de uma nação” em “Infiltrados na Klan” (2018). Na verdade, ele até recorre com lucidez desconcertante aos recursos do falso distanciamento existencial e mesmo no uso de certas estilizações e clichês narrativos para construir uma obra que varia com naturalidade perturbadora entre a farsa e o realismo. O cineasta se utiliza de uma abordagem que em um primeiro momento pode soar como simples maniqueísmos e flertando por vezes com o puro panfletarismo ideológico-racial – as sequências envolvendo reuniões entre os personagens negros (festas, protestos, debates) são tomadas por uma atmosfera que beira a beatitude, enquanto a grande maioria dos brancos são retratados como um bando de caipiras ignorantes e racistas. Aliás, um dos seus grandes trunfos artísticos é como ele trabalha com um detalhismo cênico impressionante e uma brilhante direção de arte de puro imaginário setentista, vide passagens antológicas como o baile na boate do primeiro encontro romântico entre o protagonista Ron Stallworth (John David Washington) e Patrice (Laura Harrier) e as contundentes referências visuais e temáticas com o gênero blackexploitation. Ocorre, entretanto, que esse viés narrativo convencional na forma com que se expõe o bem e o mal, que poderia até soar ingênuo, aos poucos vai adquirindo contornos humanistas mais profundos no momento em que se começa a perceber que o discurso dos antagonistas ganha uma ressonância muito próxima com aquilo que se propaga por teóricos e governos ligados a ultra direita na atualidade, além do roteiro mostrar de maneira crua que não há soluções fáceis ou mágicas para superar um sentimento que está ligado de maneira íntima e direta com os mecanismos de opressão sócio-econômica que dominam o mundo contemporâneo. As assustadoras imagens documentais finais confirmam com devastadora coerência a sombria e pessimista visão de mundo do filme, e reforçam ainda mais a impressão de que “Infiltrado no Klan” é um dos títulos mais expressivos da filmografia de Spike Lee.

segunda-feira, novembro 26, 2018

Memórias secretas, de Atom Egoyan ***


Para quem admira o trabalho do diretor Atom Egoyan por obras memoráveis e instigantes como “Exótica” (1994) e “O doce amanhã” (1997), pode parecer um tanto frustrante vê-lo nos últimos anos trabalhar dentro de padrões mais convencionais vinculados ao gênero suspense. “Memórias secretas” (2015) é um claro exemplar dessa tendência na filmografia recente do cineasta. O roteiro é um tanto surrado em sua formulação, principalmente nas “surpresas” novelescas do terço final da narrativa, repisando em velhos clichês de filmes relativos às consequências da 2ª Guerra Mundial (se bem que o avanço de ideias típicas do nazi-fascismo nos dias de hoje mostra que nem mesmo a lembrança constante do conflito via cinema foi capaz de ensinar algo para a humanidade). Mesmo que o resultado final da obra se situe dentro de uma incômoda previsibilidade, entretanto, é evidente também que em determinadas passagens da produção fica evidente a mão diferenciada de Egoyan em termos estéticos e mesmo temáticos. A encenação tem uma certa sobriedade dramática que consegue dar uma consistência psicológica perturbadora para cenas importantes. Além disso, há algumas nuances no roteiro que revelam um bem-vindo viés irônico em alguns dos exageros da trama. De se destacar ainda as elegantes interpretações de parte do elenco que oferecem dignidade para personagens com tendências para o melodrama barato. Ou seja, nesse contexto geral, dá para dizer que Egoyan ainda tem crédito suficiente para ser um nome para sempre se prestar atenção.

