segunda-feira, outubro 31, 2016

A nona vida de Louis Drax, de Alexandre Aja ***1/2

O diretor francês Alexandre Aja é um dos nomes mais interessantes a terem surgidos no panorama mundial do cinema fantástico nos últimos anos. Sua filmografia é baseada numa síntese artística bastante pessoal e marcante, combinando grafismo exagerado, senso narrativo preciso e atmosferas entre o doentio e o delirante, vide obras memoráveis como “Alta tensão” (2003), “Viagem maldita” (2006) e “Piranha 3D” (2010). Em sua obra mais recente, “A nona vida de Louis Drax” (2015), Aja mantém a sua marca autoral e ainda envereda por uma insólita recriação do suspense psicológico característico de algumas produções de Alfred Hitchcock (principalmente o clássico “Quando fala o coração”) sob um prisma de conto fabular à maneira de Tim Burton e Guillermo Del Toro. Essa junção de elementos estéticos diversos acaba tendo um resultado final bastante coeso. A trama é algo rocambolesca, repleta de flashbacks e alternando inclusive planos dimensionais (o real, o imaginário e o onírico), mas Aja consegue dar uma unidade impressionante e nada confusa dentro desses universos temporais e existenciais paralelos. Os elementos psicanalíticos podem parecer manjados num primeiro momento ao versarem sobre pulsões homicidas, desejos sexuais difusos, o mar como símbolo da segurança materna e mitomania, mas com o tempo eles acabam se revelando funcionais e intrigantes, ainda mais quando se integram ao apuro visual expressivo de Aja e a sua dinâmica narrativa que emula uma verdadeira jornada dentro de um pesadelo úmido e sombrio. Dentro dessa lógica artística peculiar e marcada pela morbidez romântica, o cineasta também acerta na forma com que dirige o seu elenco, de quem arranca algumas composições dramáticas antológicas, com destaque para a caracterização meio alucinada do garoto Aiden Longworth no papel título e para atuação no estilo “loira enigmática e fatal” de Sarah Gandon (e que faz lembrar algumas personas inesquecíveis nessa linha criadas por Hitchcock).

sexta-feira, outubro 28, 2016

Terra estranha, de Kim Farrant ***1/2

As regiões desérticas da Austrália têm um histórico interessante como cenário expressivo de produções relevantes na história do cinema, vide produções antológicas como “A longa caminhada” (1971), “O corte da navalha” (1984), “A proposta” (2006) e toda a franquia “Mad Max”. Essa fascinante tradição se mantém em “Terra estranha” (2015), obra em que o deserto australiano funciona quase como se fosse um personagem próprio da trama, ditando não só as intempéries físicas sofridas pelos indivíduos como também servindo de fator simbólico das confusões existenciais de tais figuras. Em sua superfície, o roteiro tem como mote principal o desaparecimento de um casal de jovens irmãos numa árida cidade interiorana e toda a sorte que dúvidas e suspeitas que um evento como esse pode suscitar. A diretora Kim Farrant usa alguns clichês narrativos do gênero suspense, mas essa rendição ao convencional é ilusória. Aos poucos, a narrativa vai se tornando cada vez mais atmosférica e misteriosa, dando vazão a uma série de cenas marcadas por um perturbador misto de languidez a flor-da-pele, desejos difusos e frustrações sentimentais. A procura pelos adolescentes vai se tornando um processo de expiação de culpas e acerto de contas com o passado obscuro dos personagens. Farrant acerta no alvo ao não se preocupar com as aparentes pontas soltas da trama, levando mais em conta as consequências psíquicas dos fatos do que se concentrando em encontrar “bandidos”, o que fica evidenciado na poética, enigmática e algo libertária conclusão do filme. A abordagem estética adotada por Farrant para essa saga existencial é outro grande acerto, com uma direção de fotografia magnífica a explorar a riqueza de nuances imagéticas proporcionada pelos cenários desérticos em termos de iluminação e enquadramentos, além da climática trilha sonora que acentua ainda mais a síntese de mistério e delírio da narrativa. De se considerar ainda as atuações de Nicole Kidman e Joseph Fiennes, que entregam algumas das composições dramáticas mais complexas de suas carreiras.

