O francês Jean-Pierre Jeunet sempre foi um cineasta muito
superestimado. Em seus país natal, dirigiu alguns filmes que lhe deram
credibilidade cult entre a crítica e o público. Sua fórmula narrativa é simples
e por vezes até eficiente – truques estéticos simpáticos, um certo requinte
visual, ambientação esquisitinha e o tom agridoce dos roteiros lhe deram uma
certa aura autoral. Na coprodução franco-norte-americana “Uma viagem
extraordinária” (2013) boa parte desses artifícios foram limados e reduzidos,
bem provavelmente por exigência de executivos ávidos por uma acessibilidade
comercial que tornasse o filme mais viável comercialmente. Assim, o que se tem
é um trabalho derivativo e sem graça, provavelmente a pior coisa que Jeunet
lançou. É claro que em alguns momentos até dá para sentir alguns elementos
típicos do estilo do cineasta, principalmente na caracterização de algumas
situações e personagens, naquela síntese entre fofurice e esquisitice. Mas isso
acaba sendo muito pouco para salvar a coisa toda do lugar comum enfadonho que
predomina na narrativa. Clichês temáticos e formais são remexidos sem qualquer
inspiração ou vigor, resultando em um produto destinado ao esquecimento rápido.
Talvez fosse melhor Jeunet retornar a filmar em definitivo na França, pois em
terras estrangeiras se revelou um medíocre tarefeiro dos grandes estúdios.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quinta-feira, dezembro 31, 2015
quarta-feira, dezembro 30, 2015
Quando papai saiu em viagem de negócios, de Emir Kusturica ***1∕2
Talvez o aspecto mais fascinante no modus operandi do
diretor sérvio Emir Kusturica é a forma com que ele adequa gêneros e clichês
cinematográficos dentro de sua linguagem artística particular. Essa
característica fica bastante evidente em “Quando papai saiu em viagem de
negócios” (1985), uma de suas produções mais estimadas. Num primeiro momento, o
espectador pode até achar que está vendo algo convencional, numa trama que
mistura referências históricas, memorialismo infantil e comentário político.
Aos poucos, entretanto, Kusturica vai envenenando os lugares comuns com uma
encenação vibrante, em que a tensão dramática e a ironia sardônica convivem de
maneira fluida e natural. O academicismo formal em que esse tipo de obra
costuma se basear está lá, principalmente pela vinculação com determinados
fatos históricos importantes da Iugoslávia, mas o fato do protagonista ser uma
criança faz com que a abordagem estética do filme traga algo de mágico e mesmo
delirante na sua atmosfera. Essa oposição de linguagens (naturalista e
estilizada) não é gratuita de acordo com o contexto sócio-político em que se
desenvolve o roteiro – os absurdos do autoritarismo e da burocracia do governo
iugoslavo dos anos 40 por vezes beiram o surreal. Mantendo essa pegada autoral,
Kusturica elaborou ainda melhor esses preceitos formais e temáticos naquela que
é a sua grande obra-prima, “Underground” (1985).
terça-feira, dezembro 29, 2015
As férias do pequeno Nicolau, de Laurent Tirard *1∕2
Em “O pequeno Nicolau” (2010), o diretor francês Laurent
Tirard tinha encontrado um equilíbrio interessante entre um certo tom ingênuo
tipicamente infantil e um grau de ironia exato, fazendo com que o filme pudesse
ser apreciado tanto pelo público infanto-juvenil quanto pelo adulto. Já nessa
sequência “As férias do pequeno Nicolau” (2014) essa química não consegue se
concretizar – a direção é burocrática, a trama é banal e não consegue gerar
tensão e interesse para o espectador, a narrativa é trôpega e engessada. No
geral, tudo parece estar tão no piloto automático que a única sensação genuína
que pode induzir é o sono. Nem crianças e nem adultos pouco exigentes
provavelmente irão apreciar um conjunto criativo tão preguiçoso e sem vida.
