segunda-feira, abril 30, 2018

Imagens do Estado Novo - 1937 a 1945, de Eduardo Escorel ***1/2


A parceria do diretor e montador Eduardo Escorel com João Moreira Salles nos documentários “Santiago” (2007) e “No intenso agora” (2016), em que Escorel foi responsável pela edição, parece ter deixado influências expressivas em “Imagens do Estado Novo – 1937 a 1945” (2016). Assim como nos filmes citados, há a presença decisiva em termos artísticos e existenciais de uma voz narradora que expressa um aparente e desconcertante distanciamento emocional. Nesse contexto, o conjunto voz e imagens afasta o filme do mero registro histórico-jornalístico (ainda que o filme traga um riquíssimo acervo de imagens e informações). Para Escorel, o que interessa é colocar em prática em contundente exercício dialético na contraposição entre o discurso e os fatos. Na narrativa, há um embate constante entre a grande profusão de filmagens de origem oficial, ou seja, proveniente de fontes institucionais do governo do período em questão, com oportunas filmagens de época oriundas de registros de famílias, propagandas comerciais, longas-metragens de ficção e matérias jornalísticas, tudo temperado pelos comentários sócio-políticos da mencionada voz narradora. Nessa síntese entre a ambientação pública do Estado Novo com a história da vida privada, prevalece uma certa visão ambígua sobre os reais significados da passagem de Getúlio Vargas como o líder totalitário de uma nação. Ao mesmo tempo que há uma pouca disfarçável repulsa por atos e medidas autoritárias e repressivas do governo, há também o reconhecimento por uma postura sócio-econômica até então inédita de construção de um projeto de nação e também pela atenção às condições de vida do trabalhador popular. A ambiguidade da abordagem também se faz necessária diante das contradições nas atitudes das autoridades, políticos e cidadãos na época do Estado Novo. Nesse sentido, o ponto da narrativa que melhor deixa claro esse direcionamento de Escorel é a postura de Vargas, militares e da própria sociedade brasileira diante da situação em que o país deveria escolher de que lado ficar na Segunda Guerra Mundial, dos aliados ou do Eixo – o que hoje soaria como uma opção inquestionável em termos morais na época se mostrou como um dilema político de resolução tortuosa e complexa. As opções narrativas e intelectuais de Escorel em “Imagens do Estado Novo” têm justamente como principal mérito a valorização das complexidades daquele contexto espaço-temporal sem apelar para maniqueísmos simplórios e equivocados, procurando ressaltar as singularidades de uma nação e seu povo, evidenciando que escolhas e rumos tomados à época reverberam até os dias de hoje, constatação essa reforçada pelo duríssimo epílogo do documentário.

sexta-feira, abril 27, 2018

Já não me sinto em casa nesse mundo, de Macon Blair **


O Netflix queria produzir um filme dos irmãos Coen. Os brothers não toparam e daí a Netflix resolveu pegar um diretor qualquer que procurasse imitar da forma mais barata possível o estilo dos Coen. Essa historinha fictícia (ou não) me veio à cabeça quando assisti a “Já não me sinto em casa nesse mundo” (2017). Por vezes, essa obra dirigida pelo também ator Macon Blair consegue ser até divertida, principalmente quando investe numa brutalidade gráfica que beira o cartunesco. No mais, entretanto, a sensação é de um amontoado de clichês narrativos típicos daquela síntese de comédia de erros e humor negro que obras-primas como “Gosto de sangue” (1984) e “Fargo” (1996) fizeram colar em nosso imaginário cinematográfico, mas que no filme de Blair é apenas jogado na tela sem critérios e inspiração.

