sexta-feira, agosto 31, 2018

Beach rats, de Eliza Hittman ***


A crueza narrativa e cênica de “Beach rats” (2017) faz lembrar “Kids” (1995). Mesmo a parte temática dos filmes chegam a ser bem semelhantes, mostrando o lado obscuro da juventude norte-americana. Ou seja, a obra da diretora Eliza Hitman está bem distante de poder ser considerada uma grande novidade ou ruptura no cinema indie norte-americano. Ainda assim, não deixa de ser um trabalho inquietante. A encenação é de claro teor naturalista, mas embalada em uma bela concepção imagética, o que se mostra em sintonia no próprio jogo de contradições da trama (jovens fotogênicos envolvidos em situações sórdidas, hedonismo exacerbado que se choca com uma melancolia fatalista). O roteiro traz uma sutil carga simbolista nas desventuras do protagonista Frankie (Harris Dickinson) em meio a passeios noturnos com os amigos em Coney Island (em sequências, aliás, que constituem os grandes momentos da direção de fotografia), pequenos furtos e aventuras homossexuais com caras mais velhos. Nesse último aspecto, aliás, talvez se concentre os momentos dramáticos mais complexos e interessantes de “Beach rats”, em que tais episódios mais revelam um caráter ambíguo do que propriamente um erotismo escancarado  – Frankie tanto parece querer saciar seus desejos quanto ter um desejo atávico por uma figura paterna ausente.

quinta-feira, agosto 30, 2018

Perfeitos desconhecidos, de Álex de la Iglesia ***


Os filmes mais recentes do diretor espanhol Álex de la Iglesia estão bem distantes daquilo de melhor que ele já realizou em sua carreira. Ele se limita a fazer reciclagens divertidas de seu próprio estilo (“A grande noite”) ou lançar obras despersonalizadas e irrelevantes (“O bar”). “Perfeitos desconhecidos” (2017) se enquadra no primeiro caso. Há aquela sua habitual propensão para a comédia bizarra e grotesca e que acaba rendendo alguns dos melhores momentos do longa. As atuações caricaturais do elenco e algumas atmosferas mais delirantes também reforçam esse lado autoral, tirando a obra do lugar comum. Ainda assim, para quem já conhece o melhor de sua filmografia, fica aquela constante impressão de que Iglesia já fez bem melhor que isso. O que joga contra a produção é um roteiro marcado por algumas obviedades incômodas (uma premissa de um jantar entre amigos em que se acaba lavando muito roupa suja é um recurso deveras manjado), além de soluções narrativas convencionais em excesso que tiram muito daquele impacto que as ambíguas sínteses cômicas/dramáticas costumavam despertar no espectador naqueles trabalhos mais memoráveis de Iglesia. Entre acertos e equívocos. “Perfeitos desconhecidos” pode estar longe de ser considerado uma obra marcante no currículo do cineasta, mas acaba sendo uma boa diversão.

quarta-feira, agosto 29, 2018

Histórias que nosso cinema (não) contava, de Fernanda Pessoa ***1/2


Quando comecei a acompanhar filmes com mais afinco em minha adolescência, em meados dos anos 1980, percebia que quando alguém se referia a cinema nacional geralmente trazia uma carga negativa, colocando que a maioria dos filmes era de sacanagem ou coisa que o valha. Muito dessa impressão vinha do fato que aquilo que era considerado por público e grande parcela da crítica como “pornochanchada”, uma espécie de variação popular e gaiata do gênero explotation, foi bastante predominante em nossas telas na década de 70 e princípio dos 80, período esse em que o Brasil estava sob o cabresto da ditadura militar. O documentário “História que nosso cinema (não) contava” (2017) foca justamente nessa relação existencial entre essa linhagem de produções com o opressor ambiente sócio-político daquela época. Em sua abordagem estética, a diretora Fernanda Pessoa faz lembrar o modus operandi que Eryk Rocha havia adotado em “Cinema novo” (2016), dispensando uma voz narradora ou depoimentos contemporâneos em prol de um minucioso trabalho de montagem que combina trechos expressivos de alguns dos principais longas do gênero. Nessa formatação, o documentário de Pessoa tem um efeito sensorial desconcertante e uma notável lucidez temática. As cenas mostradas formam um impressionante híbrido de ironia entre a malícia e o amargo, erotismo barato exacerbado e contundente violência gráfica, em um conjunto audiovisual que expõe com crueza e cruel sarcasmo a atemporal alma de uma nação.