quinta-feira, outubro 27, 2016

A passageira, de Salvador Del Solar ***

Assim como na produção argentina “Kóblic” (2016), o filme peruano “A passageira” (2014) procura formatar uma reflexão sobre a ditadura militar na América Latina dentro de uma estrutura de cinema de gênero (no caso, o suspense policial). Se na citada obra portenha tal propósito fica apenas na intenção, ainda que resulte num divertido faroeste reciclado, no trabalho do diretor Salvador Del Solar essa síntese entre questionamento político-social e formatação de gênero soa mais homogênea e convincente, tendo como principal responsável para isso um roteiro muito bem delineado em seu desenvolvimento e subtextos. Há nuances na trama que revelam um forte caráter simbólico a refletir uma sociedade marcada pela opressão e exploração de classes. Nesse sentido, a figura da personagem Celina (Magaly Solier), nativa de uma vila indígena exterminada por militares na época da ditadura, é bastante emblemática – quando adolescente, abusada por militares; na fase adulta, explorada por agiotas e picaretas de classe média alta. Seu discurso final, indignado e no seu dialeto nativo, representa a cena mais memorável de “A passageira” no seu misto de fúria e frustração. A abordagem formal e textual de Del Solar para a história que conta é marcada por uma sobriedade admirável, ainda que a narrativa se ressinta de um certo excesso de convencionalismos. Ainda assim, “A passageira” consegue preservar a sua capacidade de inquietar e se fixar por um tempo no imaginário do espectador.

quarta-feira, outubro 26, 2016

Kóblic, de Sebastián Borensztein ***

O diretor argentino Sebastián Borensztein dá a impressão de querer realizar uma revitalização de clichês de filmes de gênero. No medíocre “Um conto chinês” (2011), fez uma espécie de recriação pálida de comédia romântica, ainda que procurasse dar uma aparência ilusória de realismo dramático. Em sua mais recente empreitada, “Kóblic” (2016), o cineasta busca uma espécie de síntese entre drama político e policial, mas o que realmente atinge como resultado final é um faroeste reciclado e por vezes até bem divertido. O roteiro insinua uma pretensa seriedade ao evocar o drama de desaparecidos políticos que na verdade eram jogados ao mar por agentes da repressão no período da ditadura militar argentina nos anos 70 e 80. Mas essa aura solene é jogada por terra diante dos furos da trama – se o protagonista Kóblic (Ricardo Darín) quer tanto ficar incógnito numa cidadezinha fim de mundo do interior, por que se expõe tanto saindo para beber no único bordel da região e também tendo um caso com a companheira de um tipinho violento e execrável? Isso sem contar que em algumas sequências o filme se perde em excessos melodramáticos, principalmente nas partes românticas. Na verdade, a melhor forma de encarar “Kóblic” é como se fosse um tipo de versão fuleira para “Os brutos também amam” (1953). A caracterização do delegado vilão Velarde (Oscar Martinez), por exemplo, é um primor de escrotidão e sordidez. E o terço final repleto de duelos e mortes encenados com boa dinâmica e detalhamento visual é bem memorável. Em tais cenas, Borensztein consegue dar uma certa ambientação mitológica cativante para a sua obra, e com Darín conseguindo tendo uma interessante altivez icônica para o seu personagem que faz lembrar algo do enigmático cowboy Shane.

terça-feira, outubro 25, 2016

Festa da salsicha, de Conrad Vernon e Greg Tiernan ***1/2

É intrigante que um dos filmes mais ácidos e contestadores da atual temporada seja uma animação norte-americana cômica, desbocada e escatológica. Mas esse é exatamente o caso em “Festa da salsicha” (2016). O filme dos diretores Conrad Vernon e Greg Tiernan obedece a uma estrutura narrativa fabular básica no gênero das animações, em que uma trama repleta de aventura e alguns toques românticos traz em suas entrelinhas uma “moral da história” envolvendo superação e amadurecimento, com direito, inclusive, a momentos musicais entre o apoteótico e o meloso. Só que o roteiro que mostra alimentos antropomorfizados de um supermercado que tomam consciência de que servem somente para saciar a fome dos deuses gigantes (no caso, os seres humanos) na realidade se mostra uma corrosiva diatribe contra alguns dos valores mais caros da sociedade contemporânea. Na visão da obra, a religião só serve para iludir ignorantes incautos para que esses não questionem uma realidade de opressão e exploração, fazendo com que uma classe dominante se beneficie dessa alienação (não faz lembrar um certo país que teve um golpe de estado recentemente com a colaboração de uma direita evangélica?). E a melhor resposta para tal empulhação mística seria a revolta violenta, além de uma filosofia de vida baseada num hedonismo libertário. “Festa da salsicha” consegue formatar esse discurso ousado e humanista em uma narrativa bastante divertida e movimentada, além de trazer um grafismo marcante na forma com que violência, sexo e escatologia são expostos em cena. Caros pais, não se assustem com a faixa etária, essa é a animação que seus filhos devem ver!!

