quarta-feira, setembro 30, 2015

A pele de Vênus, de Roman Polanski ****

A trajetória pessoal e artística do diretor Roman Polanski foi marcada por alguns fatos polêmicos – a morte da família em um campo de concentração, obras que lidavam com o macabro e a perversidade, esposa assassinada por uma seita, a acusação e a condenação por estupro de menor. Tudo isso, em menor ou maior grau, sempre se refletiu nos seus filmes. Essa relação tão intrínseca entre a vida e a arte atinge um ponto criativo extraordinário em “A pele de Vênus” (2013). Ainda que baseada numa peça teatral escrita pelo dramaturgo David Ives, todos os dilemas existenciais da trama e os truques estéticos parecem refletir as obsessões artísticas e pessoais de Polanski. Mas a produção vai muito além de uma mera egotrip – entre devaneios formais e temáticos, há também espaço para uma visão arguta e irônica sobre a história da arte, principalmente no que diz respeito à visão que se tem da mulher nas variadas expressões culturais.


A escritora Camille Paglia já havia dito em “Personas sexuais” que a história da literatura ocidental se resumia basicamente ao medo atávico do homem em relação a mulher. Tal relação parece ser a mola mestra da narrativa em “A pele de Vênus”. A relação que se estabelece entre o diretor teatral Thomas (Mathieu Amalric) e a atriz Vanda (Emmanuelle Seigner) é um misto perturbador de poder, sedução e dissolução. O que era para ser uma audição passa a ser um exercício de questionamento sobre o caráter misógino que impregna o texto literário de Leopold von Sacher-Masoch. Gradualmente, a simbologia entre o conflito verbal e até mesmo físico entre os protagonistas vai se tornando cada vez mais rica e complexa nas suas referências e significados. Será que tudo é permitido realmente em nome da arte? O artista está acima das questões morais? Tais indagações recebem um tratamento textual bastante refinado, com direito a citações a Velvet Underground, psicanálise, tragédia grega e teatro oriental. Essa forte conotação humanista do roteiro recebe um tratamento formal ousado e vibrante. Ainda que baseada num original teatral e o próprio espaço de atuação se seja dentro de um teatro, “A pele de Vênus” tem ritmo narrativo estabelecido por Polanski de talhe cinematográfico, baseado numa encenação precisa e na edição repleta de nuances expressivas, além da fotografia cujos enquadramentos e iluminação criam uma atmosfera entre o real e o pesadelo. Mas ainda que o seu formalismo seja eminentemente cinematográfico, é fascinante a forma com que Polanski insere o teatro e a literatura dentro do seu arcabouço narrativo. São duas ações que correm de forma simultânea – a do plano “real” do ensaio e jogo mental entre Thomas e Vanda e aquela do universo da peça encenada. As duas se cruzam de forma intensa e constante, cuja mudança de plano se sucede apenas nas sutis mudanças no tom de voz ou na expressão do olhar dos intérpretes. Por trás de inflexão de cada palavra ou gesto de Vanda há uma armadilha para Thomas, assim como as variações no tom de voz e no olhar desse último escodem desejos e medos obscuros. A genialidade de Polanski se manifesta principalmente no forma com que todos esses detalhes formais, narrativos e textuais se combinam e se fundem numa obra atemporal e ambígua. Ele dá a impressão de falar de si mesmo, mas na verdade fala também sobre todos nós.

segunda-feira, setembro 28, 2015

Bistrô Romantique, de Joël Vanhoebrouck **

Hoje em dia dá para dizer que a diferenciação em termos narrativos entre produções norte-americanas e europeia é praticamente nula. Na tentativa de ganhar pontos com as plateias acostumadas com convencionalidades formais e temáticas, boa parte dos filmes provenientes do velho mundo se acomodam a fórmulas bem definidas e previsíveis. Se alguns anos atrás a premissa principal da trama de “Bistrô Romantique” (2012) viesse a nossos olhos, logo se pensaria em uma abordagem densa e profunda: dentro do espaço de um pequeno restaurante na noite do dia dos namorados, o roteiro foca os encontros e desencontros de diversos relacionamentos amorosos, trazendo um viés questionador na forma com que expõe as agruras de casamentos, namoros e afins. No moldes do que se faz hoje em dia no gênero drama, entretanto, a obra do diretor belga Joël Vanhoeubrock se adapta a um forma óbvia e banal. Até dá para sentir uma certa sobriedade nos composições dramáticas de parte do elenco, além da condução da narrativa ser agradável no seu ritmo e algumas situações do roteiro poderem criar alguma empatia ou identificação com parcelas do público. Mas isso é muito pouco para tornar “Bistrô Romantique” algo efetivamente memorável.