sexta-feira, novembro 23, 2018

A cidade dos piratas, de Otto Guerra ****


A filmografia de animações do diretor Otto Guerra sempre me pareceu marcada por duas problemáticas características básicas – um evidente desleixo em termos de narrativa e concepção gráfica e uma assinatura artística um tanto despersonalizada que variava de acordo com o material com que ele trabalhava. “A cidade dos piratas” (2018) se mostra como a melhor produção disparada dirigida por Guerra justamente por conseguir superar tais pontos negativos, além de mostrar um impressionante grau de ousadia estética e temática em sua concepção e realização. Ao invés de fazer uma simples e previsível adaptação dos quadrinhos clássicos dos Piratas do Tietê, um dos trabalhos mais conhecidos da quadrinista Laerte, Guerra extrapola em suas intenções e joga na cara do espectador uma viagem sensorial poética, libertária e por vezes até muito engraçada. Logo no início da narrativa, fica sugerido que veremos uma adaptação cinematográfica tradicional de quadrinhos, com direito a um grafismo refinado, um senso de ação muito bem delineado e um humor ácido e escroto (só nessas sequências iniciais, Guerra já superaria de longe tudo que já fizera até então em outras animações). Logo, entretanto, tudo isso vai para o espaço e o que fica à mostra é tanto uma reflexão irônica e amarga sobre o processo criativo em crise do diretor, que envolve também a descoberta de um câncer no meio da realização do filme, quanto um inventário lírico e contundente sobre a vida, a arte e o pensamento vivo de Laerte. A narrativa fica um tanto fragmentada, não muito linear, mas aos poucos tudo vai adquirindo uma desconcertante coerência formal-existencial-política. A conexão com o presente marcado pela opressão de um poder patriarcal-fascista é bastante pertinente, mas “A cidade dos piratas” trata na verdade de desejos, preconceitos e desilusões de um caráter atávico (não à toa, a mencionada sequência inicial se desenvolve no Brasil da época dos bandeirantes). Nesse processo narrativo e mesmo discursivo, há uma impressão de caos audiovisual com traços de certo egocentrismo, mas tudo isso é necessário para que em momentos cruciais da narrativa se fique com a sensação de se entrar em uma fascinante frequência sensorial que vai do perturbador ao encantador (é de se reparar, por exemplo, nas cenas em que a conjunção entre a narração serena de Laerte, o tom lisérgico e delicado do traço gráfico e a sutileza dos temas musicais gera um efeito hipnótico para quem assiste). O melhor longa de animação brasileiro já lançado? O melhor filme gaúcho de todos os tempos? Talvez seja cedo ou precipitado para tais vaticínios, mas no momento o que interessa efetivamente é que Guerra e Laerte nos entregam um bálsamo artístico nesses tempos dolorosos que vivemos.

quinta-feira, novembro 22, 2018

Inimigos pelo destino, de Abel Ferrara ***1/2


Se “Amor, sublime amor” (1961) era uma releitura estilizada/musicada da clássica peça shakespeariana “Romeu e Julieta”, “Inimigos pelo destino” (1987) adapta ambas as obras pelo olhar muito particular do diretor norte-americano Abel Ferrara. A trágica história original de amor impossível entre dois jovens permanece praticamente a mesma, assim como a atualização da trama para um ambiente de gangues em eterno desafio. O que muda em termos efetivos é a perspectiva mais sórdida e carregada de uma religiosidade distorcida que é típica da filmografia de Ferrara. O diretor capricha na violência gráfica e na encenação exagerada, mas sem cair no choque sensorial gratuito. Assim, o tradicional drama dos amantes se converte em algo entre o bizarro conto moral e o exploitation descabelado. Shakespeare renasce sob um âmbito artístico que tanto se mostra repulsivo quanto fascinante nessa moldura barroca-realista.

quarta-feira, novembro 21, 2018

Vizinhos 2, de Nicholas Stoller **1/2


Na continuação do primeiro “Vizinhos” (2014), o diretor Nicholas Stoller, também responsável por aquele primeiro filme, não mudou muito em relação à abordagem artística – em meio a uma narrativa típica de comédia escrachada, há um subtexto a criticar com ironia os dilemas e contradições da classe média norte-americana contemporânea. Em “Vizinhos 2” (2018), inclusive, até se insinua uma leve menção a questões feministas, o que permite à produção ainda fazer uma leve desconstrução do gênero “filmes de fraternidade universitária com muito sexo, drogas e rock and roll”. Há momentos bem engraçados, principalmente quando se envereda pelo lado de um humor físico que puxa para a linha entre o grosseiro, o violento e o levemente escatológico, mas em um contexto geral prevalece uma incômoda sensação de clichês narrativos sendo repisados com algum excesso. Paira uma impressão de que Stoller dá uma frouxada na direção para acentuar uma atmosfera de comicidade alucinada, para dar um clima mesmo de “chapação” para a narrativa. Se em alguns momentos essa pretensão se revela justificada ao dar uma certa verdade para a encenação, também é evidente em outras sequências que essa frouxidão na narrativa deixa “Vizinhos 2” um tanto enfadonho em suas soluções formais e temáticas.