segunda-feira, outubro 24, 2016

Meu amigo, o dragão, de David Lowery **1/2

Dá para perceber em “Meu amigo, o dragão” (2016) uma certa abordagem conceitual diferente. Tanto em sua estética quanto no conteúdo, o filme do diretor David Lowery parece querer recuperar uma atmosfera setentista em termos de atmosfera e construção narrativa. Há um caráter de crônica nostálgica e ingênua aliada a um viés ecológico na forma com que a trama é apresenta na tela. Essa concepção provavelmente vem do fato da produção ser uma refilmagem de uma animação de 1977. Diante de tais escolhas artísticas, a obra de Lowery até tem algum encanto em determinadas passagens, fruto de uma encenação bem coreografada na combinação de trucagens digitais e interação entre os personagens. Por outro lado, essa ambientação agridoce por vezes retira a capacidade do filme em gerar tensão para a plateia, o que seria fundamental dentro de um trabalho no gênero aventura fantástica juvenil. Dá até para entender que se buscou um perfil mais humano na caracterização dos dilemas e críticas comportamentais presentes no roteiro, mas no geral essa coisa de fofice excessiva faz com que os vilões e ameaças que surgem ao longo da história se mostrem poucos críveis ou assustadores.

quinta-feira, outubro 20, 2016

O botão de pérola, de Patrício Gusmán ***1/2

No seu primeiro terço de duração, o documentário chileno “O botão de pérola” (2015) sugere ao espectador em sua formatação como se fosse uma versão mais apurada e artística daquelas produções televisivas de canais como Discovery ou History Chanel a versar sobre a importância da água na sobrevivência e desenvolvimento da humanidade. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, o diretor Patrício Gusmán vai desviando de maneira sutil sua obra para um viés sócio-político-cultural desconcertante, traçando um desolador retrato do massacre dos povos nativos de seu país e relacionando com o brutal massacre de perseguidos políticos na ditadura de Pinochet, cujos corpos eram jogados no meio do oceano. Mais que um simples manifesto panfletário, o caráter humanista e poético da abordagem de Gusmán consegue combinar com coerência e sensibilidade essa ampla temática dentro de uma linguagem cinematográfica apurada e de uma visão existencial complexa, em que todos os aspectos da narrativa se entrelaçam com desenvoltura – fotografia grandiosa, engenhosas trucagens visuais, atmosfera e trilha sonora solenes, roteiro repleto de preciosas nuances textuais valorizadas pela etérea narração do próprio Gusmán. Nessa estranha e encantadora síntese artística concebida pelo cineasta, a antropologia e o fantástico convivem de maneira harmônica dentro um fascinante e bizarro universo.