segunda-feira, dezembro 28, 2015
Homens, mulheres e filhos, de Jason Reitman *1∕2
Dá para perceber na filmografia do diretor norte-americano
Jason Reitman um certo padrão temático constante, em que ele se pretende como
uma espécie de cronista moderno dos dilemas existenciais da sociedade ocidental
contemporânea. Seus filmes versam sobre relações humanas frustradas (“Amor sem
escalas”), gravidez na adolescência (“Juno”), imaturidade emocional (“Jovens
adultos”). Ocorre, entretanto, que tais obras acabam não justificando a
pretensão do cineasta, pois se formatam dentro de equações narrativas
convencionais e pouco imaginativas, além de visões emocionais superficiais e
por vezes beirando o moralismo fácil. Tal tratamento artístico volta a se
manifestar de forma expressiva em “Homens, mulheres e filhos” (2014), obra em
que Reitman se propõe realizar um inventário de registro misto entre o intimista
e o social sobre as relações familiares em tempos de internet. Por mais que as
questões levantadas pelo roteiro sejam relevantes, falta profundidade para a
visão de mundo expressa pelo filme. Reitman se contenta em abusar de truques
narrativos e clichês melodramáticos baratos, não sabendo aprofundar seus
questionamentos com alguma sagacidade ou contundência. As situações
apresentadas pelo roteiro são esquemáticas, além da caracterização dos
personagens caírem em caricaturas patéticas (o personagem de Jennifer Garner,
em especial, beira o ridículo).
quinta-feira, dezembro 24, 2015
Califórnia, de Marina Person **
Por um lado, é de se admirar a persistência da diretora
Marina Person em fazer de “Califórnia” (2015) uma obra de forte cunho autoral.
Dá para sentir em cada fotograma do filme elementos que parecem aludir ao
próprio imaginário pessoal da cineasta – trilha sonora repleta de pérolas do
rock e pop dos anos 70 e 80, conflitos e dilemas típicos das comédias
adolescentes de John Hughes, referências e citações da cultura pop. E as
ambições artísticas de Person para sua produção também são louváveis, ao
procurar oferecer a partir de uma trama de caráter intimista e memorialista uma
perspectiva sócio-política-cultural do Brasil da primeira metade da década de
80, retratando o ambiente dos anos finais da ditadura militar. De certa forma,
é como se a história do despertar da adolescente Estella (Clara Gallo) para os
dramas e complexidades da vida adulta tivessem uma relação de simbolismo com um
país que estava tentando sair das trevas do obscurantismo intelectual e
comportamental. O problema de “Califórnia” é que todas essas boas ideias e
intenções não conseguem se traduzir em uma narrativa envolvente. Na comparação
com outras obras recentes que tiveram a juventude como temática, falta o
lirismo brutal de “O cheiro da gente” (2014), a sensibilidade à flor-da-pele de
“Depois de maio” (2012) e mesmo a graciosidade natural de “Hoje eu quero voltar
sozinho” (2014). A encenação em “Califórnia” é engessada, por vezes beirando o
amador, com as caracterizações dos personagens caindo por vários momentos em
caricaturas constrangedoras, além do roteiro apelar para simplificações banais
e sem graça. Por mais que se tenha simpatia com as mencionadas referências
culturais que permeiam a trama, a impressão é que tais elementos não conseguem
entrar em sintonia com o universo das situações e personagens. Assim, fica
evidente, por exemplo, que o trabalho de direção de arte é por demais
artificioso e sem vida. O que salva “Califórnia” do desastre completo é que
existem algumas poucas sequências em que dá para vislumbrar o que poderia ter
sido o filme se Person tivesse acertado mão na direção – as cenas no quarto de
JM (Caio Horowicz) são pulsantes, dinâmicas e ousadas em seus movimentos,
edição e diálogos, é quase como se fosse um outro filme dentro de “Califórnia”.
Horowicz, aliás, destaca-se de forma disparada no elenco, pois tem uma presença
cênica forte. No mais, ainda que “Califórnia” seja uma obra frustrante em sua
execução, seus poucos e expressivos momentos positivos mostram que Person ainda
é um nome a se prestar atenção.
quarta-feira, dezembro 23, 2015
O clã, de Pablo Trapero **1∕2
A filmografia do cineasta argentino Pablo Trapero sempre foi
marcada por uma pegada autoral própria, em que o diretor procurava criar uma
atmosfera marcada por um realismo áspero. Seu formalismo não é caracterizado
por grandes voos de virtuosismo, com Trapero preferindo manter uma estética
austera para mostrar sintonia com roteiros de forte caráter humanista. Assim
foi em obras memoráveis como “A família rodante” (2003), “Nascido e criado”
(2006), “Leonera” (2008) e “Abutres” (2010). Ainda que venha sendo
expressivamente festejado por crítica e público, com direito inclusive a ser o
representante da Argentina para uma possível indicação ao Oscar de filme
estrangeiro, “O clã” (2015), o trabalho mais recente de Trapero, foge bastante
do estilo habitual do cineasta. Ao invés daquela mencionada sobriedade de
concepção, Trapero envereda por uma narrativa bem mais convencional,
ajustando-se a um amálgama de cinebiografia e policial que serve para embalar
uma premissa e subtexto de trama bastante interessantes – a dos fatos reais de
que a ditadura argentina que se estendeu entre parte dos anos 70 e 80 acabou
oferecendo treinamento e mesmo salvo conduto para que organizações criminosas
praticassem os seus delitos sob o disfarce de defesa dos valores cívicos e morais
(prática essa que também ocorreu no Brasil). Até que por vezes essa gestão de
clichês soa divertida e envolvente, mas a impressão geral é a de que Trapero
resolveu se tornar um Scorsese platino, fazendo com que “O clã” pareça uma
espécie de “Os bons companheiros” mal ajambrado, com direito inclusive a inúmeros
planos-sequência sem muito sentido e trilha sonora rock and roll anglo-saxã.