quinta-feira, abril 26, 2018

Os Meyerowitz: Família não se escolhe, de Noah Baumbach **


Famílias disfuncionais parecem representar o grande tema favorito na filmografia do diretor Noah Baumbach. Seu melhor filme, “A lula e a baleia” (2005), inclusive, versa com contundência sobre o assunto. “Os Meyerowitz: Família não se escolhe” (2017) é mais uma produção do cineasta a pisar nesse território temático, só que bem distante do melhor que Baumbach já realizou. Tudo no longa parece cansado e mofado: os manjados dilemas do roteiro, as atuações maneiristas do elenco, a narrativa enfadonha, os truques formais “indies” requentados. Baumbach sacaneou legal o Netflix: entregou para a plataforma com exclusividade o pior filme de sua carreira, tirando uma onda ainda de grande obra autoral.

quarta-feira, abril 25, 2018

As duas faces de um crime, de Gregory Hoblit ***


Em um primeiro momento, a produção norte-americana “As duas faces de um crime” (1996) pode parecer apenas mais uma produção derivativa no gênero misto de policial e suspense. Afinal, estão lá a narrativa convencional, as manjadas viradas “dramáticas” de roteiro, a estética de caráter asséptico na concepção visual do filme. Por vezes, a direção de Gregory Hoblit até deixa o filme com uma dinâmica narrativa envolvente para o espectador. O que realmente dá uma dimensão mais transcendente para a obra é a atuação sanguínea de Edward Norton na pele de um assassino com transtorno de personalidade. A variação de gestuais e expressões de Norton impressiona pela desenvoltura e carisma. Foi a estreia do ator no cinema e poucas vezes ele conseguiu igualar tal desempenho nos filmes que participou posteriormente.

terça-feira, abril 24, 2018

Ex-machina: Instinto artificial, de Alex Garland ***


“2001: Uma odisseia no espaço” (1968) foi um marco para ficção-científica no cinema porque tirou definitivamente o gênero daquele universo puramente aventuresco e escapista e lhe deu uma abordagem artística de maior densidade dramática e até de forte profundidade psicológica. Em maior ou menor grau, a partir da obra-prima de Stanley Kubrick foram várias as obras que surgiram inspiradas nesse caráter mais sério e destinado a refletir sobre a humanidade perante o inexorável avanço tecnológico. “Ex-machina: Instinto artificial” (2014) é um claro exemplar dessa tendência. O longa dirigido por Alex Garland, nome bastante vinculado à ficção científica ao atuar como roteirista em outros trabalhos no gênero (“Sunshine – Alerta solar”, “Não me abandone jamais”, “Dredd”), apresenta uma trama que expõe com alguma sutileza os dilemas e contradições da relação entre humanos e autômatos dotados de inteligência artificial. É uma obra de narrativa sóbria, de certa criatividade na concepção de suas trucagens e com algumas sequências memoráveis em termos de tensão dramática, mas está bem distante da contundência estética e mesmo filosófica de outras produções que versaram sobre essa mesma temática, como “Blade Runner – O caçador de androides” (1982), “Inteligência artificial” (2001) e “Ela” (2013). O trabalho de Garland peca por um certo excesso na assepsia imagética e por convencionalismos na encenação em determinadas passagens da narrativa. Ainda assim, “Ex-machina” é um produto acima da média dentro do que vem sendo feito no gênero e reforça que Garland é um nome a se guardar quando se trata dessa escola cinematográfica.

segunda-feira, abril 23, 2018

O dia depois, de Hong Sang-soo ****


A ordenação cronológica das situações da trama em “O dia depois” (2017) não obedece a uma ordem linear. Nada, entretanto, que torne o entendimento das situações do roteiro confuso para o espectador. Na realidade, essa opção artística do diretor sul-coreano se vincula ao próprio sentido existencial que o cineasta quer dar para sua obra. As idas e vindas temporais evidenciam o caráter narcisista e algo patético do protagonista Kim Bongwan (Hae-hyo Kwon) diante os descaminhos de sua vida sentimental. A forma com que o personagem se relaciona com as mulheres que o rodeiam (esposa, amante, empregada), enredando-as em uma teia de mentiras e manipulações, revela com sutileza os próprios mecanismos de dominação machista na sociedade contemporânea. Esse drama intimista vai se formatando de maneira insólita dentro dos preceitos narrativos de uma comédia de erros. Hong Sang-soo se vale de seus habituais truques estéticos com precisão e sensibilidade impressionantes, trocando cortes óbvios da montagem por longos planos-sequência de leves zigue-zagues no movimento da câmera e valorizando uma encenação que privilegia intensos e desconcertantes diálogos. Estão lá também em “O dia depois” as recorrentes, filmografia do diretor, cenas de conversas à mesa, onde se tem a constatação que as efetivas viradas dramáticas da história e as contundentes verdades de seus personagens se explicitam com crueza e lirismo perturbadores.