sexta-feira, setembro 25, 2015

O pequeno Quinquin, de Bruno Dumont ****

O que entra dentro da concepção artística da produção francesa “O pequeno Quinquin” (2014) são diversos elementos e referências culturais que parecem remeter à própria história do cinema. Repare-se, por exemplo, na figura do delegado Van der Weyden (Bernard Pruvost) – seus trejeitos e composição dramática fazem lembrar comédias mudas e o estilo de interpretação do neo-realismo italiano. Ou na sequência da missa de sepultamento com padres e coroinhas fazendo pegadinhas e rindo sem parar que fazem lembrar aquelas velhas obras cômicas com Totò ou a encenação picaresca típica de Pasolini. A profusão de tipos esquisitos e de situações nonsense evocam o surrealismo ácido de Luis Buñuel e a estética delirante de David Lynch. A presença constante dessas influências e citações visuais não significam, entretanto, despersonalização de estilo do cineasta Bruno Dumont. Pelo contrário. O que ocorre na realidade é uma reinterpretação radical e rigorosa de referências e clichês formais e temáticos passando pelo severo filtro ascético de Dumont. A sensação final para o espectador é de puro desconcerto sensorial.

O que Dumont estabelece em “O pequeno Quinquin” é um épico místico e perverso. Se por um lado inicialmente se tem a percepção de uma abordagem realista, aos poucos a narrativa vai se transformando numa espécie de parábola moral permeada por uma constante atmosfera de estranheza e mistério. O retrato do bizarro cotidiano de uma cidadezinha litorânea da Normandia se molda em diferentes formas – conto de suspense de leves tons góticos, sátira cruel e simbólica com a sociedade ocidental contemporânea e mesmo um relato apocalíptico sobre a decadência do humanismo. Dentro de tal ótica complexa, cada recurso narrativo empregado por Dumont exerce um papel fundamental: a abordagem emocional distanciada, as brilhantes interpretações naif do elenco, o uso econômico da trilha musical como comentário irônico das cenas, o virtuoso registro visual da direção de fotografia que valoriza tanto a beleza melancólica das praias normandas quanto detalhes cênicos insólitos (a vaca carregada por um helicóptero é exemplar contundente de tal formalismo).


Talvez a grandeza artística e humana de “O pequeno Quinquin” acabe sendo um potencial “afaste grandes plateias”. Afinal, é uma obra de ritmo narrativo nada frenético e de longa duração (três horas e vinte minutos). Dumont não oferece concessões – seu filme exige um olhar contemplativo e que se permita adentrar numa dimensão existencial muito particular. Quem se propor a encarar esse desafio estético, entretanto, poderá ter como recompensa assistir a uma das obras cinematográficas fundamentais dessa década.

quarta-feira, setembro 23, 2015

Ricki and The Flash, de Jonathan Demme **1/2

Geralmente, a relação do diretor Jonathan Demme com a música pop é bastante produtiva. É só pensar nos antológicos filmes-concertos “Stop making sense” (1984) e “Heart of Gold” (2006), além dos extraordinários “Totalmente selvagem” (1986) e “O casamento de Rachel” (2008) que tinham suas respectivas trilhas sonoras repletas de canções como um dos seus grandes pontos altos. Assim, a expectativa para “Ricki and The Flash” (2015), cuja trama traz como protagonista uma cantora e guitarrista (Meryl Streep) que lidera uma banda de rock and roll que toca num pub, era bastante alta. O resultado final, entretanto, acaba sendo decepcionante. Talvez a grande pisada na bola de Demme tenha sido chamar a superestimada Diablo Cody como roteirista. A história até traz alguns elementos sociais e intimistas interessantes, principalmente porque traz à tona a atual divisão política acirrada que assola a sociedade dos Estados Unidos entre liberais e conservadores. O problema é que a caracterização de situações e personagens do texto de Cody é simplória e sem imaginação, o que acaba afetando a própria encenação concebida por Demme, que se se efetiva de forma pálida e por vezes até burocrática (é provável que a constante cara de sono de Kevin Kline seja reflexo disso). Os dilemas dramáticos da história de “Ricki and The Flash” lembram bastante aqueles de “O casamento de Rachel”, mas sem a crueza e a ironia contundentes que marcavam esse último. O que faz valer o ingresso para a produção são os faiscantes números musicais protagonizados pela banda do título (aliás, uma reunião de cobras que já tocaram com gente como Neil Young e Funkadelic) – Demme continua mestre na forma com que registra um show, tanto na performance dos artistas quanto na reação da plateia. No final das contas, parece que roteiro e encenação só serviram como pretexto para esses sensacionais números musicais.