terça-feira, novembro 20, 2018

Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald, de David Yates **1/2


Em relação ao primeiro filme de 2016, pouca coisa mudou em “Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald” (2018). Pode-se dizer que isso ocorre porque nessa continuação permanece o mesmo diretor David Yates. E é verdade também que ele se mostra um cineasta confiável para os produtores e fãs da franquia “Harry Potter” e derivados porque praticamente não sai de uma fórmula consagrada e derivativa e nesse contexto fugir desses padrões seria considerado uma grande traição para os nerds, geeks e outros fanáticos afins (e para o grande mercado ávido por um lucro fácil, é claro). Mesmo uma pretensa ousadia de deixar um pouco mais explícita a homossexualidade de um personagem importante como Albus Dumbledore (Jude Law) na realidade só atesta o conservadorismo e previsibilidade esperados do filme, no sentido que tal particularidade é tratada como um sinal de fraqueza para ele (Dumbledore não pode confrontar diretamente o vilão Grindelwald devido a um pacto de sangue e amor que ambos estabeleceram na juventude). No mais, para quem assistiu com alguma atenção a todos os capítulos da saga de Harry Potter, ou pelo menos a maioria deles, fica evidente que nesse spin off retcon (pois é, as designações nessas franquias ficam cada vez mais específicas e esquisitas) há também uma tendência para que a narrativa ganhe uma atmosfera mais sombria ou coisa que o valha na medida que a história avance, mas que na realidade acaba só acentuando personagens cada vez mais rasos em interpretações canastronas do elenco e uma trama que adquire contornos de novela mexicana (sério, há um excesso de revelações bombásticas do tipo “fulano é filho do sicrano”, com direito a musiquinha estridente de “surpresa”).

segunda-feira, novembro 19, 2018

Sueño Florianópolis, de Ana Katz ***1/2


Não consigo escrever sobre “Sueño Florianópolis” (2018) sem fazer referência a uma reminiscência pessoal própria. É que já fui algumas vezes às praias da Armação e do Matadeiro, ambas localizadas na capital catarinense. Vizinhas, o que as liga é uma pequena faixa de mar e pedras, em que a segunda fica mais isolada, não tendo como acessá-la por veículos automotores terrestres. Por pequenas particularidades como essa, quando se chega em Matadeiro a impressão é de um maior isolamento, um contato mais forte com o elemento natureza e que, de certa forma, se entra em uma espécie de universo paralelo. O fato da diretora Ana Katz situar a ação de seu filme nesse microverso, dessa forma, não é gratuita. Mais no início da narrativa, o maduro casal de protagonistas Lucrécia (Mercedes Morán) e Pedro (Gustavo Garzón) menciona que visitara há alguns anos em Florianópolis, em uma fase mais feliz do relacionamento, uma praia mais urbanizada e aburguesada. Agora, na companhia dos filhos já saindo da adolescência e com o casamento em vias de terminar, acabam por cair em um local mais “selvagem”. O simbolismo é simples, quase óbvio, mas é articulado com eficácia e sutileza por Katz. A família aos poucos se deixa envolver por uma atmosfera algo luxuriante e nebulosa – todos parecem confusos e inebriados, ainda que por vezes não admitam claramente seus desejos e medos. Mesmo a abordagem narrativa que se apresenta em um primeiro plano dentro de uma tendência realista em momentos cruciais se contamina por um discreto e desconcertante onirismo. E tudo vai se tornando mais fascinante quanto se percebe que o filme não se preocupa tanto em amarrar as pontas soltas de seu roteiro, preferindo deixar os elementos temáticos ainda mais em abertos, carregando em algumas belas metáforas visuais. A sequência de Lucrécia navegando em um caiaque, por exemplo, tem um desconcertante teor poético. Nesse singular contexto artístico de “Suenõ Florianópolis”, é provável que o nosso imaginário tenha uma outra percepção quando vermos os hermanos partindo para fazer turismo no litoral catarinense.