quarta-feira, outubro 19, 2016

Um dia perfeito, de Fernando León de Aranoa ***

O cineasta espanhol Fernando León de Aranoa havia demonstrado notável domínio narrativo e sensibilidade no trato de temática social no extraordinário “Segunda-feira ao sol” (2001). Ainda que sem o mesmo grau de brilho artístico do filme mencionado, “Um dia perfeito” (2015) mostra que Aranoa permanece com suas mencionadas qualidades. O tema da trama é espinhoso – o cotidiano de um grupo de ajuda humanitária no conflito dos Bálcãs em meados dos anos 90. Ocorre que a abordagem é diferenciada e surpreendente, pois, ainda que preserve a forte aura dramática, há uma certa atmosfera de ironia e absurdo que predomina sutilmente por todo o filme, fazendo lembrar de leve a clássica comédia de guerra “MASH” (1970). Tal orientação existencial da narrativa revela uma coerência pertinente, em que as desventuras sentimentais do responsável de segurança Mambrú (Benicio Del Toro) e a obsessão por velocidade, perigo e rock and roll do motorista B (Tim Robbins) funcionam como válvulas de escape emocionais diante de uma rotina repleta de morte, destruição e barbárie de um conflito étnico-político. O subtexto do roteiro guarda ainda uma crítica ao olhar hipócrita e moralista que o mundo ocidental tem sobre a guerra naquela região, em que alegações e julgamentos de que tais lutas e demais atitudes delas advindas sejam “sem sentido” se revelam estéreis, pois na verdade os reflexos de tal conflito apenas demonstram valores e dilemas típicos da sociedade capitalista contemporânea. No mais, a notável interação entre o elenco homogêneo em boas atuações e a ótima trilha sonora roqueira se mostram em sintonia com as soluções narrativas e temáticas de Aranoa, fazendo de “Um dia perfeito” uma inquietante obra a refletir sobre a natureza das guerras no mundo atual.

terça-feira, outubro 18, 2016

Nosso fiel traidor, de Susanna White ***

Dentro do universo das adaptações cinematográficas de obras literárias do escritor John Le Carré, “Nosso fiel traidor” (2015) está longe do brilhantismo de produções extraordinárias como “O alfaiate do Panamá” (2001) e “O espião que sabia demais” (2011), mas também não chega perto de induzir ao sono como “A casa da Rússia” (1990) e “O homem mais procurado” (2014). O filme da diretora Susanna White até começa um pouco claudicante, principalmente na breguice da sua sequência de abertura e também por uma encenação soando excessivamente mecânica. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, a fórmula estética-temática ganha mais corpo e a tensão se mostra mais efetivamente presente. Os truques do roteiro são óbvios, típicos das tramas de espionagem de Le Carré, mas são desenvolvidos com eficiência e convicção. A direção de fotografia valoriza o exotismo e beleza dos cenários cosmopolitas e paisagens naturais que aparecem ao longo da história, há uma atmosfera que alterna habilmente entre a elegância contida e a leve sensualidade, prepondera um clima constante de mistério e suspense que provoca algum frio no estômago do espectador e algumas cenas guardam um poder imagético forte na sua simbologia (a sequência final com o protagonista Perry Makepeace andando na contramão de uma pequena multidão é um achado). No mais, as boas atuações carismáticas de Ewan McGregor, Stellan Skarsgard e Damian Lewis acentuam a notável sobriedade formal de “Nosso fiel traidor”.

segunda-feira, outubro 17, 2016

Cegonhas - A história que não te contaram, de Nicholas Stoller e Doug Sweetland ***

Talvez ao se analisar uma animação norte-americana voltada para o público infantil e enxergar implicações culturais e existenciais pode parecer que se esteja forçando a barra, tentando se dar alguma legitimidade para uma produção de caráter eminentemente comercial, que visa não só lucrar nas bilheterias como também vender um monte de bugigangas atreladas (brinquedos, lanches e afins). É claro que existem filmes e franquias no gênero que enveredam por essa lógica meramente mercantilista, mas também há exemplares que extrapolam tais intenções comerciais e procuram oferecer algo mais em suas pretensões artísticas (a grande maioria do que a Pixar já fez é atestado de tal prática). Nesse último caso, dá para enquadrar “Cegonhas – A história que não te contaram” (2016). O filme em questão obedece a uma fórmula eficiente de diversão – personagens carismáticos, roteiro bem delineado, grafismo expressivo, boas sequências de ação. A cereja do seu bolo, entretanto, está no sutil e contundente subtexto da sua trama, em que os mecanismos desumanos de exaltação à ambição de ascensão social e conseqüente desagregação das relações sócio-afetivas são expostos com ironia e sensibilidade. Há algo também de um certo encanto nostálgico na valorização da imaginação e inocência infantis perante um mundo cada vez mais dominado por avanços tecnológicos e consumismo desarvorado. Ainda que não traga o mesmo brilhantismo temático e estético de algumas animações contemporâneas (como “Wall-E” e “Detona Ralph!”), “Cegonhas” ainda consegue surpreender e comover o espectador pelo inusitado e mesmo coragem de algumas de suas soluções narrativas.