terça-feira, agosto 28, 2018

Beduíno, de Júlio Bressane ***1/2


Faz alguns anos que assisti a uma palestra de Júlio Bressane e me impressionou a sua lucidez intelectual e mesmo a sua percepção sobre a natureza intrigante da sua própria obra. E é extraordinário como tais aspectos conseguem se tornar visíveis em seus filmes. Só mesmo Bressane consegue fazer com a combinação de um roteiro baseado em discussões herméticas e intrincadas sobre a natureza da arte entre um casal e uma encenação de forte traço antinaturalista se transforme em uma experiência cinematográfica tão estimulante quanto em “Beduíno” (2016). Mostrando a mesma inquietação e criatividade que marcou de maneira constante a sua filmografia, o diretor constrói uma atmosfera delirante que tanto desconcerta quanto encanta, utilizando-se para isso de truques estéticos complexos em termos de concepção existencial-artística, mas que em sua execução também revelam uma simplicidade perturbadora. E a parceria com a atriz Alessandra Negrini revela cada vez mais uma assombrosa sintonia, o que se acaba configurando em uma interpretação que varia com sensibilidade e precisão dramática do sensual ao francamente bizarro.

segunda-feira, agosto 27, 2018

Benzinho, de Gustavo Pizzi ***1/2


Por mais que o espectador se sinta identificado com algum aspecto temático de “Benzinho” (2018), tentar enquadrar o filme como um retrato da sociedade brasileira contemporânea seria algo reducionista. O filme do diretor Gustavo Pizzi vai bem mais além do que isso. Ele está mais para um mosaico existencial-sensorial de sentimentos e valores atávicos do ordenamento ocidental capitalista. Por mais que a protagonista Irene (Karine Teles) e sua família sejam de classe média baixa, todos os seus dilemas e conflitos dizem respeito a corresponder aos anseios e desejos de um padrão de vida pequeno-burguês. Nessa contradição sócio-econômica, é claro que a única coisa que pode sair é uma perturbadora e constante percepção de algo que está em desiquilíbrio. A grande sacada estética-narrativa do filme é justamente absorver essa condição de desiquilíbrio para a sua própria formatação. Se em um primeiro momento a abordagem da obra é a de teor naturalista, em momentos pontuais e decisivos da trama fica evidente um tom delirante em sua atmosfera cênica, como se o aparente realismo se convertesse em um teatro de absurdos do cotidiano, principalmente quando uma série de situações-limites vão convergindo para uma possível quebra da psique de Irene. Outra boa solução criativa de Pizzi, entretanto, é afastar seu filme do previsível melodrama, dando à obra um caráter entre o irônico e o melancólico, em que os personagens se adaptam e acomodam com doce-amarga resignação às suas frustrações e perdas. Nessa muito peculiar concepção de saga familiar, a atuação de Karine Teles é decisiva, com uma impressionante atuação repleta de memoráveis nuances dramáticas.

sexta-feira, agosto 24, 2018

Other people, de Chris Kelly **1/2


Há elementos temáticos e de encenação em “Other people” (2016) que trazem algum frescor para a obra, principalmente em relação à forma mais libertária e madura com que aborda a questão da homossexualidade. Nesse sentido, não há como não destacar a figura do garoto adotado gay, irmão do amigo do protagonista David (Jesse Plemons), em sua caracterização exuberante e exagerada de trejeitos e coreografias, sem que isso caia necessariamente no caricatural. No mais, entretanto, essa produção dirigida por Chris Kelly pouco se diferencia daquela linhagem de melodramas norte-americanos indies que aparece aos borbotões. Há momentos comoventes, o elenco apresenta algumas boas atuações, a narrativa é agradável, mas o filme também está repleto daqueles truques estéticos e emocionais bem manjados. No saldo final, assim como é fácil de se ver, também é fácil de esquecer.