terça-feira, setembro 22, 2015

Férias frustradas, de John Francis Daley e Jonathan M. Goldstein **

É claro que dentro dessa eterna prática de Hollywood em fazer remakes, continuações, reboots e afins o interesse principal é faturar um lucro fácil a partir de uma produção que já “deu certo” em termos comerciais. Também é fato, entretanto, que ocasionalmente essa “revisitação” traz alguma intenção artística mais relevante propondo um aprofundamento conceitual ou uma expansão estética (nesse sentido, é só conferir o recente e extraordinário “Mad Max – A estrada da fúria”). “Férias frustradas” (2015) acaba sendo um exemplar emblemático desses conflitos comerciais e artísticos. Assim como no filme original de 1983 que deu origem à franquia, a proposta dessa comédia é até simples: tendo como base um roteiro repleto de pastelão, escatologias, grosserias e piadinhas infames, há espaço para um subtexto de caráter crítico que mistura exaltação de valores familiares e ironia com os valores e boçalidades do norte-americano médio. No caso dessa produção mais recente, dá para dizer que há uma queda maior para a violência e escrotidão gráficas. No cômputo geral, a equação entre comédia física e narrativa equilibrada é muito mais afiada no memorável trabalho original de Harold Ramis e Amy Heckerling. A obra dirigida por John Francis Daley e Jonathan M. Goldstein tem alguns bons momentos engraçados pelos seus exageros, mas poucas vezes consegue arranjar o tom narrativo adequado. Mesmo o seu roteiro é bem descompassado – a pretensa ironia ácida de algumas situações acaba atenuada por um discurso temático bastante conservador e simplórios nas resoluções dos principais dilemas da história.

segunda-feira, setembro 21, 2015

O pequeno príncipe, de Mark Osborne ***

O diretor Mark Osborne até que comete algumas ousadias interessantes na mais recente versão cinematográfica de “O pequeno príncipe” (2015). Ao invés de simplesmente adaptar ipsis literis a clássica obra literária de Saint-Exupéry, ele construiu uma narrativa que se desenvolve em três planos de trama – no primeiro, é mostrada a vida de uma menina presa numa rotina de estudos para entrar em uma conceituada escola que tem a sua vida mudada pela leitura do livro em questão; no segundo plano, há trechos do romance que são transpostos para o audiovisual; e por fim há o momento em que os dois primeiros planos se fundem, gerando um universo ambíguo que tanto pode ser a “realidade” quanto um delírio onírico da protagonista. O grande mérito do filme é conseguir enquadrar esses planos dentro de uma narrativa coerente e de fácil assimilação, fazendo com que ela possa ser apreciada tanto por crianças quanto por adultos. O roteiro capta com sensibilidade as principais nuances existenciais do livro, conseguindo também as enquadrar dentro de uma temática contemporânea (o subtexto traz um conteúdo bem crítico em relação à rotina de desumanização da infância em nome de um futuro profissional “bem sucedido”). “O pequeno príncipe” traz ainda um cuidado estético acima da média, combinando diferentes técnicas de animação (principalmente digital e stop motion) que variam de acordo com as aludidos planos de realidade da trama. As soluções finais da história sugerem uma forte queda para o convencional, mas ainda assim o resultado final é acima da média do que tem sido feito dentro do cinema infanto-juvenil, além de ressaltar a atemporalidade do livro de Saint-Exupéry.

sexta-feira, setembro 18, 2015

Love, de Gaspar Noé ****

Pretensão, narcisismo, mau gosto, polemismo marqueteiro – tais palavras e expressões costumam ser associadas à Gaspar Noé e à sua filmografia. E tais acusações não são sem fundamento. Seus filmes são bastante vinculados à sua personalidade e sempre, de maneira proposital, trazem algo que induz discussões estéticas e comportamentais. Por outro lado, tais aspectos que seriam deméritos fazem parte da própria natureza artística controversa da sua obra. Seu conjunto de trabalhos pode ser relativamente escasso na quantidade (quatro longas-metragens), mas carregam uma carga tão grande de referências e elementos temáticos e formais que acabam formando um universo amplo a ponto de tais produções se comunicarem entre si de forma bastante particular. Pode até existir (e existe aos montes) quem deteste seus filmes, mas também é inegável que não se consiga ficar impassível diante da exibição de algum deles.

“Love” (2015) sintetiza de forma contundente tanto o estilo característico de Noé quanto os dilemas e contradições que o cercam. A relação que se estabelece entre essa produção mais recente e o extraordinário penúltimo filme dirigido por ele, “Enter The Void” (2009), é profunda. Além de evocar truques narrativos e efeitos visuais marcantes do referido trabalho anterior, “Love” oferece um contraponto existencial. Enquanto “Enter The Void” tinha por premissa principal uma espécie de viagem sensorial de uma alma recém desencarnada, “Love” é uma verdadeira jornada em relação à carnalidade. Mas não se trata de uma mera celebração do hedonismo. Noé coloca o sexo no mesmo patamar de importância (por vezes, até mais) que a espiritualidade em relação ao amor romântico. Nesse sentido, o fato de Noé de usar fartamente o sexo explícito como recurso cênico foge do gratuito e do óbvio – a visceralidade dos sentimentos e sensações dos personagens se manifestam com toda a sua intensidade diante desse grafismo erótico despudorado. Essas sequencias de sexo são perturbadoras no sentido em que a sua coreografia tanto transborda excitação quanto um pungente humanismo. A sensualidade de extremos também é a extensão das personalidades explosivas do casal protagonista, em que os atraques do corpos são irmanados a líricas cenas de declarações românticas e a momentos de fúria verbal derivada de ciúmes e rejeição.