sexta-feira, outubro 14, 2016

Kubo e as cordas mágicas, de Travis Knight ***1/2

Há um estranho e fascinante conceito que perpassa toda a narrativa e a concepção estética da animação norte-americana “Kubo e as cordas mágicas” (2016) – a flexibilidade do papel. O protagonista do título tem como principal poder mágico a capacidade de moldar a forma e os movimentos de papéis através do toque de seu instrumento de cordas. A técnica de animação, misto de efeitos digitais e stop-motion, e o grafismo do traço sempre evocam essas figuras de papiros e folhas, gerando uma síntese entre fragilidade aparente e beleza. O fato da trama se passar no Japão e se referir a elementos da cultura nipônica, nesse sentido, não é gratuito, vide a técnica do origami que por diversas é mencionada em trechos fundamentais do roteiro. E há outros fortes pontos positivos nas escolhas artísticas do diretor Travis Knight que formam um todo poderoso e memorável: a caracterização bem delineada de personagens carismáticos, cenas de ação plenas de tensão e dramaticidade, trilha sonora de arranjos e melodias que primam pela sutileza e a contenção de sua utilização, refinado senso de humor. Nessa conjunção conceitual entre estética e temática, o resultado é uma narrativa encantadora que transita com desenvoltura entre o fabular, a aventura, o horror e o elegíaco, e que faz prevalecer como filosofia existencial um tributo à tolerância. 

quinta-feira, outubro 13, 2016

Lua em sagitário, de Márcia Paraíso *1/2

No meio de um cenário sócio-político tão conturbado como o atual, em que preconceitos e hipocrisias cada vez mais afloram com força, não deixa de ser salutar que um filme como “Lua em sagitário” (2015) apareça nos cinemas, principalmente pelo conteúdo de sua parte temática. A obra apresenta um retrato positivo e humano sobre os movimentos sociais, sempre tão marginalizados na visão da mídia oficial, além de procurar uma perspectiva mais sensível sobre os dilemas da adolescência feminina e que fuja de parâmetros óbvios e conservadores. E há uma cena em particular que surpreende pela contundência textual que é aquela do discurso do jovem Murilo (Fagundes Emanuel) sobre as raízes do conflito de classes na sociedade brasileira, um tema tabu dentro do cotidiano de novelas e noticiários pasteurizados da maioria das pessoas. O grande problema da produção dirigida por Márcia Paraíso é que a ousadia de sua temática não é acompanhada por uma construção narrativa e por um formalismo de relevo. A cineasta se acomoda em adequar a trama dentro de um formato de comédia dramática estilo “boy meets girl” pouco convincente e de encenação precária. Por diversas oportunidades, a impressão que se tem no desenvolvimento de situações e personagens é de uma rígida e superficial linguagem presa a estereótipos que retira muito da vida e desenvoltura da narrativa, fazendo tudo parecer um teatro escolar ou amador (qualquer cena que envolva os pais da protagonista Ana, por exemplo, é constrangedora na sua formatação simplória). Há uma sequência em que “Lua em sagitário” até dá uma ideia de que poderia ter sido uma experiência bem mais interessante como cinema que é quando Ana e Murilo ficam hospedados na casa de um velho casal hippie interpretado por Elke Maravilha e Serguei – os toques de lisergia e sensualidade na atmosfera de tais tomadas são meio esquisitas, mas apresentam muito mais vida e desafio existencial/artístico do que em todo o resto do filme. E há outros elementos positivos na obra: a garota Manuela Campagna tem uma forte presença cênica e a trilha sonora é repleta de ótimas canções nos gêneros pop e rock. Tais aspectos, entretanto, estão longe de salvar “Lua em sagitário” e apenas reforçam a expectativa frustrada de que a produção poderia ter sido muito melhor.