sexta-feira, novembro 16, 2018

O grande circo místico, de Cacá Diegues *


O grande mérito artístico de “Bye Bye Brasil” (1979), obra que talvez seja a realização mais iluminada de Cacá Diegues como diretor, era fazer um lúcido retrato entre o amargo e o irônico das mazelas econômicas, sociais e morais de um Brasil profundo através de uma marcante síntese de narrativa de forte dinamismo cênico, elenco de interpretações carismáticas e um roteiro repleto de notáveis nuances dramáticas e cômicas ao contar as peripécias de uma trupe de artistas mambembes pelo interior nacional. A trama de “O grande circo místico” (2018), filme mais recente de Diegues, tem uma temática semelhante ao narrar a história de uma família de profissionais do circo do título do filme ao longo de 100 anos. O parentesco entre as duas produções, entretanto, parece parar por aí, pois há uma distância abissal em termos de qualidade artística entre ambas. O que uma tinha de vivacidade criativa e precisão formal nas suas ideias a outra despeja na tela concepção e execução mofadas e por vezes até indigente. Pode-se até dizer que havia uma pretensão ousada por parte de Diegues em evocar um certo caráter onírico e grotesco para a obra, mas a forma como isso é colocado em cena é desastroso. O que era para ser poético e refinado em termos estético e existencial acaba enveredando para o brega e a vazia opulência visual. Mesmo a belíssima trilha sonora original composta por Chico Buarque e Edu Lobo é desperdiçada de maneira lamentável – na realidade, por vezes a impressão é de que o filme parece um longo vídeo clip mal-ajambrado para adequar com uma coerência textual meio qualquer nota os números musicais com um roteiro digno de minissérie global derivativa. Há passagens que até insinuam que “O grande circo místico” tinha potencial para ser algo bem melhor, principalmente na expressiva sequência de sexo acrobático entre Beatriz (Bruna Linzmeyer) e Fred (Rafael Lozano) e nas cenas finais das gêmeas que flutuam em meio as ruínas do circo, mas esses breves acertos sucumbem diante da direção artrítica de Diegues.

quarta-feira, novembro 14, 2018

Sedução e vingança, de Abel Ferrara ****


Os primeiros longas-metragens do diretor norte-americano Abel Ferrara eram marcados por uma bizarra equação artística – ainda que posteriormente ele tenha refinado mais o formalismo de seus filmes, ele nunca perdeu o punch dessa estranha abordagem artística. Nesses primeiros filmes, o cineasta abusava de uma estética sórdida típica das produções exploitation que se adequava de maneira perturbadora a uma formatação narrativa que remetia a insólitos contos morais. “Sedução e vingança” (1981) é um exemplar contundente dessa singular concepção fílmica de Ferrara. Em um primeiro momento, pode-se até pensar que o roteiro que mostra trajetória de desforra da protagonista Thana (Zoë Lund) contra o mundo masculino após ser estuprada duas vezes no mesmo dia remete ao tradicional modelo do filme de vingança. No desenrolar da narrativa, contudo, Ferrara desmonta tais expectativas ao dar um caráter cada vez mais nebuloso e mítico para as atitudes da personagem e também ao elaborar atmosferas e encenação que enveredam com sutileza para o irreal e a uma estilização “suja”. Assim, paira sobre a obra uma desconcertante ambiguidade que se cristaliza de maneira impactante na antológica sequência final de um massacre promovido por Thana que culmina em um inesperado castigo que lhe tira qualquer possibilidade de redenção. No conturbado mundo de Abel Ferrara, nada é o que parece...

segunda-feira, novembro 12, 2018

George Harrison: Living in the material world, de Martin Scorsese ***


A combinação Martin Scorsese e documentário musical sempre chamará a atenção de quem gosta de cinema e música. Afinal, o diretor norte-americano tem em seu currículo algumas obras memoráveis no gênero. Nesses termos, pela alta expectativa que se pode criar, “George Harrison: Living in the material world” (2011) acaba sendo um tanto decepcionante. É claro que que está longe de ser um filme ruim. Afinal, Scorsese sabe conduzir uma narrativa, o material audiovisual de arquivo é farto e relevante e a própria figura do biografado é mais do que interessante. O que falta efetivamente para a produção é foco e conceito melhores definidos, aspectos esses que eram articulados com precisão em “O último concerto de rock” (1978), “Feel like going home” (2003) e “Bob Dylan – No direction home” (2005). Na obra sobre Harrison, fica insinuado que talvez o objetivo de Scorsese fosse relacionar as intensas inquietações espirituais de seu protagonista com a sua própria produção artística. A duração excessiva do filme, o acúmulo exagerado de um determinado tipo de informações (por vezes, parece que estamos apenas assistindo a mais um protocolar documentário sobre os Beatles) e a falta de uma exposição mais minuciosa sobre outros tipos de fatos (principalmente de uma dissecação um pouco mais minuciosa sobre a discografia de Harrison) tornam a narrativa por vezes cansativa e redundante. Ou seja, é uma obra que tem os seus momentos envolventes e tem um certo caráter obrigatório para quem gosta da temática e dos artistas envolvidos, mas está bem longe de ser o material definitivo e referencial sobre a figura de Harrison.