Ainda que competente em alguns quesitos técnicos e contando com uma ótima
atuação de Guillermo Francella no papel do protagonista Arquimedes Puccio,
falta uma fluência narrativa e uma abordagem temática menos superficial para
que a produção se mostre capaz de ser algo efetivamente memorável, o que acaba
sendo frustrante devido à mencionada questão sócio-política que permeia a trama
e que acaba sendo tangenciada de maneira amena, ficando longe, por exemplo, da
contundência e profundidade do brasileiro “Orestes” (2015) que traz assuntos
semelhantes em seu respectivo roteiro.
terça-feira, dezembro 22, 2015
Quando meus pais não estão em casa, de Anthony Chen ***
A proposta artística da produção de Singapura “Quando meus
pais não estão em casa” (2013) faz lembrar bastante a do filme brasileiro “Que
horas ela volta?” (2015): usando a estrutura narrativa tradicional do gênero
melodrama, a obra do diretor Anthony Chen pretende fazer uma espécie de
dissecação das relações humanas dentro de uma sociedade marcada preconceitos e
desigualdades sociais profundos. No trabalho em questão, não dá para dizer que
há grandes transcendências estéticas e mesmo em termos existenciais – os dilemas
da trama são aqueles básicos, com uma narrativa que avança de forma linear e
sem sobressaltos. O grande mérito do filme de Chen é a sobriedade de sua
abordagem emocional, não caindo em soluções sentimentais fáceis e
manipuladoras, valorizando uma atmosfera plena de silêncios reveladores e a expressividade
de gestos e olhares. Dessa forma, aliada também a uma discreta propensão para a
ironia, sua crítica a uma sociedade de consumo que se mostra cada vez mais insensível
e absurda em seus valores morais e contradições se caracteriza pela
contundência e universalidade.
segunda-feira, dezembro 21, 2015
Mia madre, de Nanni Moretti ****
Os filmes do diretor italiano sempre são marcados por um
traço autoral intransferível, trazendo uma espécie de sínteses das obsessões
pessoais e artísticas do cineasta. Dentro dessa concepção se misturam elementos
diversos como política, reminiscências pessoais, ensaios culturais, intimismo,
comentário social e metalinguagem, mas sempre passando por um rigoroso filtro
formal e temático que dá uma coerência existencial admirável para sua
filmografia, independente do gênero no qual Moretti se aventure. Isso tudo fica
bastante evidente em seu trabalho mais recente, “Mia madre” (2015), em que ele
volta ao gênero do melodrama, onde ele já tinha se dado muito bem em “O quarto
do filho” (2001). Na produção em questão, o diretor retoma seus temas que lhe
são mais caros sem que com isso passe a impressão de acomodação. Pelo contrário
– Moretti parece aprofundar seu particular estilo dentro de uma equação
narrativa cada vez mais desconcertante. É como se tivesse mais de um filme
dentro de “Mia madre”. Há aquele plano que mostra o cotidiano de filmagens de
uma obra de caráter social por parte da cineasta Margherita (Margherita Buy),
mostrando os dilemas artísticos da diretora. Por outro lado, tem uma trama
intimista que envolve o tocante drama pessoal da protagonista junto ao irmão Giovanni
(Moretti) que passam por todo o calvário de acompanhar os últimos dias da mãe
moribunda. Além disso, a própria situação dessa matriarca carrega um forte
caráter simbólico no sentido de representar a queda de um humanismo considerado
ultrapassado perante uma ordem capitalista cada vez mais obtusa. E há também as
sequências que mostram as confusões e constrangimentos causados por um
decadente e arrogante ator norte-americano (John Turturro) no set das referidas
filmagens e pelas ruas de Roma, em que as trapalhadas desse personagem parecem
remeter a um humor melancólico tipicamente italiano na linha das produções de
Toto e Mario Monicelli. Moretti junta todas essas narrativas paralelas e lhes
dá uma unidade intrínseca extraordinária, compondo um painel humanista que
navega de forma extraordinária entre a comicidade, o sentimental e a feroz
crítica sócio-política e econômica, tendo por resultado final um filme que
tanto pode ser considerado atemporal pela sua grandeza artística como a síntese
emblemática de uma época conturbada.