terça-feira, outubro 11, 2016

Viva a França!, de Christian Carion **1/2

É curioso como algumas obras ganham uma conotação diferenciada em virtude do período em que são lançadas. O atual crescimento mundial da xenofobia decorrente dos grandes fluxos migratórios provocados por conflitos étnicos e políticos faz com que “Viva a França!” (2015), ainda que verse sobre fatos que se sucederam durante a 2ª Guerra Mundial, provoque uma reflexão sobre a temática do preconceito e do seu uso político ao narrar a história da população de uma cidade do interior da França que é obrigada a abandonar seus lares e perambular por estradas e trilhas em fuga dos nazistas que recém invadiram o seu país. A produção dirigida por Christian Carion está bem longe de ser um trabalho excepcional em termos de linguagem cinematográfica, apostando numa narrativa bastante convencional, ainda que correta, e num roteiro de fortes traços melodramáticos que beira o novelesco. Mesmo a trilha sonora do veterano Enio Morricone se rende por vezes a clichês melosos (os temas bem mais expressivos no também recente “Os oito odiados” mostra que o velho mestre ainda é capaz de surpreender). Por outro lado, o elenco de atuações seguras e sutis conseguem compensar a abordagem artística um tanto mofada de Carion. No mais, resta à “Viva a França!” a já mencionada possibilidade de fazer sua plateia refletir sobre os estranhos e hipócritas descaminhos da sociedade ocidental na presente conjuntura sócio-política.

segunda-feira, outubro 10, 2016

Os senhores da guerra, de Tabajara Ruas *

Dá para dizer que pelo menos há duas coisas em que a produção gaúcha “Os senhores da guerra” (2014) acertou: o bom senso de marketing por lançar o filme em questão na semana farroupilha e o competente trabalho de Kapel Furman nos efeitos especiais (com destaque para a parte “gore” da coisa – vísceras e sangue proliferam de forma convincente). Fora esses dois aspectos, a obra dirigida por Tabajara Ruas naufraga da maneira clamorosa, principalmente pelos mesmos equívocos que vêm marcando esse gênero do drama de época regionalista gaúcho, em que o simples fato de ter como pano de fundo eventos históricos importantes procura mascarar uma falta de apuro na encenação e na dinâmica da narrativa (vide outros trabalhos falhados nesse linha como as adaptações cinematográficas recentes dos clássicos literários “Contos gauchescos” e “O tempo e o vento”). Não há uma fluência dramática no desenvolvimento de personagens e situações que os tornem críveis ou cativantes. Assim, o elenco interage e profere seus diálogos de maneira artificial e empostada, beirando um didatismo e mecanicidade que faz lembrar uma teatralização de terceira de um programa televisivo educativo estilo “telecurso 2º grau”. Ou seja, pode funcionar até numa sala de aula, mas como cinema está muito longe de convencer. Além disso, o roteiro peca demais na forma como personagens entram e saem da narrativa sem maiores explicações ou aprofundamento, sugerindo que algumas cenas devem ter ficado de fora na montagem e o que sobrou acabou mal costurado. Esse tom meio apressado na concepção da trama também fica evidente nas sequências de batalha (que deveriam ser o ápice existencial do filme), não havendo uma coreografia de impacto nas sequências de lutas e tiroteios, prevalecendo uma edição que picota a ação de uma maneira que parece querer esconder uma certa precariedade na encenação. A direção de fotografia é anódina dentro do seu estilo cartão postal, enquanto a trilha sonora envereda por uma obviedade em suas milongas de letras e melodias pouco marcantes. Diante de todas essas soluções artísticas nada inspiradas de “Os senhores da guerra”, mesmo boas ideias como a do texto em forma de poesia de um narrador/declamador, sugerindo uma espécie de síntese formal entre literatura e cinema, acaba se revelando apenas um recurso estético cansativo e sem força. Em um ano como esse, em que outras produções gaúchas (“Ponto zero”, “Errantes”, “Nós duas descendo a escada”) apareceram em nossas salas de cinema mostrando caminhos narrativos mais inquietantes e criativos, um filme como “Os senhores da guerra”, de linguagem cinematográfica tão mofada e destituída de vigor, acaba destinado a uma espécie de limbo de trabalhos inexpressivos.