quinta-feira, agosto 23, 2018

Sign 'o' the times, de Prince ****


A relação de Prince com o cinema sempre foi conturbada. Se o drama ficcional “Purple rain” (1984) ajudou a consolidar o seu nome para o estrelato, houve também obras que foram verdadeiros fiascos comerciais e artísticos. Entre esses altos e baixos, “Sign ‘o’ the times” (1987) representa a grande contribuição desse genial músico para a arte cinematográfica. Se o álbum de mesmo nome era marcado por uma musicalidade descarnada em termos de arranjos e produção, beirando o minimalismo, seu equivalente fílmico investiu em uma opulência barroca e luxuriante. Com o próprio Prince na direção, a obra se alterna em abordagens diferentes, ainda que o predomínio seja a formatação de um filme-concerto. Há espaço para encenação estilizada e trechos videoclipeiros, mas sempre preservando uma noção de unidade conceitual, em que música e coreografia evidenciam um erotismo irônico e intenso que se contrapõe a uma atmosfera entre o sombrio e o sórdido, reflexo claro de uma época em que a AIDS avançava de forma impiedosa e as noções de desejo e culpa voltavam a se contrapor (ainda que na visão de Prince tal embate passe por um viés sarcástico). As canções de “Sign ‘o’ the times” se sucedem obedecendo a um rigoroso e notável senso cênico e narrativo, em que a concepção imagética da obra valoriza as nuances rítmicas e melódicas das performances de Prince e banda. Daria até para dizer que assistir ao filme é uma experiência interessante até para quem não gosta de Prince, mas confesso que acho difícil que algum ser humano com um mínimo de sensibilidade não goste pelo menos um pouco da musicalidade exuberante do cara.

quarta-feira, agosto 22, 2018

O animal cordial, de Gabriela Amaral Almeida ***


Ainda que a sua narrativa seja banhada por muito sangue e violência, “Um animal cordial” (2017) está mais para uma simbólica obra de teor sócio-político do que para um tradicional filme de horror e suspense. Cada personagem da trama parece representar aspectos diversos das classes sociais no Brasil, enquanto as situações do roteiro evocam um caráter alegórico. A produção dirigida por Gabriela Amaral Almeida não se limita, entretanto, a dar lição de sociologia. A cineasta consegue criar atmosferas de forte tensão psicológica, por vezes enveredando para o francamente delirante, bem como tem considerável senso cênico em sua concepção imagética. Nessa última característica, inclusive, apresenta pelo menos uma sequência antológica, aquela em que Inácio (Murilo Benício) e Sara (Luciana Paes) transam cobertos de sangue, de um grafismo audiovisual doentio e perturbador. Por vezes, a narrativa do longa se mostra um tanto irregular, principalmente quando a diretora abusa de uma estilização de linguagem que chega a beirar o publicitário. Além disso, a atuação de Murilo Benício como protagonista cai com frequência na canastrice histriônica. Ainda assim, “O animal cordial” não perde seu caráter instigante e envolvente. Afinal, num cenário nacional como o nosso na atualidade, em que um fascista de pendores militaristas tem a forte possibilidade de se tornar presidente da república com o apoio fundamental de uma classe média alienada e ressentida, um personagem como Inácio, um cidadão-psicopata “de bem”, acaba sendo bem representativo.

terça-feira, agosto 21, 2018

Irmãs, de Jason Moore ***


O que torna “Irmãs” (2015) um filme bem divertido não é alguma grande ousadia temática ou narrativa. Pelo contrário. A produção dirigida por Jason Moore abusa de truques cômicos corriqueiros e mesmo de um tom moralista, elementos esses fortemente presentes nas comédias norte-americanas nos últimos anos. O que dá um toque diferencial na história de duas irmãs quarentonas imaturas emocionalmente que resolvem dar uma festa de arromba para relembrar (ou exorcizar) a juventude está na boa sacada de Moore em concentrar a narrativa nas atuações histriônicas do trio de atrizes veteranas de Saturday Night Live Amy Poehler, Tina Fey e Maya Rudolph. Elas conseguem dar credibilidade tanto para as sequências mais escrotas/escatológicas quanto para aquelas com uma queda para o melodrama familiar. Assim, “Irmãs” consegue se afastar daquela assepsia típica de boa parte do que se faz no gênero na atualidade e oferecer alguns momentos hilários memoráveis.

