quinta-feira, dezembro 31, 2015

Uma viagem extraordinária, de Jean-Pierre Jeunet *

O francês Jean-Pierre Jeunet sempre foi um cineasta muito superestimado. Em seus país natal, dirigiu alguns filmes que lhe deram credibilidade cult entre a crítica e o público. Sua fórmula narrativa é simples e por vezes até eficiente – truques estéticos simpáticos, um certo requinte visual, ambientação esquisitinha e o tom agridoce dos roteiros lhe deram uma certa aura autoral. Na coprodução franco-norte-americana “Uma viagem extraordinária” (2013) boa parte desses artifícios foram limados e reduzidos, bem provavelmente por exigência de executivos ávidos por uma acessibilidade comercial que tornasse o filme mais viável comercialmente. Assim, o que se tem é um trabalho derivativo e sem graça, provavelmente a pior coisa que Jeunet lançou. É claro que em alguns momentos até dá para sentir alguns elementos típicos do estilo do cineasta, principalmente na caracterização de algumas situações e personagens, naquela síntese entre fofurice e esquisitice. Mas isso acaba sendo muito pouco para salvar a coisa toda do lugar comum enfadonho que predomina na narrativa. Clichês temáticos e formais são remexidos sem qualquer inspiração ou vigor, resultando em um produto destinado ao esquecimento rápido. Talvez fosse melhor Jeunet retornar a filmar em definitivo na França, pois em terras estrangeiras se revelou um medíocre tarefeiro dos grandes estúdios.

quarta-feira, dezembro 30, 2015

Quando papai saiu em viagem de negócios, de Emir Kusturica ***1∕2

Talvez o aspecto mais fascinante no modus operandi do diretor sérvio Emir Kusturica é a forma com que ele adequa gêneros e clichês cinematográficos dentro de sua linguagem artística particular. Essa característica fica bastante evidente em “Quando papai saiu em viagem de negócios” (1985), uma de suas produções mais estimadas. Num primeiro momento, o espectador pode até achar que está vendo algo convencional, numa trama que mistura referências históricas, memorialismo infantil e comentário político. Aos poucos, entretanto, Kusturica vai envenenando os lugares comuns com uma encenação vibrante, em que a tensão dramática e a ironia sardônica convivem de maneira fluida e natural. O academicismo formal em que esse tipo de obra costuma se basear está lá, principalmente pela vinculação com determinados fatos históricos importantes da Iugoslávia, mas o fato do protagonista ser uma criança faz com que a abordagem estética do filme traga algo de mágico e mesmo delirante na sua atmosfera. Essa oposição de linguagens (naturalista e estilizada) não é gratuita de acordo com o contexto sócio-político em que se desenvolve o roteiro – os absurdos do autoritarismo e da burocracia do governo iugoslavo dos anos 40 por vezes beiram o surreal. Mantendo essa pegada autoral, Kusturica elaborou ainda melhor esses preceitos formais e temáticos naquela que é a sua grande obra-prima, “Underground” (1985).

terça-feira, dezembro 29, 2015

As férias do pequeno Nicolau, de Laurent Tirard *1∕2

Em “O pequeno Nicolau” (2010), o diretor francês Laurent Tirard tinha encontrado um equilíbrio interessante entre um certo tom ingênuo tipicamente infantil e um grau de ironia exato, fazendo com que o filme pudesse ser apreciado tanto pelo público infanto-juvenil quanto pelo adulto. Já nessa sequência “As férias do pequeno Nicolau” (2014) essa química não consegue se concretizar – a direção é burocrática, a trama é banal e não consegue gerar tensão e interesse para o espectador, a narrativa é trôpega e engessada. No geral, tudo parece estar tão no piloto automático que a única sensação genuína que pode induzir é o sono. Nem crianças e nem adultos pouco exigentes provavelmente irão apreciar um conjunto criativo tão preguiçoso e sem vida.

segunda-feira, dezembro 28, 2015

Homens, mulheres e filhos, de Jason Reitman *1∕2

Dá para perceber na filmografia do diretor norte-americano Jason Reitman um certo padrão temático constante, em que ele se pretende como uma espécie de cronista moderno dos dilemas existenciais da sociedade ocidental contemporânea. Seus filmes versam sobre relações humanas frustradas (“Amor sem escalas”), gravidez na adolescência (“Juno”), imaturidade emocional (“Jovens adultos”). Ocorre, entretanto, que tais obras acabam não justificando a pretensão do cineasta, pois se formatam dentro de equações narrativas convencionais e pouco imaginativas, além de visões emocionais superficiais e por vezes beirando o moralismo fácil. Tal tratamento artístico volta a se manifestar de forma expressiva em “Homens, mulheres e filhos” (2014), obra em que Reitman se propõe realizar um inventário de registro misto entre o intimista e o social sobre as relações familiares em tempos de internet. Por mais que as questões levantadas pelo roteiro sejam relevantes, falta profundidade para a visão de mundo expressa pelo filme. Reitman se contenta em abusar de truques narrativos e clichês melodramáticos baratos, não sabendo aprofundar seus questionamentos com alguma sagacidade ou contundência. As situações apresentadas pelo roteiro são esquemáticas, além da caracterização dos personagens caírem em caricaturas patéticas (o personagem de Jennifer Garner, em especial, beira o ridículo). 