sexta-feira, outubro 07, 2016

Corrida sem fim, de Monte Hellman ****

“Sem destino” (1969) é considerada como a obra fundamental do cinema a marcar o movimento da contracultura nos anos 60. A obra-prima de Denis Hopper ajudou a definir um estilo mais libertário de filmar e também uma abordagem temática contestadora dos valores e preconceitos pequeno-burgueses da sociedade ocidental, além de ajudar a construir o mito da estrada como uma espécie de reflexo de questionamentos existenciais. Ainda que mais obscura, a produção norte-americana “Corrida sem fim” (1971) aprofunda ainda mais esses preceitos artísticos de “Sem destino”. O diretor Monte Hellman delineia a sua narrativa de forma minimalista – em contraponto às corridas alucinadas que permeiam a trama, os “bastidores” que às envolvem tem uma caracterização dramática contemplativa e melancólica, enfatizando silêncios e diálogos algo elípticos. A estética na concepção visual obedece a uma estranha síntese entre o clássico e a concisão, em que direção de fotografia investe em enquadramentos que tanto dão uma ideia de imensidão épica das paisagens interioranas dos Estados Unidos quanto de melancolia e desolação, como se fosse uma espécie de atualização desolada dos faroestes de John Ford. Tal moldura formal revela uma sintonia extraordinária com o sutil subtexto do roteiro que enfatiza a sensação de inadequação e impossibilidade de aceitação das regras de convívio social por parte dos personagens desajustados que povoam a trama. Aliás, as atuações icônicas de James Taylor, Dennis Wilson e Warren Oates nos papeis de tais figuras outsiders representam outro ponto alto de verdadeira pérola escondida da filmografia norte-americana.

quinta-feira, outubro 06, 2016

Crooklyn, de Spike Lee ****

Em um primeiro momento, “Crookly” (1994) aparenta algo como um nostálgico e movimentado drama familiar situado no bairro nova-iorquino Brooklyn na virada das décadas 60 e 70. Por vezes, a estrutura narrativa acentua essa impressão ao formatar a trama em alguns momentos como se fosse uma sucessão de episódios entre o cômico e o pitoresco. Aos poucos, entretanto, os personagens e as próprias situações do roteiro vão ganhando unidade e mesmo maior profundidade psicológica. A história do processo de amadurecimento da pequena Troy (Zelda Harris) em meio a um conturbado ambiente familiar (pai música desempregado, mãe sobrecarregada e irmãos encapetados) ganha nuances dramáticas muito bem delineadas e também apresenta um forte subtexto sócio-político, em que a gradual tomada de consciência da protagonista da necessidade de fortalecer seu caráter e postura moral diante das dificuldades da vida se relaciona com um contexto histórico em que os negros norte-americanos passam a ser tornarem mais proativos e contestadores da discriminação que sofrem (não à toa, Martin Luther King, Angela Davis e Malcom X são originários desse cenário). Dessa forma, “Crooklyn” mostra notável sintonia com outros filmes de seu diretor Spike Lee que também apresentam essa temática social como “Faça a coisa certa” (1989), “Febre na selva” (1991) e “Malcom X” (1992). E também assim como em tais obras, estão lá boa parte das características mais expressivas do estilo do cineasta – a encenação vibrante, a concepção visual baseada em cores fortes e enquadramentos virtuosos, a montagem sintetizada numa dinâmica peculiar entre imagem e som. Nesse último quesito, “Crooklyn” é particularmente antológico na forma com que as maravilhosas canções de black music da trilha sonora se inserem na narrativa.

quarta-feira, outubro 05, 2016

Incompreendida, de Asia Argento ***1/2

Não se pode ser filha de um gênio perturbado como Dario Argento e fica incólume a isso. Asia Argento tem pautado a sua trajetória como atriz e cineasta por obras que sempre tangenciam a estranheza e a sordidez. Depois da descida aos infernos nas falsas memórias do pseudo-escritor J.T. Leroy no brilhante Maldito coração (2004), ela volta à função de diretora em Incompreendida (2014), obra de nítido cunho autobiográfico em que Asia focaliza alguns episódios de sua infância na época em que seus pais se separaram. Boatos e fofocas dizem que Dario Argento entrou em depressão depois de assistir ao resultado final. E não é para menos: ainda que o roteiro traga algumas convenções típicas do gênero do memorialismo cinematográfico, resvalando por vezes no sentimentalismo, o retrato que a diretora oferece é bastante visceral e cruel de uma rotina de incompreensão, indiferença e abandono por parte de seus pais. Mas o painel emocional elaborado por Asia não é unidimensional ou maniqueísta: ainda que pai (Gabriel Garko) e mãe (Charlotte Gainsbourg) sejam figuras bem escrotas em algumas situações, há também uma aura de fascinação em torno de suas figuras exuberantes. Nesse sentido, Argento por vezes incorpora uma estilização visual e narrativa que remete diretamente ao melhor da obra de Dario, além de evidenciar um trabalho de direção de arte sensacional na evocação da estética oitentista, com direito inclusive a uma memorável trilha sonora de pastiches de canções de típica sonoridade da época. Tais nuances formais e temáticas de Incompreendida fazem com que se imagine como seria um filme de horror dirigido por Asia.