sexta-feira, dezembro 18, 2015
Star Wars: O despertar da força, de J.J. Abrams **
Se examinarmos a forma com que os filmes que compõem as duas
primeiras trilogias da franquia “Star Wars” se relacionam, dá para no mínimo
concordar com uma coisa: a de que cada um desses episódios mostrava uma evolução
na caracterização das situações e personagens mais emblemáticas da saga,
principalmente se formos considerar a ordem cronológica dos fatos apresentados
nas tramas. E por mais que George Lucas se aproveitasse de elementos
tradicionais de outras histórias (e mesmo lendas) para criar a mitologia da série,
ele fez isso com muito senso de narrativa cinematográfica, num sentido que
conseguiu criar uma ambientação muito particular, personagens cativantes e uma
encenação empolgante. Ou seja, estabeleceu um cânone artístico que se tornou
referência para fãs e também para uma grande legião de imitadores.
É certo que o parágrafo acima não traz novidade alguma no
que se sabe sobre “Star Wars”. Para esse escriba, entretanto, ele é necessário
para tentar contextualizar o que faz esse “Star Wars: O despertar da força” (2015)
ser tão frustrante. Ao invés de dar um prosseguimento natural para as trilogias
anteriores, no sentido de mostrar o amadurecimento dos antigos personagens e a
inserção de figuras novas com caracterização psicológica (e mesmo visual) própria,
o diretor J.J. Abrams adotou um caminho artístico preguiçoso e sem inspiração
ao fazer uma espécie de reciclagem picareta de “Uma nova esperança”. A
estrutura de trama e a relação entre os personagens são praticamente os mesmos
do filme de 1977, com variações mínimas. É claro que os defensores mais xiitas
vão dizer que seria uma homenagem ou algo que o valha, mas convenhamos que
repetir na cara dura ideias velhas e já melhor trabalhadas acaba sendo muito
pouco diante da expectativa que se criou nos últimos tempos por esse novo capítulo
da saga. Além disso, Abrams não consegue dar liga na sua encenação para que
pelo menos essa “refilmagem” parecesse minimamente vigorosa. Batalhas aéreas e
terrestres são burocráticas na conjugação coreografia e efeitos especiais, não
conseguindo extrair alguma efetiva tensão ou emoção para o espectador. Não há
nem mesmo uma desenvoltura na forma com que os personagens se colocam em cena –
a impressão constante é a de se estar vendo uma convenção de fãs da série
fazendo cosplay nos cenários clássicos da saga. E é meio melancólico ver
Harrison Ford, Carrie Fisher e Mark Hammill com presenças de cena tão artríticas.
Na real, isso até acaba sendo sintomático do que efetivamente representa “O
despertar da força”.
Talvez todo o fenômeno de devoção e marketing que assolou o
planeta em função de retomada de uma nova trilogia de “Star Wars”, diante do
resultado final de “O despertar da força”, acaba sendo também simbólico do que é
a relação atual entre religião e comércio que domina o mundo. Fãs/fiéis
defendem de forma indiscriminada seus ídolos/deuses enquanto produtores/pastores
contam sorridente a bilheteria/o dízimo arrecadados...
quarta-feira, dezembro 16, 2015
O massacre da serra elétrica 2, de Tobe Hooper ****
Hoje em dia quando se fala em continuações ou reboots da
franquia “O massacre da serra elétrica” logo se pensa em produções rasteiras e
assépticas destinadas mais a levantar um troco fácil para os seus produtores do
que acrescentar algo de relevante para a série. Sem querer parecer nostálgico,
mas houve uma época em que isso foi diferente e dessa forma mais um capítulo da
saga do maníaco Leatherface era algo realmente digno de nota para os
apreciadores do cinema fantástico. Nesse sentido, “O massacre da serra elétrica
2” (1986) é um exemplar enfático dessa concepção. O diretor Tobe Hooper já
tinha criado uma verdadeira escola dentro do gênero horror com o primeiro filme
lançado em 1974, em que combinava com muita criatividade violência gráfica
explicita, formalismo cru e atmosfera de sordidez e negativismo. Ao retomar a
história e personagens na continuação em questão, mudou sua orientação
artística de forma radical, mas preservando a coerência existencial da obra. Nesse
sentido, é um trabalho que se mostra em perfeita sintonia com o espírito do
melhor que foi feito no âmbito das produções de terror nos anos 80,
principalmente naquela síntese contundente de suspense, horror e humor (vide
obras como “Um lobisomem americano em Londres”, “Evil Dead” e “O soro do mal”).