sexta-feira, abril 20, 2018

Baseado em fatos reais, de Roman Polanski ***


Se em “A pele de Vênus” (2015) o diretor Roman Polanski investia em um memorável delírio estético e narrativo que por vezes beirava de maneira brilhante o metalinguístico, em “Baseado em fatos reais” (2017) ele volta ao terreno confortável de algumas escolhas artísticas que ele já havia trabalhado com mais vigor criativo em outros títulos de sua filmografia. Estão lá aquelas nebulosas atmosferas em que o real e o onírico se entrecruzam de maneira sutil e perversa, a tensão entre o psicológico e o metafísico que se estabelece em ambientes fechados, a atormentada personagem principal que se rende aos ambíguos apelos sensuais/opressivos de uma amante/antagonista, e até mesmo as irônicas referências ao universo literário contemporâneo. Essa constante impressão de uma certa reciclagem por parte do cineasta acaba recebendo o incômodo complemento de um roteiro que por vezes se mostra inócuo em algumas obviedades – até porque o mote principal do que era para ser o mistério central da trama, o fato de que a escritora Delphine (Emmanuelle Seigner) e sua assistente obsessiva Elle (Eva Green) são a mesma pessoa, é tão mal dissimulado em alguns truques baratos do filme que o que era para ser surpreendente acaba parecendo até anticlimático. Por mais que “Baseado em fatos reais” sugira uma certa preguiça de Polanski, entretanto, a elegância na condução da narrativa, a atraente ambientação que entrecruza o sensual e o assustador e as belas composições imagéticas de algumas cenas dão ao filme um forte caráter sedutor para o espectador.

quinta-feira, abril 19, 2018

Em pedaços, de Fatih Akin ***


A condição de filho de imigrantes sempre foi um fator existencial-artístico preponderante na filmografia do diretor alemão Fatih Akin. E não apenas em termos temáticos – em seus filmes mais expressivos, o conjunto de formalismo e roteiro apresentava um vigor renovado, como se abarcassem o melhor de mundos diferentes, tanto em um rigor estético típico do cinema europeu quanto no exotismo e vivacidade das influências étnicas inerentes à cultura oriental, permitindo-se ainda a claras referências e citações da cinematografia norte-americana. Ou seja, um cinema deliciosamente mestiço. Em pedaços (2017) é fruto dessa concepção autoral de Akin, mas dessa vez a narrativa se mostra mais presa dentro de uma formatação convencional e previsível. Se Soul Kitchen (2009) era uma recriação particular, frenética e divertida de clichês de diversas vertentes da comédia (pastelão, romântica, de erros), temperada por um sutil prisma sócio-político, essa produção mais recente envereda por uma insólita junção de preceitos narrativos de melodrama, thriller “de vingança” e filme de tribunal. A ligação entre os gêneros cinematográficos não é fluente, e por vezes a rigidez da encenação e os lugares comuns da trama induzem ao enfadonho. Entretanto, ainda que esteja distante de representar um ponto alto na carreira de Akin, Em pedaços tem os seus pontos positivos que mostram que o cineasta ainda é um nome acima da média. Isso fica evidente na sequência em que a protagonista Katja (Diane Kruger) tenta o suicídio aos cortar os pulsos na banheira, de uma mórbida e perturbadora beleza imagética. Além disso, a narrativa tem uma atmosfera de notável sobriedade emocional, impedindo que tudo caia no sentimentalismo barato. O expressivo conteúdo humanista do roteiro também cria uma forte empatia com a plateia, fazendo com que seja difícil ficar indiferente ao filme. De certa forma, a impressão geral é que Akin quis fazer a sua versão pessoal de Desejo de matar, ainda que a sua queda para um tradicionalismo narrativo mais acessível tenha impedido seu longa de atingir maiores voos criativos.