terça-feira, outubro 04, 2016

O lar das crianças peculiares, de Tim Burton ***

Não que “O lar das crianças peculiares” (2016) seja um mau filme. Pelo contrário – perto dessas franquias de fantasia adolescente que proliferam aos montes nas salas de cinema ultimamente, a produção em questão até se destaca pela narrativa equilibrada e pela caracterização visual de criatividade acima da média. O que torna tal obra frustrante, entretanto, é o fato de se saber que quem é o seu diretor é Tim Burton, nome de quem se espera sempre muito mais. Por vezes, em algumas sequências, até dá para perceber aquela síntese de formalismo barroco e atmosfera bizarra que se tornou a grande marca artística de Burton. Fora isso, o traço autoral do cineasta aparece muito pouco, ficando imersa no roteiro genérico e numa certa assepsia estética. Ao invés de perverter os cânones narrativos típicos do gênero aventura contemporâneo e os moldar dentro de seus conceitos particulares, Burton se limita a readequar sua linguagem dentro de tal ortodoxia. O resultado final é competente e até consegue cativar por vezes a plateia, mas é duro saber que esse padrão bem comportado vem do mesmo cara que concebeu diversões alucinadas antológicas como “Batman – O retorno” (1992) e “Marte ataca!” (1996) ou geniais contos de fadas perversos como “Edward Mãos de Tesoura” (1990) ou “A lenda do cavaleiro sem cabeça” (1999).

segunda-feira, outubro 03, 2016

Sete homens e um destino, de Antoine Fuqua ***

Essa refilmagem do clássico faroeste de 1960 dirigido por John Sturges está bem longe de cair na vala comum do mero oportunismo. O que o diretor Antoine Fuqua faz em “Sete homens e um destino” (2016) é uma releitura equilibrada, que tanto moderniza algumas nuances temáticas e traços estéticos quanto preserva a narrativa tradicional de western mitológico e épico. É claro que a comparação que se faz entre as duas obras diz muito sobre a mudança na linguagem do cinema de ação que se operaram nas décadas que separam as duas versões. Diante do formalismo mais frenético da produção desse ano, o filme de Sturges parece contemplativo, quase como se algo proveniente do cinema europeu. Ainda assim, o trabalho de Fuqua apresenta um certo rigor em sua realização, com um roteiro que dá alguma profundidade psicológica para os seus personagens e que faz com que algumas situações da história tenham um subtexto sócio-político bem delineado (o discurso inicial do latifundiário-vilão Bartholomew Bogue sobre a ligação capitalismo e religião é bastante revelador sobre a hipócrita moral da sociedade ocidental), além de um formalismo eficiente na sua síntese de fotografia épica, edição bem dosada nos seus cortes e sequências de ação coreografadas com precisão em suas profusões de tiros e destruição (com destaque para toda a sequência final do duelo entre os protagonistas e as dezenas de facínoras comandados por Bogue). E mesmo aspectos que poderiam soar forçados, como o fato dos “mocinhos” representarem um conjunto étnico mais diversificado, acabam se inserindo com naturalidade na narrativa. Tais escolhas artísticas de Fuqua fazem com que o seu filme tenha uma tendência mais realista do que a obra original, que tinha uma atmosfera mais mítica, evidenciando ainda que o cinema de ação contemporâneo dos grandes estúdios ainda é capaz de cativar o espectador sem apelar para excessos pseudo-modernos como os do terrível “Esquadrão Suicida”.