sexta-feira, novembro 09, 2018

Invasão a Londres, de Babak Najafi *


“Invasão a Casa Branca” (2013) trazia um grande diferencial na sua realização: o nome de Antoine Fuqua na direção, um expressivo nome do gênero ação nos últimos anos. E apesar de todas as patriotadas típicas dessa linhagem de filmes, havia alguns elementos narrativos que elevavam o patamar artístico da produção, principalmente nas coreografias de pancadarias, explosões e tiroteios que remetiam a alguns clássicos do cinema de ação casca-grossa dos anos 80. A ausência de Fuqua é bastante sentida na continuação “Invasão a Londres” (2016), pois o diretor Babak Najafi envereda por uma abordagem derivativa e sem graça para a narrativa. O resultado final é uma obra enfadonha e desprovida de qualquer personalidade, incapaz de gerar alguma tensão e empatia para o espectador. Nesse contexto, a visão de mundo maniqueísta e o ufanista discurso bélico pró-americano do roteiro se mostram mais insuportáveis e asquerosos.

quinta-feira, novembro 08, 2018

A cidade dos amaldiçoados, de John Carpenter ***1/2


Mais do que uma mera refilmagem do clássico “A aldeia dos malditos” (1960), “A cidade dos amaldiçoados” (1995) é um exemplar contundente da indelével e coerente marca autoral do cinema do diretor norte-americano John Carpenter. A construção da narrativa e as atmosferas de tensão são marcadas pela sobriedade, enquanto o grafismo violento e as trucagens são articulados com notável senso de contenção dramática. Os sustos típicos de um filme de horror estão lá, mas mesmo que sejam previsíveis também são perversamente eficazes. Carpenter sabe aproveitar com maestria as possibilidades criativas do material que tem em mãos, principalmente no sutil subtexto erótico da trama e do traço perturbador de ter crianças como as principais vilãs da história. Ao contrário da grande maioria das franquias de horror que grassam atualmente nos multiplexes da vida, o filme não se rende a um tratamento formal asséptico ou a um teor excessivamente conservador nas soluções do roteiro. Pelo contrário, pois consegue uma abordagem estética-temática sombria e por vezes até irônica dentro dos preceitos característicos do horror tradicional.

quarta-feira, novembro 07, 2018

Premonição 2, de David R. Ellis ***


As franquias contemporâneas de horror podem não ser muito confiáveis no sentido de entregar com alguma regularidade filmes realmente assustadores, parecendo mais satisfeitas em contentar com um padrão artístico asséptico aos frequentadores adolescentes e afins dos multiplexes da vida. De vez em quando, entretanto, acaba parecendo alguma obra dessa linhagem de produções que acaba destoando dessa monotonia criativa. É o caso desse “Premonição 2” (2006). O grande mérito do diretor David R. Ellis é investir no tom irônico da narrativa e no grafismo violento e exagerado das sequências de destruição e morte. Nesse último aspecto, destaque absoluto para uma das sequências iniciais em que um gigantesco acidente automobilístico culmina em uma absurda sucessão de mutilações, explosões e outras atrocidades.