Assim como em “Enter the Void”, a narrativa em “Love” se estrutura como se fosse um fluxo de consciência desordenado e aleatório. Os fatos se sucedem na trama de acordo com o encadeamento emocional de lembranças de Murphy (Karl Glusman) quando ele descobre que a ex-namorada (e eterna paixão) Electra (Aomi Muyock) se encontra desaparecida e provavelmente tenha cometido suicídio. O rigor artístico de Noé e tamanho dentro dessa concepção que boa parte dos cortes da montagem simula uma espécie de entrelaçamento abrupto de memórias e pensamentos, enquanto a narração de Murphy é um monólogo interno, perturbado e repleto de indagações e angústia. O registro formal tem um viés realista, mas que traz um grau de variação sensorial impressionante, indo de uma limpidez celestial até uma atmosfera de sordidez infernal, sempre passando pelo filtro de uma fotografia cujos enquadramentos e iluminação trazem uma riqueza pictórica repleta de nuances imagéticas brilhantes, tendo ainda por complementação um uso fortemente criativo e de sensibilidade à flor-da-pele de temas musicais na trilha sonora. Essa colisão entre barroquismo audiovisual e conteúdo misto de melodrama e choque é a marca registrada autoral indelével de Noé, fazendo de “Love” a mais improvável (e das mais fascinantes) obra romântica dos últimos anos.

quinta-feira, setembro 17, 2015

18 comidas, de Jorge Coira Neto **

Filmes baseados em narrativas mosaicos sempre farão lembrar algumas da principais obras de Robert Altman (“Nashville”, “Cenas de um casamento”, “Short Cuts”, “A última noite”). Não foi o brilhante cineasta americano quem criou esse tipo de filme, mas talvez seja aquele que melhor delineou tal formatação, tornando-se influência para vários diretores. Na produção espanhola “18 comidas” (2010) dá para sentir essa ascendência artística de Altman. Na trama, constam algumas histórias paralelas que se entrecruzam em pequenos detalhes, procurando a unidade a partir do conceito de que boa parte dos personagens se encontram numa situação de desconforto existencial. Mas se Altman dentro de seus princípios estéticos e temáticos se mostrava um artista inquieto e contestador, no caso do espanhol Jorge Coira Nieto ele pouco consegue transcender do apenas correto. Por mais que em termos de conteúdo sejam evocados alguns temas prementes da contemporaneidade (solidão, vazio existencial, relacionamentos familiares conturbados), a encenação resvala vários vezes no banal e a narrativa é destituída de vigor. É claro que em alguns momentos dá para sentir uma vontade de Nieto em fugir do lugar comum. Esse desejo, contudo, acaba ficando apenas na intenção, faltando para Nieto maior estofo artístico para tornar “18 comidas” uma obra efetivamente memorável.

quarta-feira, setembro 16, 2015

O tenente sedutor, de Ernst Lubitsch ****

É comum ao se ler análises sobre filmes, músicas, livros HQ e afins que contam já com algumas décadas de existência expressões do tipo “não envelheceu bem”, “é datado” e outras frases parecidas. É claro que uma obra se adequa ao tempo em que foi concebida, com detalhes como técnica, estilo, tecnologia e costumes sendo emblemáticos desse período. Mas em sua essência artística, naquilo que diz respeito a criatividade e sagacidade, essa mesma obra é atemporal, para o bem e para o mal. Essa breve reflexão serve para referenda que um filme extraordinário como “O tenente sedutor” (1931) sempre será capaz de cativar plateias, independente do ano em que for visto. O que prevalece sempre é a genialidade do diretor Ernest Lubitsch em termos de encenação e ironia ácida. Os diálogos repletos de tiradas sacanas, a narrativa de ritmo envolvente, as atuações carismáticas e bem humoradas do trio principal de atores, a elegância da composição cênica e as canções espirituosas que pontuam a trama compõem uma produção antológica, cujo grau de transgressão e precisa concisão estética permanece sempre atual e relevante.

terça-feira, setembro 15, 2015

Dois casamentos, de Luiz Rosemberg Filho ***

Em um primeiro momento, a linguagem antinaturalista e ambientação num palco escurecido fazem supor que “Dois casamentos” (2014) seria uma espécie de registro audiovisual de uma peça teatral. O desenvolvimento da narrativa, entretanto, mostra que o filme mais recente do diretor brasileiro Luiz Rosemberg Filho trafega por caminhos menos óbvios. A produção parece condensar ideias e truques estéticos que resultam num híbrido inquietante e vigoroso – estão lá o texto de conteúdo contestador da moral burguesa que evoca o estilo de Nelson Rodrigues, a utilização de uma trilha sonora de temas que variam de melodias dramáticas a estranhos drones, as atuações expressivas das atrizes baseadas na variação intensa entre o contido e o exagero, os efeitos visuais que evocam um clima de pesadelo (nesse sentido, a obra apresenta conexões com o cinema delirante de Luis Buñuel e David Lynch). Por vezes esse formalismo intrincado de Rosemberg leva a narrativa para um tom enfadonho, mas em outros momentos gera um efeito sensorial de encanto perturbador para o espectador.