segunda-feira, agosto 20, 2018

Eu não sou um homem fácil, de Éléonore Pourriat *1/2


No papel, “Eu não sou um homem fácil” (2018) até aparenta ser promissor. Uma comédia no gênero fantástico envolvendo realidades alternativas, a dicotomia machismo/femininos, papéis sexuais e dominação sócio-econômica. E a origem francesa também pode sugerir uma maior profundidade na abordagem de tais temáticas complexas. O resultado final da obra dirigida por Éléonore Pourriat, entretanto, joga por terras as boas expectativas. A formatação da narrativa é excessivamente convencional, a encenação se perde no caricatural e o roteiro abusa de soluções simplórias e óbvias.

sexta-feira, agosto 17, 2018

A festa, de Sally Potter **1/2


O tipo de proposta temática/narrativa de “A festa” (2017) não chega a ser exatamente uma novidade, mas de vez em quando costuma render alguma coisa de interessante: no ambiente fechado de uma pequena reunião social, revelações e outras situações-limites levam os personagens a exporem seus segredos sórdidos, preconceitos e hipocrisias, fazendo com que a linha entre a civilidade e a selvageria se mostre muito tênue. No caso do filme de Sally Potter, há também a preocupação em expor alguns dos principais dilemas e conflitos da sociedade contemporânea (feminismo, machismo, arrivismo sócio-econômico, alienação, famílias disfuncionais). Vale mencionar ainda que a diretora contou em sua produção com um elenco de nomes expressivos no panorama cinematográfico atual. O resultado final de sua obra, entretanto, é frustrante. Culpa de uma certa mão pesada de Potter na condução de sua narrativa. A encenação se mostra emperrada por uma verborragia excessiva, as atuações se perdem em caracterizações caricaturais e o roteiro fica indeciso entre evocar alguma densidade psicológica ou privilegiar um tom anedótico. Por vezes, “A festa” até insinua um tom mais perturbador na forma com as frustrações e desejos dos personagens são expostos em cena, mas no final das contas isso apenas serve para mostrar que o filme poderia ter sido bem melhor. Aliás, faz até imaginar o que um artista como Roman Polanski, por exemplo, mestre nesse tipo de trama, poderia ter extraído de tais elementos narrativos.

quinta-feira, agosto 16, 2018

Você nunca esteve realmente aqui, de Lynne Ramsay ****


Na premissa de seu roteiro, “Você nunca esteve realmente aqui” (2017) faz evocar algo como um cruzamento entre “Taxi driver” (1976) e “O profissional” (1994). Entre o pesado drama psicológico e o franco thriller de aventura, a diretora Lynne Ramsay faz o seu filme se localizar em um estranho universo híbrido disso tudo e também muito particular. Sua dissecação da ação cinematográfica nas sequências envolvendo brutalidade gráfica e atmosferas de tensão tem um caráter bastante elíptico – tiros, marteladas e outros atos violentos afins na maioria das vezes não são filmados de forma exatamente direta, havendo uma preferência mais pela sugestão e pela exposição das consequências de tais ações. Não se trata exatamente de poupar a suscetibilidade do espectador, pois há sangue e carne dilacerada em profusão na narrativa. Na verdade, essa maneira de registrar a violência é até mais perturbadora do que se a preferência fosse pela mais tradicional de filmar. Nessa abordagem imagética da cineasta há o sentido de complementar a psique atormentada do protagonista Joe (Joaquin Phoenix), em constante conflito entre traumas difusos do passado e um presente marcado por uma perseguição inclemente de uma organização política-criminosa-sexual. Na saga do personagem principal, há um tom quase fabular, em que no meio desse cenário de destruição, degradação e melancolia brota de maneira insólita momentos de teor poético desconcertante (o assassino que morre cantando uma melosa balada pop, o funeral aquático da mãe de Joe, o seu imaginário e luminoso suicídio). Nesse conto de vingança de brilhante e bizarra encenação se destacam ainda a atuação de pura possessão de Phoenix e a etérea trilha sonora de Jonny Greenwod.