Há um viés em “O massacre da serra elétrica” que o diferencia bastante desses
outros filmes – por trás de um roteiro repleto de delirantes situações
sangrentas, há um ácido e sutil subtexto político no retrato caricatural que
faz de típicas figuras que habitam o imaginário norte-americano, indo da típica
fúria puritana de um policial alucinado em busca de vingança (Denis Hooper,
evidentemente cheirado em cena) até nojentos e engraçados rednecks psicopatas
(com direito inclusive a um escroto veterano do Vietnã), ou seja, um retrato
nada gentil do sul republicano e reacionário dos Estados Unidos. Junto a uma
intrínseca junção de dinâmica narrativa bem azeitada, encenação alucinada e
ambientação fuleira, acaba se tendo uma legítima pérola cinematográfica
marginal que só melhora com o passar dos anos.
terça-feira, dezembro 15, 2015
Tudo que aprendemos juntos, de Sérgio Machado **
O diretor baiano Sérgio Machado tinha demonstrado vigor
narrativo em “Cidade Baixa” (2005) e “Quincas Berro D’Água” (2010), obras que
traziam uma mistura interessante de brasilidades, erotismo e questões sociais,
numa abordagem típica da sua geração de cineastas nordestinos que despontaram
nos últimos anos (com destaque óbvio para o pessoal de Pernambuco). Diante
desse histórico expressivo, ver a produção mais recente de Machado, “Tudo que
aprendemos juntos” (2014), acaba causando forte decepção. Em algumas sequências,
o diretor até preserva um certo frescor na encenação, mas acaba sendo muito
pouco dentro de um quadro geral que remete a uma enésima versão requentada do
clássico “Ao mestre com carinho” (1967). Clichês formais e temáticos são
maltratados de forma impiedosa e rasteira. Mesmo que o roteiro tangencie
dilemas prementes da sociedade brasileira contemporânea, o filtro estético e
textual do filme é tão quadrado e burocrático que faz com que essa pretensão
visão crítica se mostre superficial e reducionista.
segunda-feira, dezembro 14, 2015
No coração do mar, de Ron Howard **1/2
O diretor norte-americano tem uma filmografia marcadas por
alguns altos e vários baixos. Depois do empolgante “Rush – No limite da emoção”
(2013), era até natural que se houvesse uma expectativa positiva para o seu
próximo filme. “No coração do mar” (2015), entretanto, mostra que o cineasta
voltou ao habitual padrão de produções meia-boca. É claro que não se trata de
um desastre completo como “Anjos e demônios” (2009), mas também está muito
longe de fazer jus à promissora premissa de sua trama – mostrar os fatos reais
que inspiraram Herman Melville a escrever a obra-prima literária “Moby Dick”.
Howard é um diretor que sempre teve uma forte tendência para assepsia formal e
temática na concepção de seus filmes, e isso acaba sendo justamente o principal
equívoco artístico nesse seu trabalho mais recente. A caracterização visual da
obra dentro do conjunto fotografia, direção de arte e efeitos especiais é
exemplar desse traço característico do estilo de Howard filmar: tudo é tão
artificial e limpo que os cenários de uma cidadezinha litorânea e de um
baleeiro em pleno ano 1820 mais parecem de um insípido conto-de-fadas do que
uma vigorosa reconstituição imagética fiel e realista. Mais grave do que isso é
a forma com que as caças aos cetáceos e as batalhas entre a monstruosa baleia
branca e o barco liderado por Owen Chase (Chris Hemsworth) são retratadas –
ainda que mostrem razoável competência em sua coreografia, tais sequências são
elaboradas dentro de padrões gráficos feitos essencialmente para não chocar as
plateias, fazendo com que prepondere uma absurda falta de violência e sangue,
itens fundamentais para que se ressaltasse o impacto sensorial da brutalidade
do conflito entre o homem e a natureza. A verdade é que o viés adotado por
Howard é muito mais o do conto moralista edificante, vide diálogos repletos de
boas lições morais e os óbvios temas musicais melosos que pontuam a trilha
sonora. Dessa forma, o resultado final é até um filme que por vezes diverte,
mas que dificilmente consegue se concretizar como uma experiência
cinematográfica memorável em nosso imaginário.