segunda-feira, setembro 14, 2015

Shaun, o carneiro, de Richard Starzak e Mark Burton ***

Nenhuma das tendências mais modernas do cinema de animação parecem dar as caras em “Shaun, o carneiro” (2015). A técnica de stop motion não apresenta qualquer inovação técnica e o conteúdo de seu roteiro beira a ingenuidade em seus dilemas e soluções dramáticas. De certa forma, até parece uma reciclagem de coisas já vistas, em outros desenhos animados (nesse sentido, “A fuga das galinhas” é o que mais vem à mente de imediato). Esse anacronismo da produção dirigida por Richard Starzak e Mark Burton talvez seja o seu grande barato estético. Predomina no filme uma atmosfera atemporal e nostálgica: o comportamento do personagem título e os demais animais da fazenda representam uma síntese entre a singeleza e a ironia, os diálogos são grunhidos bastante expressivos, a trama é um acúmulo de quiproquós amalucados. As aventuras do carneiro protagonista já eram mostradas numa série televisiva, o que explica esse tom de leveza da animação. Está bem longe de ser uma obra-prima, mas também foge bastante das narrativas previsíveis e burocratas do que se faz atualmente na grande maiorias das produções do gênero. “Shaun” tem um grafismo sedutor dentro da sua simplicidade visual, além de algumas memoráveis e convincentes sequencias que fundem com naturalidade humor e ação.

sexta-feira, setembro 11, 2015

Ted 2, de Seth MacFarlane **

O primeiro “Ted” (2012) trazia uma síntese narrativa bem interessante – era uma comédia que se formatava dentro de um padrão convencional de narrativa com uma trama repleta de momentos hilários baseados num coquetel de grosserias, piadas politicamente incorretas, escatologias e citações pop, tendo um sutil subtexto de caráter libertário e crítico das hipocrisias moralistas da sociedade norte-americana. Em “Ted 2” (2015), o diretor Seth MacFarlane não atinge o mesmo equilíbrio temático e estético da produção anterior. O referido subtexto contestatório fica em primeiro plano no roteiro, com uma história que se baseia na luta do ursinho protagonista em defesa de seus direitos civis. É claro que o filme não se leva totalmente a sério nesse viés político, com o próprio Ted tirando uma onda com o teor edificante da produção. Ainda assim, o filme perde muito da sua fluência narrativa a partir desse direcionamento criativo de MacFarlane. Não que as questões levantadas pelo filme não sejam pertinentes e relevantes. Pelo contrário. O fato é que a abordagem de “Ted 2” retira aquele pique alucinante de gags ácidas que era a tônica do filme anterior em nome de uma orientação mais comportada, resultando numa composição dramática pouco convincente e por vezes até enfadonha. E se o ursinho continua carismático e mesmo Mark Wahlberg se mostra bem à vontade na sua caracterização largadona de maconheiro abobado, por outro lado é uma baita bola fora colocar a inexpressiva Amanda Seyfried no papel principal feminino e ter um Morgan Freeman completamente no piloto automático.

quinta-feira, setembro 10, 2015

Sobre amigos, amor e vinho, de Eric Lavaine *1/2

Quando Jean-Luc Godard, François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette e companhia começaram a despontar tanto como críticos da Cahiers du Cinema como diretores na Nouvelle Vague, em meados da década de 50, tal movimento de talentos e ideias também representava uma reação contra o “cinema francês de qualidade”. Em linhas gerais, tal designação se referia a um tipo de filme que era formalmente competente na sua realização e agradável de ver, mas que era nulo em termos criativos e de conteúdo, servindo apenas para satisfazer um público médio pouco exigente. Passadas algumas décadas, parece que o cinema da França se encontra em um beco sem saída estético semelhante àquele. Uma obra como “Sobre amigos, amor e vinho” (2014) acaba sendo bem emblemática dessa situação. Em sua premissa principal, o roteiro até busca um certo questionamento existencial e social pertinente: a do pequeno burguês cinquentão (Lambert Wilson) que após um ataque cardíaco passa a questionar suas relações com a família, amigos e o mundo em geral. Tal viés crítico, entretanto, acaba bastante atenuado ao receber um tratamento formal asséptico e despersonalizado. Fotografia e edição parecem emular um vídeo institucional turístico de Lyon e das idílicas paisagens interioranas francesas. Os próprios conflitos e dilemas da trama passam por um filtro moralizante e conformista, o que aliado à caracterização caricatural e simplória de personagens e situações retira qualquer possibilidade de uma densidade dramática mais consistente para o filme. Assumindo com orgulho o manto do “cinema francês de qualidade”, “Sobre amigos, amor e vinho” está mais para um besteirol envergonhado do que para um pretenso retrato de geração.