quarta-feira, agosto 15, 2018

O Babadook, de Jennifer Kent ***


São recorrentes comentários na internet de que “O Babadook” (2014) e um dos filmes mais aterrorizantes dos últimos tempos. Se isso é fruto de alguma engenhosa campanha marqueteira ou apenas da opinião de alguns espectadores facilmente impressionáveis, o fato é que essa produção australiana dirigida por Jennifer Kent está bem longe de ser considerado um marco no gênero horror. É apenas uma obra que recicla vários clichês narrativos e temáticos dessa linhagem de filmes. É fato também, entretanto, que faz isso com razoável competência. O elenco apresenta algumas atuações convincentes (o garoto Noah Wiseman é especialmente interessante na sua caracterização alucinada de um pentelho irrequieto), as caracterizações imagéticas das trucagens têm um certo frescor (a figura da monstruosa criatura do título, por exemplo, é memorável) e Kent consegue extrair genuínas atmosferas de tensão dramática em algumas sequências. Ou seja, nada que vá mudar o rumo do mundo, mas que pelo menos garante uma sessão divertida no Netflix (aliás, coisa que não é tão frequente assim no canal).

terça-feira, agosto 14, 2018

Ela quer tudo, de Spike Lee ****


Em um primeiro momento, pode-se dizer que o longa-metragem de estreia do diretor norte-americano Spike Lee, “Ela quer tudo” (1986), funcionou como uma espécie de laboratório de ideias que foram desenvolvidas de forma mais amadurecida em produções posteriores do cineasta. É evidente também um certo charme amador em algumas passagens, muito mais fruto dos recursos de produção mais modestos do que propriamente por descuidos formais de Lee. Ainda assim, esse filme continua a ser um dos trabalhos mais fulgurantes e singulares do diretor, assim como um dos marcos fundamentais do cinema independente dos Estados Unidos nos anos 80 ao lado de obras como “Estranhos no paraíso” (1984) e “Gosto de sangue” (1984). Narrativa e estética são caracterizadas em uma original síntese de hiper-realismo e estilização, sendo que tal abordagem artística está em notável sintonia com um roteiro de expressivo teor libertário e humanista e que também tem como ponto forte um sutil e cortante senso de ironia. Já a encenação concebida por Lee a sua direção de atores apontam um rumo muito particular e ousado, no sentido de se mostrar distante de mofados clichês dramáticos de atmosfera e interpretação. Essa liberdade criativa recebe um complemente preciso nos belos temas harmônicos e melódicos da trilha sonora de Bill Lee. No cômputo geral, “Ela quer tudo” é um exemplar enfático daquela linhagem de obras em que a economia de recursos acaba por extrair o máximo de suas potencialidades artísticas.

segunda-feira, agosto 13, 2018

Dores de amores, de Raphael Vieira *1/2


Pelo menos em suas intenções artísticas, “Dores de amores” (2012) poderia sugerir algo de promissor. A narrativa procura uma síntese entre o realismo e atmosferas estilizadas/delirantes, o roteiro investe em um viés crítico e irônico sobre as relações amorosas/sexuais, o elenco traz alguns dos nomes mais expressivos do cinema brasileiro dos últimos anos. O problema do filme dirigido por Raphael Vieira é que a junção disso tudo não dá liga. A encenação é over é afetada, descambando com frequência para um incômodo tom de empostação teatral. E mesmo as situações de suposta ousadia da trama se perdem em soluções óbvias e simplórias. Além disso, alguns detalhes pictóricos como a inserção de cenários grafitados soam como meros adereços imagéticos, não tendo uma efetiva ligação com a narrativa. Ou seja, as altas pretensões estéticas/temáticas da produção ficaram bem longe de se concretizar diante de uma execução tão equivocada.