quinta-feira, dezembro 24, 2015

Califórnia, de Marina Person **

Por um lado, é de se admirar a persistência da diretora Marina Person em fazer de “Califórnia” (2015) uma obra de forte cunho autoral. Dá para sentir em cada fotograma do filme elementos que parecem aludir ao próprio imaginário pessoal da cineasta – trilha sonora repleta de pérolas do rock e pop dos anos 70 e 80, conflitos e dilemas típicos das comédias adolescentes de John Hughes, referências e citações da cultura pop. E as ambições artísticas de Person para sua produção também são louváveis, ao procurar oferecer a partir de uma trama de caráter intimista e memorialista uma perspectiva sócio-política-cultural do Brasil da primeira metade da década de 80, retratando o ambiente dos anos finais da ditadura militar. De certa forma, é como se a história do despertar da adolescente Estella (Clara Gallo) para os dramas e complexidades da vida adulta tivessem uma relação de simbolismo com um país que estava tentando sair das trevas do obscurantismo intelectual e comportamental. O problema de “Califórnia” é que todas essas boas ideias e intenções não conseguem se traduzir em uma narrativa envolvente. Na comparação com outras obras recentes que tiveram a juventude como temática, falta o lirismo brutal de “O cheiro da gente” (2014), a sensibilidade à flor-da-pele de “Depois de maio” (2012) e mesmo a graciosidade natural de “Hoje eu quero voltar sozinho” (2014). A encenação em “Califórnia” é engessada, por vezes beirando o amador, com as caracterizações dos personagens caindo por vários momentos em caricaturas constrangedoras, além do roteiro apelar para simplificações banais e sem graça. Por mais que se tenha simpatia com as mencionadas referências culturais que permeiam a trama, a impressão é que tais elementos não conseguem entrar em sintonia com o universo das situações e personagens. Assim, fica evidente, por exemplo, que o trabalho de direção de arte é por demais artificioso e sem vida. O que salva “Califórnia” do desastre completo é que existem algumas poucas sequências em que dá para vislumbrar o que poderia ter sido o filme se Person tivesse acertado mão na direção – as cenas no quarto de JM (Caio Horowicz) são pulsantes, dinâmicas e ousadas em seus movimentos, edição e diálogos, é quase como se fosse um outro filme dentro de “Califórnia”. Horowicz, aliás, destaca-se de forma disparada no elenco, pois tem uma presença cênica forte. No mais, ainda que “Califórnia” seja uma obra frustrante em sua execução, seus poucos e expressivos momentos positivos mostram que Person ainda é um nome a se prestar atenção. 

quarta-feira, dezembro 23, 2015

O clã, de Pablo Trapero **1∕2

A filmografia do cineasta argentino Pablo Trapero sempre foi marcada por uma pegada autoral própria, em que o diretor procurava criar uma atmosfera marcada por um realismo áspero. Seu formalismo não é caracterizado por grandes voos de virtuosismo, com Trapero preferindo manter uma estética austera para mostrar sintonia com roteiros de forte caráter humanista. Assim foi em obras memoráveis como “A família rodante” (2003), “Nascido e criado” (2006), “Leonera” (2008) e “Abutres” (2010). Ainda que venha sendo expressivamente festejado por crítica e público, com direito inclusive a ser o representante da Argentina para uma possível indicação ao Oscar de filme estrangeiro, “O clã” (2015), o trabalho mais recente de Trapero, foge bastante do estilo habitual do cineasta. Ao invés daquela mencionada sobriedade de concepção, Trapero envereda por uma narrativa bem mais convencional, ajustando-se a um amálgama de cinebiografia e policial que serve para embalar uma premissa e subtexto de trama bastante interessantes – a dos fatos reais de que a ditadura argentina que se estendeu entre parte dos anos 70 e 80 acabou oferecendo treinamento e mesmo salvo conduto para que organizações criminosas praticassem os seus delitos sob o disfarce de defesa dos valores cívicos e morais (prática essa que também ocorreu no Brasil). Até que por vezes essa gestão de clichês soa divertida e envolvente, mas a impressão geral é a de que Trapero resolveu se tornar um Scorsese platino, fazendo com que “O clã” pareça uma espécie de “Os bons companheiros” mal ajambrado, com direito inclusive a inúmeros planos-sequência sem muito sentido e trilha sonora rock and roll anglo-saxã. Ainda que competente em alguns quesitos técnicos e contando com uma ótima atuação de Guillermo Francella no papel do protagonista Arquimedes Puccio, falta uma fluência narrativa e uma abordagem temática menos superficial para que a produção se mostre capaz de ser algo efetivamente memorável, o que acaba sendo frustrante devido à mencionada questão sócio-política que permeia a trama e que acaba sendo tangenciada de maneira amena, ficando longe, por exemplo, da contundência e profundidade do brasileiro “Orestes” (2015) que traz assuntos semelhantes em seu respectivo roteiro.