quarta-feira, abril 18, 2018

Severina, de Felipe Hirsch ***


Você já foi ao bairro Cidade Velha em Montevidéu? Na capital uruguaia, talvez seja o local mais importante em termos históricos, turísticos e culturais. Há um número considerável de pequenos museus e livrarias, praças, igrejas, restaurantes, além do Mercado do Porto. Por mais que haja uma presença de um comércio “moderno” (McDonalds, agências bancárias, lojas de souvenires), também é um lugar que dá uma certa impressão de ter parado no tempo, tanto pelo aspecto óbvio da grande maioria dos prédios ser de construções bem antigas como pelo fato que não há aquela preocupação em deixar um visual asséptico para turista ver. Pelo contrário – há bastante pichações, a pintura de algumas casas está envelhecida, por vezes o visual é de pura ruína. Não é à toa que o diretor brasileiro Felipe Hirsch escolheu a Cidade Velha como cenário primordial para a trama de “Severina” (2017). A impressão do bairro como uma localidade fora do tempo e do espaço casa muito bem com a atmosfera entre o realismo melancólico e o delirante que impregna toda a narrativa da obra. Em certos momentos, o roteiro até insere alguns elementos contemporâneos (inclusive, com a menção do golpe jurídico-parlamentar no Brasil), mas o que efetivamente prevalece é a sensação de uma história inserida em um universo paralelo, típica da escola do realismo fantástico tão cara às manifestações artísticas da América Latina. Se tal recurso artístico pode parecer manjado, é verdade também que Hirsch usa tradicionais recursos estéticos e temáticos com sobriedade e precisão. A história do livreiro que se apaixona por uma bela mulher viciada em literatura e em roubar livros vai bem além do mero sentimentalismo romântico, enveredando mais para um lado de perversa ironia e mesmo de morbidez perturbadora. As filmagens preferenciais nos sombrios ambientes fechados de livrarias ou em cenários externos em horas noturnas ou crepusculares acentuam mais a sensação do espectador estar dentro de um tardio e fascinante conto gótico.

terça-feira, abril 17, 2018

Antes que tudo desapareça, de Kiyoshi Kurosawa ***1/2


Os alienígenas em missão de reconhecimento de “Antes que tudo desapareça” (2017) têm um poder extraterreno bastante peculiar: para que o aprendizado sobre os costumes de uma raça a ser dominada seja completo eles podem extrair conceitos das mentes dos indivíduos. Esse detalhe da trama é simbólico da própria concepção artística do filme do diretor japonês Kiyoshi Kurosawa. Há no filme alguns dos principais elementos narrativos e temáticos inerentes às produções de ficção-científica contemporâneas. Tais aspectos, entretanto, manifestam-se com sutileza e de maneira econômica (ainda que sempre impactante). Estão lá os discretos efeitos especiais, a encenação que remete ao thriller e à aventura (com direito a uma memorável sequência que homenageia o clássico “Intriga internacional” de Alfred Hitchcock), o roteiro que evoca o embate entre o militarismo da humanidade e os conhecimentos misteriosos de uma raça alienígena. Por outro lado, todo esse lado tradicional do gênero cinematográfico em questão é submetido a um conceito existencial mais obscuro e poético. A interação entre os personagens, as cenas que se desenrolam em um ritmo que beira o contemplativo e o diálogos repletos de nuances filosóficas e humanistas caracterizam uma obra também reflexiva e de forte densidade dramática-psicológica, ainda que permeada quase sempre por uma atmosfera de estranha leveza. A ligação que se se dá entre uma estrutura narrativa de filme de ação e ambientação intimista é fluida e natural, reforçando a impressão de que Kurosawa é um dos nomes mais originais dentro do panorama do cinema fantástico contemporâneo.