sexta-feira, agosto 10, 2018

Verónica, de Paco Plaza *1/2


Adolescente brinca com uma tábua de ouija, desperta alguns demônios e passa a ser atormentado por eles. Quanto filmes já foram realizados com essa premissa? Pois é, vários e que se até confundem na lembrança. O que essa produção espanhola se diferencia em relação às outras? Só a língua, e olhe lá. Mais uma das tantas produções irrelevantes que o Netflix gosta de ostentar em seu catálogo de recomendações.

quinta-feira, agosto 09, 2018

Nico, 1988, de Susanna Nicchiarelli ****


Filmes sobre apocalipse praticamente representam um subgênero na história do cinema. Na maioria das vezes, são obras no gênero fantástico que mostram as consequências para o mundo de um hipotético evento-cataclisma que destrói a ordem civilizada e expõe a sociedade a situações extremas de barbárie e sobrevivência. Mas o que ocorre quando um filme retrata o apocalipse como sentimento e não como um fato específico? Pois é justamente isso que retrata “Nico, 1988” (2017), produção biográfica que tem como protagonista a cultuada cantora que participou do primeiro disco do Velvet Underground em 1967e depois desenvolveu uma carreira solo marcada tanto pelo caráter artístico peculiar quanto pela obscuridade em termos comerciais e de reconhecimento de um grande público. Ao invés de fazer uma acadêmica e óbvia reconstituição resumida de toda a vida de sua personagem principal, a obra prefere focar nos últimos dois anos de carreira (e vida) da artista. Escolha muito acertada da diretora Susanna Nicchiarelli: ao delimitar esse compacto espaço temporal, a narrativa consegue evidenciar com sensibilidade e contundência a força abrasiva da música muito particular de Nico bem como os dilemas e contradições pessoais que marcavam a sua personalidade, além de revelar o traço do indissociável entre a vida pessoal e a arte da cantora. A estética sombria e o roteiro muito bem depurado formatam um conceito artístico e existencial de notável coerência e perspicácia, o que se pode perceber em nuances extraordinárias como a sequência de abertura, em que em sua infância Nico presencia de longe Berlin sendo devastada pelos aliados. Em sua rotina de viagens e shows pela Europa na parte final de sua carreira, percebe-se os estertores finais da Guerra Fria, e se estabelece com sutileza a ponte entre a arte de Nico e tais eventos históricos de grandes conflitos armados, em que canções e arranjos se mostram como a efetiva trilha sonora de um século marcado por banhos de sangue e os sentimentos de paranoia e mal-estar diante de um possível holocausto nuclear. O sóbrio formalismo adotado por Nicchiarelli para “Nico, 1988” se encaixa de maneira precisa dentro dessa conceituação artística, valorizando tanto um caráter realista da história da cantora em sua abordagem quanto enfatizando um tom de imaginário estilizado sobre a sua figura, principalmente quando retrata as conturbadas apresentações ao vivo de Nico, o que dá ao filme uma atraente atmosfera misteriosa, típica de uma época pré-internet em que informações sobre determinados artistas “malditos” traziam um certo tom nebuloso.