terça-feira, novembro 06, 2018

A casa que Jack construiu, de Lars Von Trier ****


Não dá para dizer que a filmografia do diretor dinamarquês Lars Von Trier tenha passado necessariamente por uma evolução, mudança ou mesmo amadurecimento nas últimas décadas. O cineasta manteve praticamente o mesmo estilo e abordagem na concepção e execução de seus filmes – todos eles se formatam como se fossem obras de horror a discorrer sobre o mal-estar existencial da humanidade contemporânea por seus comportamentos disfuncionais e mesmo suas patologias. “A casa que Jack construiu” (2018) é mais uma variação desse bizarro compêndio artístico-temático. Na superfície, é como se fosse um suspense de forte tensão psicológica a narrar episódios marcantes na vida do protagonista Jack (Matt Dillon), um engenheiro pequeno-burguês repleto de transtornos obsessivos-compulsivos cuja efetiva missão de vida é extravasar sua psicopatia em brutais assassinatos. Com o desenrolar da trama, entretanto, a narrativa vai se mostrando cada vez mais alegórica, com Von Trier dando vazão a uma intrincada combinação de grafismo sangrento, filosofia, citações mitológicas e referências culturais. Aliás, nesse último aspecto, o cineasta reforça o lado autoral e egocêntrico de sua conturbada personalidade artística ao fazer explícitas auto-referências a suas produções, evidenciando novamente que vê a própria filmografia como um amplo exercício de suas obsessões estéticas e temáticas. A pretensão é grande, mas Von Trier justifica as suas expectativas ao entregar um filme efetivamente perturbador e desconcertante. As amplas doses de violência e a exposição crua de misoginia, racismo e preconceito de classe não têm fins exclusivos de choque gratuito, havendo notável coerência humanista na dissecação cruel dos mecanismos sócio-econômicos-morais de uma dita civilizada sociedade capitalista ocidental e que ganha especial ressonância quando pensamos em um mundo atual dominado por figuras lamentáveis como Trump, Bolsonaro, Moro e afins. Na realidade, Von Trier deixa claro que o embate civilização versus barbárie é inerente à própria história da humanidade e à própria condição existencial do indivíduo. Nesse aspecto, toda a sequência final em que Jack e o poeta Virgílio (Bruno Ganz) percorrem o inferno de Dante realça esse atavismo pessimista e o fatalismo irônico do cineasta.

segunda-feira, novembro 05, 2018

Stelinha, de Miguel Faria Jr. ***


A música popular brasileira é um assunto que vira e mexe o diretor Miguel Faria Jr. gosta de abordar de alguma forma em seus filmes. Do musical (“Para viver um grande amor”) ao documentário biográfico (“Vinicíus”, “Chico Brasileiro”), o cineasta demonstrou o seu apreço pelo cancioneiro nacional. Dentro de tal temática, entretanto, é curioso observar que seu melhor filme é justamente “Stelinha” (1990), obra ficcional a narrar a decadência artística e existencial de uma cantora brasileira da “velha guarda” do samba-canção. Por vezes a encenação e o roteiro caem em excessos melodramáticos que resvalam no brega, mas o filme de Faria Jr. acaba se mostrando memorável em alguns detalhes estéticos e temáticos trabalhados com convicção e sensibilidade. Com uma trama situada no final dos anos 80, a produção consegue oferecer um panorama intenso e algo cruel sobre a indústria da música, em que artistas e suas obras são tratados como meros produtos – a grande questão é saber se conseguem se adequar ao gosto efêmero do público e se ainda são vendáveis. Se a narrativa começa como uma abordagem naturalista, com o seu desenrolar “Stelinha” vai ganhando cada vez um caráter mais simbolista, por vezes quase delirante, em atmosferas de sordidez que ganham cada vez mais um caráter de pesadelo. A atuação over de Ester Góes no papel-título e os números músicas estilizados acentuam essa impressão de onirismo perturbador do filme.

quinta-feira, novembro 01, 2018

Fala comigo, de Felipe Sholl ***


Em termos de roteiro e encenação, “Fala comigo” (2016) é uma obra que de maneira constante flerta com o convencional, ainda que a sua narrativa seja envolvente para o espectador e em algumas passagens a trama apresente um teor mais libertário. Ou seja, não chegaria a ser algo de especialmente memorável. O que dá ao filme do diretor Felipe Sholl uma certa transcendência artística e o cola no nosso imaginário é a atuação monumental de Karine Teles no papel de uma maníaca-depressiva quarentona que se envolve romanticamente com um adolescente. Os grandes momentos dramáticos da produção, e mesmo os cômicos, ficam concentrados nas notáveis nuances de interpretação de Teles, que constrói uma personagem que varia de forma admirável entre o obsessivo, o sensual e o carismático. Ela ajuda a dar consistência criativa e empatia para os momentos mais cruciais do filme, principalmente nas intensas sequências eróticas e nas cenas com foco em diálogos espirituosos e irônicos. E esse desempenho da atriz não se trata de um acerto pontual em sua carreira, pois ela se mostrou ainda mais brilhante em “Benzinho” (2018).