segunda-feira, abril 16, 2018

A quadrilha, de John Flynn ****


O personagem literário Parker, criado pelo escritor Richard Stark e protagonista de vários livros do autor, apareceu em algumas marcantes produções cinematográficas. A mais conhecida e prestigiada foi no clássico “À queima-roupa” (1967), de John Boorman. A caracterização mais complexa e humanizada do personagem, entretanto, encontra-se em “A quadrilha” (1973). Pode parecer um contrassenso isso, afinal a interpretação de Robert Duvall no papel principal é quase minimalista em termos de diálogos, expressões e gestual. Ocorre que essa atuação se afasta dos estereótipos do tradicional anti-heróis de produções policiais, e mais enfatiza uma brutalidade inerente a uma condição existencial dessa figura. O pragmatismo inabalável, o rígido senso de honra de bandido e as atitudes violentas representam um modo de agir que é único conhecido pelo protagonista, e não uma condição para se mostrar cool diante das situações extremas de perigo. Nesse sentido, a própria compleição física em cena de Duvall foge do habitual para esse tipo de personagem. Esse dado sobre a figura de Parker em si (na verdade, no filme seu nome é Macklin) revela muito da própria concepção conceitual que o diretor John Flynn coloca em prática no filme – a narrativa é descarnada, reduzida a uma essência de encenação e formalismos marcada pela crueza e precisão, e que aliada a uma atmosfera amoral e desolada configurou um traço artístico fundamental no melhor que o cinema policial setentista produziu.

sexta-feira, abril 13, 2018

The silenced, de Lee Hae-Young *


Ok, o cinema sul-coreano realmente tem apresentado algumas das obras mais interessantes nos últimos anos, sendo que no gênero fantástico vieram do país asiático em questão algumas produções antológicas. “The silenced” (2015), entretanto, é prova concreta que mesmo de lá vem também filmes ruins e derivativos. Imagine uma boa parte dos clichês narrativos e temáticos associados ao horror asiático e é provável que estará nesse longa dirigido por Lee Hae-Young. A encenação inexpressiva e a concepção visual irritantemente clean acentuam ainda mais a frustração do espectador.

quinta-feira, abril 12, 2018

O bar, de Álex de la Iglesia **


O grande barato no cinema do espanhol Álex de la Iglesia sempre foi a sua síntese muito particular entre tensão dramática, brutalidade gráfica e um senso de humor perverso, por vezes quase beirando o escroto. Essa particular concepção artística rendeu algumas obras memoráveis, mas parece que começa a apresentar um certo desgaste criativo. Essa é a impressão que se tem ao assistir a “O bar” (2017). O início do filme é promissor, com os habituais elementos narrativos característicos na filmografia do cineasta se pondo em cena de maneira bastante contundente. Aos poucos, entretanto, a narrativa vai ficando cada vez mais convencional e frouxa, aliada a um roteiro que se limita a revolver de maneira mecânica clichês temáticos típicos do gênero ficção-científica apocalíptica. Mesmo aquela ironia sardônica que o espectador está acostumado de outras produções dirigidas por de la Iglesia vai se tornando rarefeita, quase inexistente. Em um contexto geral, é como se a indelével marca autoral do cineasta houvesse sumido!