quinta-feira, dezembro 10, 2015
O fim e os meios, de Murilo Salles ***
Enquanto “Ausência” (2014) é uma obra que se apresenta como
uma lúcida tese sociológica e falha como cinema, com “O fim e os meios” (2014)
dá para dizer que as coisas se operam de forma contrária. O roteiro do filme de
Murilo Salles se pretende como uma espécie de raio x sobre as estruturas de
poder no cenário político brasileiro contemporâneo, em que mesmo aspectos da
intimidade dos personagens refletem as relações de dominação econômica e
desajustes sociais no Brasil. Os desdobramentos da trama, entretanto, não
conseguem sustentar tais pretensões temáticas, resvalando por vezes em
simplificações e banalidades que não conseguem sintetizar de forma satisfatória
alguns conflitos complexos que são retratados no roteiro. Nesse sentido, não há
a agudeza existencial que deixava o espectador inquieto em “Nome próprio”
(2007), excelente produção anterior dirigida por Salles. Por outro lado, a
encenação concebida pelo cineasta em “O fim e os meios” é tão intensa e fluida
que mesmo as inconsistências da trama não impedem que a narrativa seja
envolvente em sua condução. Salles tem a manha para criar algumas perturbadoras
atmosferas de tensão dramática, sabendo valorizar também as expressões e
gestuais de seus autores com bastante sensibilidade. Por mais que o filme tenha
uma tendência para o caricatural, o misto de sexo, poder e picaretagem que
envolve os personagens vinculam o filme a um pastiche eficiente no gênero
policial permeado por uma atmosfera de sordidez perturbadora.
quarta-feira, dezembro 09, 2015
Ausência, de Chico Teixeira **1/2
'
A comparação entre “Ausência” (2014) e “Casa de Alice”
(2007), filme anterior de Chico Teixeira, mostra que o diretor tem uma certa
coerência artística. As duas produções têm tratamentos formais e temáticas
semelhante – roteiro e narrativa obedecem a uma lógica rigorosa em seus
desdobramentos, revelando uma visão de mundo aguçada na percepção das mazelas
existenciais da sociedade brasileira contemporânea. No filme mais recente, a
progressão de fatos da trama obedece a uma equação que beira a matemática, em
que a sucessão de situações deprimentes faz com que o protagonista Serginho
(Matheus Fagundes) entre numa espiral de desilusões. Teixeira faz transparecer
em sua obra um severo modus operandi em que cada cena traz uma carga
explicativa, e por vezes até simbólica, na construção de uma tese sobre
abandono emocional na menoridade. É de se convir que nesse sentido “Ausência”
seria uma expressiva peça sociológica a embasar teorias comportamentais. Todo
esse acuro filosófica/intelectual, entretanto, não consegue se traduzir num
resultado cinematográfico satisfatório. Falta uma vivacidade, uma
transcendência artística, dentro desse estilo opaco de Teixeira filmar. O
espectador até consegue entender os dilemas e dificuldades de Serginho, mas
também não consegue sentir alguma real empatia pelo personagem e mesmo por
aqueles que o cercam. Por mais que os diversos tipos de relacionamentos nos
quais Serginho se envolve servem para construir a base para a evolução das
ideias do filme, nenhuma dessas interações é esmiuçada de uma maneira mais profunda,
ficando num desenvolvimento muito superficial. Se a história se concentrasse
mais na ambiguidade do relacionamento entre Serginho e o “Professor” (Irandhir
Santos), por exemplo, teria um impacto muito maior. No mais, até dá para entender
que essa aridez estética e emocional de “Ausência” tenha uma função de evitar
que a obra caia no sentimentalismo fácil ao abordar a questão da adolescência à
beira-do-abismo, mas obras com temática semelhante como “Os incompreendidos” (1959)
e “Pixote” (1981) já mostraram que se pode ter uma abordagem artística mais
grandiosa e memorável sem perder a contundência de seu discurso.
terça-feira, dezembro 08, 2015
American Ultra - Armados e alucinados, de Nima Nourizadeh **
Existem filmes cujas premissas iniciais que deram origem aos
seus respectivos roteiros são bem mais interessantes que os seus consequentes
resultados finais. “American Ultra – Armados e alucinados” (2015) é um
expressivo exemplar de tal constatação. Ainda que a profusão de produções sobre
superespiões treinados a um limite sobre-humano seja grande (vide as franquias “007”
e “Bourne”, além de derivados), a ideia de um agente com amnésia (Jesse Eisenberg) que passa os
dias chapado de maconha e desenhando uns quadrinhos doidões e que acaba se
tornando alvo de eliminação por uma agência governamental acaba despertando uma
certa curiosidade para o espectador apreciador de uma boa aventura escapista. O
problema é que a abordagem do diretor Nima Nourizadeh acaba não fazendo jus às
expectativas promissoras. O ideal para um filme como esse é que a estrutura
narrativa se vinculasse a uma síntese entre a comicidade ácida e a ação
enlouquecida. No caso em questão, predomina uma dramaticidade excessiva,
fazendo parecer uma obra que se leva mais a sério do que deveria. A encenação
raramente encontra um tom adequado entre a comédia e a aventura, com os dilemas
da trama mais parecendo uma variação derivativa da linha “Bourne”. E se restava
ao elemento ação a chance de salvar “American Ultra” da decepção total, daí as
coisas naufragam de vez – o formalismo concebido por Nima Nourizadeh é
burocrático e sem inspiração. Estão lá as explosões, tiros, lutas e violência,
mas tudo num conjunto incapaz de criar empatia ou alguma cena memorável. Ou
seja, tudo bem distante da vigorosa releitura de clichês narrativos que
Nourizadeh tinha estabelecido em “Projeto X” (2012), seu trabalho anterior.