quarta-feira, setembro 09, 2015

Que horas ela volta?, de Anna Muylaert ***

Não há como escrever sobre “Que horas ela volta?” (2015) sem falar sobre a atual conjuntura política e social que certa a obra. A pretensão desse texto não é fazer uma análise sociológica e nem tentar simplifica questões complexas, mas a verdade é que a grande maioria da sociedade brasileira tem uma imensa dificuldade em discutir sobre temas espinhosos como conflito de classes e preconceito social. Quando debates e mesmo obras culturais versam sobre tais assuntos, geralmente, o direcionamento é de negar ou minimizar a gravidade de tais situações. Diante desse quadro, acaba sendo compreensível o impacto artístico e cultural que o filme de Anna Muylaert tem causado. Ainda que a produção se formate segundo as regras de um melodrama convencional e por vezes caia em soluções fáceis e conciliatórias para os dilemas que o seu roteiro aborda (ou mesmo excessivamente caricaturais, como a caracterização caricata da mãe pequeno burguesa), é inegável que Muylaert cria uma narrativa envolvente e por vezes perpassada por um senso de humor bastante afiado e perturbador (a sequência em que o pai de família pede a filha da doméstica em casamento é antológica pelo alto grau de ácido sarcasmo). Além disso, “Que horas ela volta?” traz alguns fortes trunfos como a bela trilha sonora composta e executada por Fábio Trummer (líder da ótima banda pernambucana Eddie) e o elenco que apresenta atuações luminosas de Camila Márdila e Lourenço Mutarelli – esse último com uma excêntrica composição dramática que lembra o trabalho de Jean-Claude Bernardet em “Periscópio” (2012)

terça-feira, setembro 08, 2015

O último cine drive-in, de Iberê Carvalho **

É inegável que há em “O último cine drive-in” (2014) algumas boas sacadas formais. A direção de fotografia abusa de grandes planos, evocando referências a faroestes clássicos, impressão essa ainda mais reforçada com a trilha sonora que se vale de pastiches na linha Enio Morricone e afins. A opção por esse estilo de composição visual valoriza também o próprio cenário da trama, a cidade de Brasília – o estilo de geografia local, arquitetura e disposição de ruas acabam tendo uma certa proximidade plástica com as longas planícies e cidadezinhas que serviam de pano de fundo para boa parte do westerns. Essas ideias estéticas interessantes, entretanto, acabam se revelando insuficientes para sustentar uma narrativa formulaica e muito presa a clichês. Mesmo que homenageie faroestes e que o roteiro e a direção de arte sejam repletos de citações a outros filmes, a produção dirigida por Iberê Carvalho tem como guia existencial o sentimental e superestimado “Cinema Paradiso” (1988), enquanto que a demais citações cinematográficas são jogadas na narrativa mais como enfeites a demonstrar uma suposta erudição cultural do que um recurso efetivo em termos estéticos e temáticos. As interpretações rasas e sem carisma de boa parte do elenco também não colaboram para que a obra atinja um nível artístico um pouco mais transcendente. É de se questionar como um melodrama tão convencional e cheirando a mofo como “O último cine drive-in” tenha sido fartamente elogiado e premiado no Festival Gramado. Talvez seja revelador da atual falta de identidade artística e cultural do evento.

sexta-feira, setembro 04, 2015

Últimas conversas, de Eduardo Coutinho ****

Pode parecer estranho, mas a grande referência que me veio à cabeça quando assisti a Últimas conversas (2014) foi Oito e meio (1963), um dos grandes clássicos de Federico Fellini. A comparação pode parecer estapafúrdia, até porque as obras mencionadas pertencem a gêneros diferentes. Mas essa associação também surgiu também devido a um comentário que um companheiro de Zinematógrafo, Leonardo Bomfim, fez sobre o filme de Fellini que eu nunca esqueci: a de que Oito e meio não trata na realidade sobre a crise de criatividade de seu protagonista, o cineasta Guido Anselmi (Marcelo Mastroianni) – o verdadeiro dilema estaria em um excesso de criatividade por parte do personagem mencionado. E é justamente nessa encruzilhada que o diretor Eduardo Coutinho parece se colocar em Últimas conversas.

Na superfície típica de que uma sinopse pode oferecer, pode-se colocar que o tema da última produção dirigida por Coutinho seria a de retratar a juventude de classe média baixa brasileira dessas primeiras décadas do século XXI, principalmente considerando as políticas de inclusão social e educacional que se proliferaram nos últimos anos. Para isso, são colhidos depoimentos individuais de jovens dentro do que parece ser uma sala de aula “descarnada”. Essa formatação pode soar um tanto espartana. E é realmente bastante simples. Outros documentários que versaram sobre temáticas parecidas adotaram formatações semelhantes. Só que logos nas seqüências iniciais Coutinho rompe com essa previsibilidade. Para começar, joga até mesmo a ordem cronológica para o espaço. As primeiras cenas de Últimas conversas são com o próprio Coutinho demonstrando evidente incômodo com o material colhido. Ele admite não ter empatia com os seus entrevistados, questiona se tudo o que filmou pode gerar uma obra efetivamente interessante, considera a possibilidade de ter escolhido mal o seu projeto, discute a sua relação com os mecanismos de produção de um filme, e, até mesmo, coloca o ato de fazer um documentário como vital para si mesmo. São nessas observações do diretor que se concentram a verdadeira natureza do que representa Últimas conversas: a necessidade de Coutinho realizar o seu documentário, mesmo com a obra sendo um potencial projeto fracassado. Coutinho esmiúça dilemas e elementos contraditórios daquilo que está filmando ou até mesmo encenando, como se fosse essencial deixar evidentes os seus mecanismos estéticos e existenciais num processo perturbador de desconstrução do próprio gênero documentário. Nesse sentido, Últimas conversas se mostra em sintonia artística e autoral com outras produções do cineasta, principalmente com a combinação de escolhas aleatórias e rigor formal de O fim e o princípio (2006) e o emaranhado entre realidade e ficção de Jogo de cena (2007).