quarta-feira, agosto 08, 2018

Missão impossível: Efeito fallout, de Christopher McQuarrie **1/2


É um argumento razoável colocar que os momentos mais dramáticos/intimistas de “Missão impossível: Efeito fallout” (2018), aqueles envolvendo mais a tensão psicológica e mesmo sentimental entre os personagens, teriam um caráter secundário para o filme e serviriam apenas de pretexto para as vertiginosas sequências de ação da produção dirigida por Christopher McQuarrie. É verdade também, entretanto, é que tais momentos mais “calmos” também contribuem na construção da narrativa e dessa forma ajudam a expor a própria configuração artística/existencial da obra em questão. E nesse sentido, acabam por revelar as fraquezas desse novo capítulo das aventuras de Ethan Hunt (Tom Cruise). Se no extraordinário primeiro filme de 1996 concebido pelo mestre Brian De Palma se tinha um longa preciso e exato na coreografia de sua ação aliado a roteiro e atmosfera que remetiam a reconstrução do tom farsesco das antigas aventuras de espionagem, nesse filme mais recente a ênfase é em um derivativo caráter de gigantismo e exagero das inúmeras cenas de perseguições em terra e aéreas, embates físicos e tiroteios que têm como suporte uma trama repleta de sentimentalismo barato beirando o infantil e simplificações éticas e ideológicas duvidosas. Ver Luther (Ving Rhames) com cara de choro falando seguido da conturbada vida sentimental de Hunt, por exemplo, chega a ser constrangedor. E a simbologia de um protagonista algo truculento auxiliado por dois geeks tecnológicos a combater terroristas e “anarquistas” que desafiam a ordem sócio-econômica-política é perfeitamente coerente com o tempo que vivemos, mas incomoda pelo teor conformista e defensor do establishment. É claro que a maioria absoluta do que sai dos grandes estúdios no gênero nos últimos tempos também adota essa postura narrativa, mas pelo alguns deles fazem com mais sutileza, ironia ou mesmo alguma ousadia.

terça-feira, agosto 07, 2018

Anjos da noite, de Wilson Barros ***


Há filmes que são quase que indissociáveis da época em que foram realizados. A produção brasileira “Anjos da noite” (1987) é um desses casos. Nos anos 80, havia uma vertente no cinema nacional, principalmente oriunda de São Paulo, que trazia uma urgência em colocar em prática um conjunto estético-temático que se mostrasse em sintonia com um ideal artístico pós-moderno, necessidade essa fruto provável do período obscurantista dos anos de chumbo da ditadura militar. Se no Rio de Janeiro diretores e produtores enveredavam por obras “praieiras” de caráter festivo-hedonista, em São Paulo o foco estava numa ambientação noturna estilizada com tramas envolvendo figuras “outsiders” (artistas, pequenos marginais, prostitutas, michês, gangsteres) em narrativas que abarcavam tanto a encenação naturalista quanto atmosferas oníricas/delirantes típicas do cinema fantástico e dos musicais e tons metalinguísticos. O filme de Wilson Barros tem tudo isso, por vezes esbarrando em uma narrativa irregular e na ingenuidade suas pretensões, em outros momentos trazendo algum encanto em sua trama mosaico de vários personagens, como se fosse uma simpática versão nativa do clássico da estilização cinematográfica oitentista “O fundo do coração” (1982).

segunda-feira, agosto 06, 2018

Rei, de Niles Atallah ****


A relação conturbada entre o homem branco ocidental colonizador e povos nativos/colonizados representa uma temática recorrente no cinema, de clássicas obras-primas como “Aguirre, a cólera dos deuses” (1972) e “Apocalypse Now” (1979) até extraordinários filmes mais recentes do quilate de “Z, a cidade perdida” (2016) e “Zama” (2017). Nessa instigante tradição, inscreve-se também a produção chilena “Rei” (2017). A formatação concebida pelo diretor Niles Atallah faz lembrar o teor delirante do longa brasileiro “Ex-isto” (2010), também de temática semelhante, mas com uma narrativa ainda mais estilizada. Atallah insere alguns momentos de uma encenação realista. O efetivo foco artístico de “Rei”, entretanto, está no romper com o naturalismo, em que o olhar histórico sobre o episódio do aventureiro francês Antoine de Tounens (Rodrigo Lisboa) que tentou construir um reino próprio nas regiões da Araucaria e da Patagônia em meados do século XIX é perpassado por um viés mágico e subjetivo. Para isso, Atallah se vale de recursos estéticos e narrativos variados – utiliza bitolas antigas para filmar, encena com preceitos teatrais as sequências de julgamento do protagonista, abusa de trucagens artesanais de beleza pictórica desconcertante para enfatizar o caráter onírico de algumas cenas. Esse insólito barroquismo de “Rei” não se limita ao mero efeito experimental ou exótico, estando em perfeita sintonia existencial com o próprio caráter ambíguo do roteiro, que tanto evidencia um fascínio com o modus operandi alucinado e romântico de Tounens na busca de seus objetivos quanto um teor crítico sobre as ações exploradoras/opressoras em relação aos povos nativos da América do Sul.