segunda-feira, dezembro 07, 2015
Remake, Remix, Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Pop Cinema, de Cem Kaya ***
Num primeiro momento, o documentário “Remake, Remix,
Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Por Cinema” (2014) parece se resumir
a uma boa coletânea de infames cenas de produções turcas dos anos 60 e 70 marcadas
pela tosquice, cara-de-pau, ingenuidade e humor involuntário. Nesse sentido,
talvez o principal mérito da obra é o seu trabalho de edição: por vezes, a ágil
sucessão de hilárias sequências repletas de “defeitos visuais”, diálogos constrangedores,
encenação amadorística e generosas doses de violência e escatologia levam o
espectador a gargalhadas convulsivas. Um olhar mais atento, entretanto, pode
identificar no filme dirigido por Cem Kaya um retrato crítico e por vezes até
profundo sobre a cultura turca no período focado, época essa marcada por uma
conjuntura bem específica e difícil de reproduzir nesses tempos atuais
dominados pela internet e outros avanços tecnológicos. Naqueles tempos, a falta
de grana constante para produções nacionais, um regime jurídico diferenciado de
direitos autorais (ou, na verdade, a ausência de tal regime) e um cenário
artístico afetado pela falta de informação e pelo obscurantismo religioso levam
a uma profusão de filmes de baixo orçamento e nível formal risível de todos os
gêneros (ficção científica, aventura, fantasia, terror, comédia, melodrama). No
meio de uma temática marcada pelo grotesco e pela galhofa, Kaya tem algumas
belas sacadas narrativas, principalmente por estabelecer conexões de tal filmografia
com elementos típicos de vertentes cultuadas por cinéfilos como o exploitation
e o trash, além de mostrar a relação da decadência comercial dessas produções
com mudanças importantes na Turquia, como a consolidação de um capitalismo mais
“profissional” e o avanço do fundamentalismo religioso. Assim, mais do que um
mero exercício de nostalgia cinematográfica, “Remake, Remix, Rip-Off” acaba
sendo uma interessante obra a dissecar de forma sutil os meandros das
transformações políticas e sociais da Turquia, mas que também faz um memorável
e contundente retrato da alma fuleira e sincera de um povo.
sexta-feira, dezembro 04, 2015
Pasolini, de Abel Ferrara ****
Quando se fala em cinebiografia nos dias de hoje, a primeira
coisa que vem à cabeça é um filme cuja estrutura narrativa se resume a uma
espécie de resumão linear da vida de seu protagonista, com alguma ênfase em
determinados fatos mais relevantes, mas que no final das contas acaba se
mostrando como uma obra superficial e que pouco consegue mostrar da essência de
seus “homenageados”. Ainda que possam receber algumas indicações a Oscar ou
páginas em cadernos culturais, o destino da maioria de tais produções é o
esquecimento pela sua irrelevância artística e mesmo histórica. Sorte que
existem exceções como esse “Pasolini” (2014) de Abel Ferrara, em que esse
último retrata a últimas 24 horas de vida do genial diretor italiano. Só que
nesse curto espaço de tempo focado, Ferrara consegue fazer um contundente inventário
emocional e artístico do seu protagonista. O último dia de Pier Paolo Pasolini
(Willem Dafoe) é marcado pelos tradicionais dilemas, conflitos e contradições
que sempre marcaram sua trajetória como pensador, poeta e cineasta – seu conflito
com os moralismos e mesquinharias do status quo econômico e social da sociedade
ocidental, suas preocupações em dar vazão às suas obsessões estéticas e temáticas,
o seu gosto por envolvimentos sexuais sórdidos. Mas ao mesmo que Ferrara
concebe uma abordagem realista nessa visão fatalista dos momentos derradeiros
de Pasolini, ele também envereda por um vórtice sensorial dentro da mente do
artista, fazendo com que o espectador possa ter um vislumbre das lembranças
difusas, anotações pessoais e mesmo projetos abortados pela sua precoce morte.