Dentro da lógica de que Últimas conversas é um reflexo dos autoquestionamentos criativos e pessoais de Coutinho, é bastante intrigante a forma com que a temática inicial referente ao retrato geracional se insere nesse insólito contexto autoral. Por mais que o documentarista se coloque em dúvida quanto ao seu objetivo, o fato é que Coutinho cria alguns momentos memoráveis no registro audiovisual de seus entrevistados. O cineasta tanto consegue ter uma interação notável com seus protagonistas, conduzindo as entrevistas de uma maneira de os deixar tão à vontade até chegar ao ponto de obter depoimentos fortemente reveladores, quanto é exímio na forma com que valoriza a ambientação na sua composição cênica. Nessa conjugação da perspectiva humana dos indivíduos retratados e do “artesanato” formal concebido por Coutinho, constitui-se um microuniverso particular de atmosfera sombria e por vezes até assustadora. Cada um dos depoimentos traz a sua carga emocional esperada para esse tipo de entrevista – percalços sentimentais, conflitos familiares, declarações amorosas, atos de auto-afirmação perante seus pares. Nesse sentido, são retomados os mesmos macetes narrativos de Edifício Máster (2002) e As canções (2011). Só que Coutinho não se contenta em apenas repetir fórmulas consagradas. Por trás do que seria apenas o mero discurso emotivo a buscar as lágrimas ou simpatia do espectador, perpassa um sutil viés desencantado perante um conjunto de depoimentos marcados pelo narcisismo e pela arrogância típicos da juventude, além da falta de uma certa coerência ideológica e intelectual desses garotos. O ceticismo de Coutinho em relação ao futuro do filme que dirige é fruto direto da sua decepção com o conteúdo das entrevistas. Diante dessa situação, Ultimas conversas acaba se convertendo de forma brilhante no retrato da transformação das inquietações e insatisfações artísticas de Coutinho como mote primordial e a própria razão de ser do documentário.


É claro que o fato do diretor João Moreira Salles ter assumido os retoques finais em Últimas conversas em virtude da trágica morte de Coutinho pode trazer dúvidas sobre quais seriam as parcelas de responsabilidade autoral sobre o resultado final da obra. Ainda mais pelo fato do trabalho de montagem no documentário ser fundamental na designação do seu sentido artístico. Ainda assim, em cada fotograma de Últimas conversas se percebe o forte DNA autoral de Coutinho. É como se ele soubesse o que o espectador esperava dele em suas produções e estivesse decidido a ir além de cumprir essas expectativas. Depois do emotivo e bem comportado As canções, Coutinho deixou aflorar o seu lado de velhinho perverso e amargo e ofereceu para o seu público esse incômodo e extraordinário misto de “crise criativa” e dissecação cruel de uma geração. A sacana conclusão de Últimas conversas sintetiza com ironia ácida esse involuntário testamento final do cineasta: uma graciosa menina de seis anos, branca e de classe média alta, fala algumas infantis bobagens cativantes, com Coutinho simulando um manjado truque de manipulação emocional típica de uma propaganda de banco.

quinta-feira, setembro 03, 2015

Periscópio, de Kiko Goifman ***1/2

Se em “FilmeFobia” (2008) o diretor Kiko Goifman enveredava para uma espécie de “mockumentary” (falso documentário) distorcido, em “Periscópio” (2012) ele continua optando por caminhos insólitos para o seu cinema. No seu cerne formal, esse filme mais recente parecer usar o teatro como a referência primeira: o espaço de encenação é reduzido a um pequeno apartamento, só há dois personagens em cena, a linguagem narrativa se afasta da estética naturalista. Com o desenrolar da trama, entretanto, tais conceitos vão ficando cada vez mais nebulosos. Se fosse para citar um gênero de identificação, é provável que o termo “fantástico” fosse o mais apropriado, pois o delírio e a fantasia aparecem com frequência. Por outro lado, também representa uma vertente artística que de forma recorrente aparece no cinema brasileiro: a alegoria política. Há um certo caráter intimista na abordagem de Goifman ao focar sua narrativa na relação entre um idoso doente (Jean-Claude Bernardet) e seu cuidador/enfermeiro (João Miguel). Esse relacionamento também se expande para outras conotações simbólicas. A relação entre os dois reflete diversos aspectos da surda luta de classes da sociedade ocidental (com um viés especial para a realidade brasileira) – ficam sempre presentes algumas dicotomias entre esses dois lados (religiosidade sincrética e racionalismo, explorador e explorado, juventude e velhice, ressentimento e hedonismo). Tais dilemas estéticos e formais ajudam a configurar uma obra hermética e complexa, mas que também traz em si uma forte liberdade criativa. A partir de um texto sofisticado e de recursos espartanos, Goifman constrói um espetáculo audiovisual desconcertante, baseado numa encenação que se equilibra entre o rigor estético e a um certo tom intuitivo, além de um requinte plástico que explora com inteligência elementos cênicos e trucagens “fuleiros”. O próprio confronto de atuações entre Bernardet e João Miguel é reflexo dessa contradição: enquanto o primeiro baseia sua interpretação em algo entre o aleatório e a “não-técnica” de atuação, João Miguel se entrega a uma possessão dramática.