sexta-feira, agosto 03, 2018

8 mulheres e meia, de Peter Greenaway ***1/2


Pode-se dizer que “8 mulheres e meia” (1998) é uma variação dos preceitos estéticos e temáticos que o diretor britânico Peter Greenaway tinha colocado em prática em outros de seus filmes com resultados mais satisfatórios. Ainda assim, uma obra menor de Greenaway é sempre bem mais interessante que a grande maioria dos filmes que estão em cartaz. Na produção em questão, há aquela combinação habitual do cineasta – barroquismo delirante, atmosferas carregadas de erotismo mórbido, caracterizações estilizadas de personagens e situações, roteiro repleto de simbolismos diversos. Por vezes os exageros formais e o cerebralismo que permeiam o longa, assim como o tom lúdico e intrincado do roteiro a versar sobre opressão machista/econômica, deixam a narrativa um tanto irregular e cansativa, mas em boa parte das sequências há aquele impacto imagético/sensorial que deixa o espectador tanto desconcertado quanto encantado com esse cinema muito peculiar de Greenaway.

quinta-feira, agosto 02, 2018

Custódia, de Xavier Legrand ***


Na sua construção formal-narrativa, “Custódia” (2017) parece uma variação dos preceitos artísticos de alguns dos principais filmes dos irmãos Dardenne. Há aquela sóbria abordagem estética a embalar uma trama de forte conteúdo intimista-social. Ainda que tenha esse aspecto derivativo, o filme do diretor francês Xavier Legrand consegue ter um considerável impacto sensorial para as plateias. O conjunto encenação, edição e fotografia configura uma forte atmosfera de tensão sufocante na história da conturbada relação entre um homem violento e perturbado e a ex-mulher e filhos. Há um tom quase documental por vezes na narrativa, em que até detalhes burocráticos e administrativos de um processo judicial de separação litigiosa, por exemplo, são expostos em suas minúcias justamente para caracterizar uma ambientação de opressão machista e econômica sobre aqueles mais fragilizados (mulheres, crianças, pobres) perante esse sistema sócio-econômico. Legrand não se vale de artifícios de fácil manipulação sentimental, como música melosa ou caracterizações caricatas – seu filme tem uma objetividade e secura que realçam com precisão e sensibilidade alguns tormentos existenciais típicos da sociedade contemporânea, além de um elenco cujas composições dramáticas à flor-da-pele se mostram em notável sintonia com tal proposta.

quarta-feira, agosto 01, 2018

Giselle, de Victor Di Mello ***


Expressivo exemplar do exploitation brasileiro, “Giselle” (1980) é uma obra que tem até alguns aspectos datados em termos narrativos, mas que mesmo assim consegue impressionar nos dias de hoje. Certas nuances temáticas e estéticas remetem muito ao cinema intimista de Walter Hugo Khouri, só que com uma preponderância ainda maior para o erótico e o grotesco. Sugerem ainda uma espécie de leitura sócio-política da época, principalmente no que diz respeito à repressão do regime militar e os conflitos ideológicos, além de uma visão irônica sobre os costumes da burguesia nativa. Por vezes, tais pretensões artísticas existenciais trazem um caráter perturbador para a obra, em outros momentos apenas resvalam no superficial e no oportunista. O que fica de memorável realmente nesse longa dirigido por Victor Di Mello é no acentuado fator de violência e sexualidade gráficas que inundam a tela em algumas sequências. Pode-se acusar o filme de várias coisas, até de um certo apelo preconceituoso que seria quase impensável no cinema contemporâneo, mas pelo menos não se pode dizer que caia em concepções imagéticas e narrativas assépticas. Por mais desagradável e vulgar que sejam algumas de suas cenas, “Giselle” é o tipo de obra que se instaura de forma insinuante no imaginário do espectador.