segunda-feira, dezembro 30, 2019

Os pássaros de Massachusetts, de Bruno de Oliveira ***


Tudo aquilo que parece aleatório ou casual em “Os pássaros de Massachusetts” (2019) na realidade revela um domínio rigoroso e notável da narrativa cinematográfica por parte do diretor Bruno de Oliveira. Os fatos da trama se sucedem de maneira fluida, beirando o espontâneo, mas o que dá realmente essa impressão de leveza é a encenação precisa engendrada pelo cineasta. O tratamento estético-existencial do filme evoca tanto clássicos de Eric Rohmer quanto a sofisticação narrativa disfarçada de amadorismo do coreano Hong Sang-soo, ou seja, a obra de Oliveira remete a um desconcertante híbrido de modernidade e nostalgia. Dentro dessa curiosa formatação, é de se destacar o registro audiovisual de uma Porto Alegre melancólica e crepuscular, mas que por vezes também soa como um insólito e algo encanador universo paralelo (em contraste, por exemplo, com o retrato depressivo e assustador da capital rio-grandense em “Tinta bruta”). Num contexto geral, uma das mais curiosas revelações do cinema gaúcho dos últimos anos.

sexta-feira, dezembro 27, 2019

Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles ****


Excessos tomam conta de “Bacurau” (2019). Mas são aqueles excessos típicos de quem assistiu muito filme bom na vida e quer colocar o máximo disso num filme só (além de deixar evidente algumas convicções existenciais/políticas). O grande mérito dos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é justamente fazer com que referências e citações não se amontoem como se fossem uma mera colcha de retalhos estética, realizando uma obra que tem uma unidade artística coerente e impressionante. O lírico sensorialismo de algumas sequências e o misto desconcertante de poesia e prosa de determinados diálogos remetem ao melhor do que o Cinema Novo e o Cinema Marginal brasileiros produziram em seus respectivos auges, assim como a encenação da violência tem algo do barroquismo brutal de mestres do faroeste como Peckimpah e Leone e mesmo do horror operístico de Fulci e Argento. E no meio desses arroubos formais e narrativos, preserva-se um senso humanista lúcido e comovente. Nesse conjunto artístico, cristaliza-se um trabalho emblemático para o cinema brasileiro, tanto em seus antológicos detalhes cênicos como na capacidade de captar um perturbador zeitgeist.