quarta-feira, setembro 02, 2015

Expresso do amanhã, de Joon-ho Bong ****

Depois de filmes impactantes realizados em sua terra natal como “Memórias de um assassino” (2003), “O hospedeiro” (2006) e “Mother” (2009), havia até um certo receio que o sul-coreano Joon-ho Bong desse uma amansada na sua estreia no comando de uma produção norte-americana (ainda que o seu conterrâneo Chan-wook Park tenha mantido seu padrão de qualidade no brilhante “Segredo de sangue”, sua primeira produção em língua inglesa). O resultado final de “Expresso do amanhã” (2013), contudo, é uma resposta contundente para tais desconfianças. Ainda que tenha nomes estrelados no elenco e um orçamento classe A, o filme tem o traço autoral do cineasta em cada fotograma. O roteiro obedece a uma estrutura tradicional de ficção científica apocalíptica, além da metáfora de relação que se estabelece entre o descomunal trem em constante movimento ao redor do planeta e o nosso mundo contemporâneo, principalmente no que diz respeito ao conflito de classes sociais, ser bem óbvio. Não é na sutileza de seu discurso que o filme impressiona. Sua força reside numa encenação alucinada e no trabalho fenomenal da conjugação direção de arte, trucagens, fotografia e edição. Joon-ho constrói um pesadelo audiovisual memorável tanto pela sua plasticidade notável quanto pela sua atmosfera perturbadora. A herança artística tipicamente oriental de Jooh-ho Bong está presente em nuances fundamentais: as cenas de ação coreografadas de forma brilhante, a violência gráfica sem concessões, a direção de arte que enfatiza sujeira e degradação da maneira chocante, a caracterização de situações e personagens que oscila entre o icônico e o cartunesco (por vezes, o filme parece uma transposição fiel do ritmo narrativo de uma história em quadrinhos), os detalhes da trama que evidenciam uma visão pessimista sobre a sociedade humana (as barras de proteínas feitas de insetos nojentos, a assepsia hipócrita e preconceituosa da ala “rica” do trem). Os momentos finais de “Expresso do amanhã” até revelam uma certa queda para o convencionalismo temático e formal, mas pouco afetam a sensação de se ter assistido a uma experiência cinematográfica extrema em termos de criatividade e vigor.

terça-feira, setembro 01, 2015

Corrente do mal, de David Robert Mitchell ****

O que diferencia “Corrente do mal” (2014) da maioria esmagadora do que se faz atualmente em termos de cinema de horror não é uma questão de que o filme do diretor David Robert Mitchell tenha uma abordagem revolucionária ou opte por estruturas formais e temáticas convencionais. Nenhuma das duas opções seria garantia absoluta de que a produção fosse bem sucedida. Afinal, “A bruxa de Blair” (1999), grande referência estética para o gênero terror nos últimos anos, é muito mais um fenômeno de marketing do que propriamente um grande marco artístico. O que torna “Corrente do mal” uma das melhores obras de horror contemporâneas é a elegância e criatividade com que Mitchell conduz sua narrativa. Ele se vale de algumas referências visuais e conceituais de traço atemporal, que parecem configurar uma dimensão paralela onde a trama se desenvolve – a trilha sonora baseada em estruturas melódicas e harmônicas nervosas e repetitivas (nos moldes do que John Carpenter fez em alguns de seus melhores trabalhos), os personagens que gostam de ficar assistindo na televisão filmes baratos de ficção científica dos anos 50, a garota que lê clássicos literários num celular estilizado. Esses elementos, num primeiro momento, podem soar aleatórios, mas aos poucos começam a fazer sentido inseridos dentro do formalismo classudo concebido por Mitchell. A magnífica direção de fotografia extrai planos expressivos e de beleza plástica sombria, caracterizando uma atmosfera de um verdadeiro conto gótico. Mitchell brinca com alguns clichês inerentes ao gênero, mas todos eles vêm remodelados sob uma ironia perversa. Assim, a maldição que ronda o sexo entre adolescentes traz uma carga de moralismo sarcástico, acentuando ainda mais o caráter assustador do filme. Algumas soluções do roteiro evocam forçações de barra típicas de filmes de terror recente, principalmente quando os jovens personagens principais resolvem enfrentar a força maligna que persegue a protagonista Jay (Marka Monroe). Mas isso acaba sendo apenas mais um truque sacana de Mitchell, que serve para enfatizar o lado atávico do mal e da inevitabilidade do destino. O genial e perturbador final em aberto de “Corrente do mal” é o coroamento perfeito das escolhas artísticas ousadas de Mitchell, cineasta que se mostra mais decidido a elaborar uma obra memorável do que criar uma franquia oportunista qualquer.