quarta-feira, abril 11, 2018

Um lugar silencioso, de John Krasinski ***


Na trama de “Um lugar silencioso” (2018), há alguns motes que são recorrentes no cinema fantástico contemporâneo: uma ambientação pós-apocalíptica, monstros sanguinários estilo “Alien”, a reverência ao conceito da unidade familiar como bem maior a ser defendido. O diretor e ator John Krasinski se permite a alguns truques narrativos típicos da filmografia de M. Night Shyamalan. Ainda que em tal formatação se tenha essa impressão de uma colcha-de-retalhos de influências e referências, é verdade também que algumas escolhas formais e temáticas de Krasinski apresentam uma interessante síntese de inquietações artísticas e capacidade de envolver as plateias em termos de tensão dramática e empatia com os personagens. O fato de que na trama exista a necessidade de um silêncio constante por parte da família protagonista para não atrair a atenção de tenebrosas criaturas cegas, famintas e praticamente invencíveis em sua força e voracidade faz com que a narrativa seja quase que puramente visual, prescindindo na maior parte do roteiro de diálogos. A encenação concebida por Krasinski tem uma precisão e clareza admiráveis, e aliada a fotografia de talhe clássico, a edição de ritmo fluido e aos efeitos especiais de caracterização imagética que fogem do derivativo, acabam configurando uma narrativa bem equilibrada entre a sobriedade psicológica, o suspense perturbador e violência gráfica assustadora.

terça-feira, abril 10, 2018

Meu rei, de Maïwenn ***


O olhar feminino da diretora Maïwenn domina a narrativa de “Meu rei” (2015) e é quem dá o seu efetivo e contundente sentido artístico-existencial. Dentro da relação disfuncional que se estabelece entre o casal Tony (Emmanuelle Bercot) e Georgio (Vincent Cassel), marcada pelo comportamento opressor e abusivo por parte do segundo, a perspectiva que sempre fica evidente para o espectador é a da protagonista. A violência física, moral e psicológica a que fica submetida não se vincula a uma explicação para o comportamento do companheiro. Sendo um desvio de teor psiquiátrico ou simplesmente uma questão de caráter, o que interessa para o filme é explicitar o processo de desagregação de Tony sob o jugo da dominação patriarcal/machista de Georgio e também o doloroso percurso para que saia dessa relação doentia. Esse viés subjetivista da narrativa é acertado no sentido de que acentua a tensão sufocante que representa o cotidiano da personagem e sua busca por libertação pessoal, ao mesmo tempo que caracteriza com precisa sutileza um lado perversamente perturbador no relacionamento entre os dois: se há algo que beira a psicose brutalizante no comportamento de Georgio, também há um lado sedutor no grande carisma que ele exala em alguns momentos da trama. Essa confusão de sentimentos é atordoante para que assiste ao filme e, de certa forma, é como jogasse o espectador para dentro da própria mente de Tony. Esse forte grau de empatia de “Meu rei” também tem como responsáveis as atuações vigorosas de Bercot e Cassel.

segunda-feira, abril 09, 2018

A maldição da floresta, de Corin Hardy ***


A premissa principal da trama de “A maldição da floresta” (2015) não chega a ser propriamente uma novidade: família composta por um casal e seu bebê vive isolada em uma cabana no meio de uma sombria floresta e é assolada por criaturas maléficas do local. Mesmo com elementos temáticos tão surrados, o diretor Corin Hardy consegue surpreender pelo vigor de sua encenação e por uma construção imagética e de atmosfera que causam algum impacto sensorial para o espectador. A caracterização visual dos monstrinhos tem um forte apelo assustador e paira sobre a narrativa um teor fatalista bem convincente. Ou seja, no conjunto geral bem distante de ser algo clássico, mas divertido e envolvente como espetáculo de horror.

sexta-feira, abril 06, 2018

Aliados, de Robert Zemeckis ***


Um drama romântico de 2º Guerra Mundial envolvendo espionagem e traições, com parte das ações ocorrendo em cenários exóticos, a essa altura do campeonato, pode sugerir algo de mofado e rotineiro, fazendo pensar em mais uma variação do clássico “Casablanca” (1942). O terço inicial de “Aliados” (2016) se desenvolve justamente na célebre cidade marroquina título do filme que celebrizou o par romântico de Humphey Bogart e Ingrid Bergman. É claro que a produção dirigida por Robert Zemeckis está bem longe de ter a elevada classe artística daquela de Michael Curtiz, mas ainda assim consegue apresentar algo de envolvente para o espectador, mesmo que se enquadre em todos os clichês do gênero. Atmosfera e direção de arte remetem a uma estilização de considerável encanto imagético, enquanto a encenação prima pela sobriedade, o que faz com que a narrativa não caia em excessos convencionais. E se Brad Pitt e Marion Cotillard não apresentam o mesmo carisma cênico de Bogart e Bergman, por outro lado suas caracterizações icônicas de precisas nuances psicológicas são convincentes e, por vezes, até comoventes diante o deslizar melancólico e trágico da trama.