Nesse último quesito, Ferrara emula com sensibilidade o próprio estilo de
Pasolini na encenação que faz de um roteiro nunca filmado desse último, fazendo
lembrar aquele realismo mágico picaresco e enlouquecido que o italiano criou
para a sua “Trilogia da vida”. De certa forma, somente um eterno desajustado
como Ferrara poderia ter a manha de nos oferecer um significado bastante
aproximado do papel decisivo que Pasolini teve na cultura mundial.
quarta-feira, dezembro 02, 2015
A visita, de M. Night Shyamalan ***
O que mais incomodava em “Depois da terra” (2013), o
penúltimo longa-metragem do diretor M. Night Shyamalan, era o fato de
transparecer uma forte despersonalização por parte do cineasta. Independente de
se gostar ou não de Shyamalan, é inegável que em boa parte de sua filmografia
dá para sentir um certo traço autoral, a delineação de um estilo particular, o
que não ficava evidente na referida obra. Em “A visita” (2015), seu trabalho
mais recente, Shyamalan retoma sua veia própria de realizador diferenciado,
também retornando ao horror, gênero no qual se destacou em “O sexto sentido”
(1999) e “O fim dos tempos” (2008). Nessa nova incursão ao terror
cinematográfico, ele surpreende por enveredar por uma concepção narrativa
bastante manjada no cenário das produções de horror contemporâneas – a da
câmara subjetiva, onde quem registra a ação são os personagens. Diferente do
tom previsível e pueril da franquia “Atividade paranormal”, “A visita”
demonstra criatividade na utilização desse recurso estético. Na trama, a dupla
adolescente de protagonistas está realizando um documentário intimista sobre a
relação de sua mãe e os avós, fazendo com que mostrem domínio técnico em termos
de encenação e edição. Por vezes, inclusive, chegam a discutir sobre conceitos
importantes no gênero documental. A partir de tal arcabouço formal e temático,
e tendo como principal cenário uma rústica fazenda isolada no meio de interior
norte-americano, Shyamalan consegue extrair uma atmosfera de horror gótico,
fazendo com que o filme tenha algumas memoráveis sequencias bastante tensas e
assustadoras na sua combinação de temores atávicos, escatologia e violência.
Pena que o roteiro insira alguns momentos de melodrama familiar excessivo, o
que diminui de forma considerável o impacto e concisão da obra. Ainda assim, “A
visita” está bem acima da média do que tem sido feito no gênero nos últimos
anos e serve também para mostrar que Shyamalan está longe de ser considerado
carta fora do baralho.
terça-feira, dezembro 01, 2015
A ilha do milharal, de George Ovashvili ***
Apesar do exotismo de sua procedência, a produção da Geórgia
“A ilha do milharal” (2014) não chega a ser um bicho de sete cabeças em termos
formais e temáticos. É claro que para aqueles acostumados com os padrões
frenéticos e escapistas de boa parte do que se produz na Hollywood atual a
narrativa lenta e detalhista elaborada pelo diretor George Ovashvili pode para
esquisita e enfadonha. A trama do filme é simples e sem grandes variações em
seu desenvolvimentos e mesmo nas suas viradas, mas guarda em suas entrelinhas
alguns simbolismos que são trabalhados de forma eficiente e até mesmo por vezes
encantadora. Dentro da concepção artística desse trabalho Ovashvili, a
exposição do passar do tempo é essencial na construção dramática. O
passo-a-passo do levantamento de uma plantação de milho em uma pequena ilha
temporária de um rio interiorano, assim como a amostragem do cotidiano de sua
manutenção, é essencial para se dimensionar a carga dos conflitos e dilemas delineados
pelo roteiro. A valorização dos silêncios e ênfase nas expressões e gestuais
dos personagens também são essenciais para a atmosfera de melancolia e mesmo para
a sensação de tragédia iminente e inevitável que pairam de forma constante
sobre “A ilha do milharal”. O rigor dessa abordagem estética e emocional
encontra um complemento acertado na encenação, principalmente por uma direção
de fotografia que consegue captar com uma grandiosidade contida as nuances
visuais dos belos cenários naturais do filme. Se em grande parte da narrativa
predomina essa discrição nas escolhas artísticas de Ovashvili, as sequenciais
finais da tempestade que inunda a ilha e destrói grande parte da plantação de
milho representam uma catarse sensorial impactante capaz de fixar no imaginário
do espectador por um bom tempo.
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