quinta-feira, abril 05, 2018

I am Chris Farley, de Brent Hodge e Derik Murray **


O comediante norte-americano Chris Farley teve uma carreira fulminante – sua morte precoce por overdose deixou a forte impressão de um talento que poderia ter ido bem mais longe. Aliás, vale lembrar que a sensacional performance de Jack Black em “Trovão tropical” (2008) é fortemente inspirada na vida e arte de Farley. Vendo o documentário biográfico “I am Chris Farley” (2015), dá para pensar que o ator e comediante foi uma espécie de John Belushi que não encontrou o seu John Landis. Sua trajetória no Saturday Night Live foi marcada por números inesquecíveis, que evidenciavam características muito peculiares em seu humor bufão de estranhas nuances. Essa sua capacidade para a comédia alucinada, entretanto, não foi aproveitada em todas as suas possibilidades criativas nos filmes que Farley participou. O mérito da produção dirigida por Brent Hodge e Derik Murray está no resgaste desse período de ouro de Farley na televisão norte-americana, época essa em que o artista deu algumas das mostras mais contundentes do seu talento e que provavelmente é desconhecida da maioria do público fora dos Estados Unidos. Por outro lado, o tom excessivamente jornalístico do filme torna a narrativa por vezes preguiçosa e enfadonha, estando bem distante do espírito anárquico da arte de seu protagonista. No final das contas, o documentário vale muito mais pelo interesse histórico e cultural do que propriamente por seus méritos formais.

quarta-feira, abril 04, 2018

Twin Peaks: O retorno, de David Lynch ****


Na maioria dos episódios de “Twin Peaks: O retorno” (2017), a conclusão se dá em um bar de meio de estrada, onde alguma banda, cantor ou cantora toca algum número de rock ou folk, sempre sobre um contexto de forte estilização visual e de atmosfera, com uma plateia cujo comportamento oscila entre a dança, o olhar atento, a bebedeira, brigas e flertes. Em termos de imaginário coletivo cultural, nada mais norte-americano. Em boa parte da filmografia do diretor David Lynch prevaleceu justamente essa recriação particular e surreal dos desejos, obsessões e perversões das mentes de seus conterrâneos (e, por tabela, do homem ocidental moderno). Esse novo capítulo da saga existencial-metafísica do agente Dale Cooper (Kyle MacLachlan) para desvendar os segredos e mistérios que envolvem a morte de Laura Palmer (Sheryl Lee) radicaliza esses preceitos artísticos de Lynch, indo ainda mais longe nas rupturas lógicas e narrativas que o cineasta tinha evidenciado em “A estrada perdida” (1997), “Cidade dos sonhos” (2001) e “Império dos sonhos” (2006). Em “Twin Peaks”, a fratura dos planos dimensionais da realidade e do fantástico fica exposta de vez e joga o espectador em um vórtice sensorial em que o ridículo e o absurdo ganham uma bizarra coerência, ainda que permaneçam sempre desconcertantes. Nessa abordagem, diversos gêneros se fundem como se sempre tivessem sido uma coisa só – melodrama familiar, ficção científica, horror, comédia pastelão e policial com toques noir – fazendo com que Lynch brinque com diversos recursos narrativos e visuais de maneira despudorada e genial, indo de efeitos especiais típicos do cinema mudo até trucagens baratas de terror B. As sensações para essa montanha russa estética são variadas, com escalas que vão do cômico ao francamente assustador. Lendas, fábulas, mentiras, idealizações, sonhos e até alguns fatos reais que fascinaram gerações e mais gerações nas últimas décadas são reprocessadas dentro de um conceito autoral perturbador. O mundo adquire um sentido inesperado e para a história que é contada, no final das contas, torna-se até dispensável uma conclusão. Lynch não sente necessidade em amarrar todas as pontas, na realidade tudo permanece ainda mais confuso e fascinante do que era no início. Tendo ou não mais uma temporada, “Twin Peaks” sempre permanecerá como um maravilhoso e insondável livro em aberto.

terça-feira, abril 03, 2018

Jogador nº 1, de Steven Spielberg ****


O programador e visionário James Halliday (Mark Rylance), criador do fictício misto de vídeo-game e existência virtual OASIS, principal cenário de “Jogador nº 1” (2018), é um fissurado por cultura pop, com a trama do filme dando a entender que por uma queda especial para os anos 80 (praticamente todas as canções da trilha sonora, por exemplo, são de sucessos dessa época). Dentro dessa dieta cultural, é bem provável que ele seja admirador de alguns dos principais filmes oitentistas de Steven Spielberg. Dessa maneira, daria até para dizer que é quase óbvia a escolha de Spielberg como diretor de “Jogador nº 1”. Ocorre, entretanto, que a produção em questão não se trata de mera obra nostálgica e recicladora de referências e citações. É claro que o espectador vai se ligar em vários detalhes nesse sentido, mas o filme tem um direcionamento existencial-artístico mais ambíguo. Afinal, o futuro distópico onde a trama se situa sugere que essa visão saudosa do passado também traz dentro de si um forte grau de alienação em relação ao próprio presente. A narrativa consegue estabelecer uma relação fluente e algo perturbadora entre os seus planos de realidade – o físico e o virtual – e acentua com sutileza alguns aspectos de contestação sócio-política do subtexto do roteiro, principalmente no que diz respeito a aspectos de distorção de um capitalismo selvagem praticado por grandes corporações e na forma com que corações e mentes são manipulados nesse processo. É claro que tudo isso é filtrado por um verniz típico de divertida aventura juvenil, coisa na qual Spielberg é mestre. Aliás, a conjunção entre encenação e efeitos visuais é extraordinária e marca um passo além em relação ao que o próprio Spielberg já havia feito em “As aventuras de Tintim – O segredo do Licorne” (2011). Para aqueles que andavam desiludidos com os acomodados e insossos dramas históricos recentes dirigidos pelo cineasta norte-americano, “Jogador nº 1” ajuda a lembra que quando Spielberg e ficção científica se juntam é sempre bom prestar atenção.

segunda-feira, abril 02, 2018

Zama, de Lucrecia Martel ****


Pode-se dizer em um primeiro momento, e mesmo em um olhar mais apressado, que “Zama” (2017) representa mais uma vez o olhar típico do homem branco colonizador diante de uma terra dita estranha e selvagem. Afinal, esse é justamente o perfil do protagonista-título (Daniel Giménez Cacho). Ao mesmo tempo, entretanto, não dá para dizer que a diretora Lucrecia Martel se limita a uma caracterização simplória desse homem que é o opressor e daqueles que seriam os colonizados e mesmo também daqueles que estariam nos estratos mais baixos da sociedade colonial da América Latina do século XVIII. Na verdade, é como se Martel expusesse em sua obra um inclemente e irônico olhar artístico-existencial sobre a formação sócio-política-cultural de um povo que levou a essa disfuncional sociedade contemporânea de terceiro mundo que vivemos, ainda que perpassada pela perspectiva pessoal de Zama. Nesse conceito, a própria aparente “realidade” se fratura em planos narrativos distintos – se por um lado a abordagem estética obedece a um rigoroso caráter realista, vide uma encenação naturalista e uma direção de arte marcada por uma reconstituição de época “suja”, em outros momentos a narrativa ganha contornos entre o delirante e o metafísico. Dentro dessa intrincada concepção formal-temática, Martel articula uma obra fascinante que sintetiza com maestria beleza imagética desconcertante, sensualidade sombria, perturbadora violência gráfica e sensorial, rarefeita narrativa de aventura e cenários naturais que parecem pertencer a um universo paralelo.