terça-feira, dezembro 22, 2015

Quando meus pais não estão em casa, de Anthony Chen ***

A proposta artística da produção de Singapura “Quando meus pais não estão em casa” (2013) faz lembrar bastante a do filme brasileiro “Que horas ela volta?” (2015): usando a estrutura narrativa tradicional do gênero melodrama, a obra do diretor Anthony Chen pretende fazer uma espécie de dissecação das relações humanas dentro de uma sociedade marcada preconceitos e desigualdades sociais profundos. No trabalho em questão, não dá para dizer que há grandes transcendências estéticas e mesmo em termos existenciais – os dilemas da trama são aqueles básicos, com uma narrativa que avança de forma linear e sem sobressaltos. O grande mérito do filme de Chen é a sobriedade de sua abordagem emocional, não caindo em soluções sentimentais fáceis e manipuladoras, valorizando uma atmosfera plena de silêncios reveladores e a expressividade de gestos e olhares. Dessa forma, aliada também a uma discreta propensão para a ironia, sua crítica a uma sociedade de consumo que se mostra cada vez mais insensível e absurda em seus valores morais e contradições se caracteriza pela contundência e universalidade.

segunda-feira, dezembro 21, 2015

Mia madre, de Nanni Moretti ****

Os filmes do diretor italiano sempre são marcados por um traço autoral intransferível, trazendo uma espécie de sínteses das obsessões pessoais e artísticas do cineasta. Dentro dessa concepção se misturam elementos diversos como política, reminiscências pessoais, ensaios culturais, intimismo, comentário social e metalinguagem, mas sempre passando por um rigoroso filtro formal e temático que dá uma coerência existencial admirável para sua filmografia, independente do gênero no qual Moretti se aventure. Isso tudo fica bastante evidente em seu trabalho mais recente, “Mia madre” (2015), em que ele volta ao gênero do melodrama, onde ele já tinha se dado muito bem em “O quarto do filho” (2001). Na produção em questão, o diretor retoma seus temas que lhe são mais caros sem que com isso passe a impressão de acomodação. Pelo contrário – Moretti parece aprofundar seu particular estilo dentro de uma equação narrativa cada vez mais desconcertante. É como se tivesse mais de um filme dentro de “Mia madre”. Há aquele plano que mostra o cotidiano de filmagens de uma obra de caráter social por parte da cineasta Margherita (Margherita Buy), mostrando os dilemas artísticos da diretora. Por outro lado, tem uma trama intimista que envolve o tocante drama pessoal da protagonista junto ao irmão Giovanni (Moretti) que passam por todo o calvário de acompanhar os últimos dias da mãe moribunda. Além disso, a própria situação dessa matriarca carrega um forte caráter simbólico no sentido de representar a queda de um humanismo considerado ultrapassado perante uma ordem capitalista cada vez mais obtusa. E há também as sequências que mostram as confusões e constrangimentos causados por um decadente e arrogante ator norte-americano (John Turturro) no set das referidas filmagens e pelas ruas de Roma, em que as trapalhadas desse personagem parecem remeter a um humor melancólico tipicamente italiano na linha das produções de Toto e Mario Monicelli. Moretti junta todas essas narrativas paralelas e lhes dá uma unidade intrínseca extraordinária, compondo um painel humanista que navega de forma extraordinária entre a comicidade, o sentimental e a feroz crítica sócio-política e econômica, tendo por resultado final um filme que tanto pode ser considerado atemporal pela sua grandeza artística como a síntese emblemática de uma época conturbada.

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Star Wars: O despertar da força, de J.J. Abrams **

Se examinarmos a forma com que os filmes que compõem as duas primeiras trilogias da franquia “Star Wars” se relacionam, dá para no mínimo concordar com uma coisa: a de que cada um desses episódios mostrava uma evolução na caracterização das situações e personagens mais emblemáticas da saga, principalmente se formos considerar a ordem cronológica dos fatos apresentados nas tramas. E por mais que George Lucas se aproveitasse de elementos tradicionais de outras histórias (e mesmo lendas) para criar a mitologia da série, ele fez isso com muito senso de narrativa cinematográfica, num sentido que conseguiu criar uma ambientação muito particular, personagens cativantes e uma encenação empolgante. Ou seja, estabeleceu um cânone artístico que se tornou referência para fãs e também para uma grande legião de imitadores.

É certo que o parágrafo acima não traz novidade alguma no que se sabe sobre “Star Wars”. Para esse escriba, entretanto, ele é necessário para tentar contextualizar o que faz esse “Star Wars: O despertar da força” (2015) ser tão frustrante. Ao invés de dar um prosseguimento natural para as trilogias anteriores, no sentido de mostrar o amadurecimento dos antigos personagens e a inserção de figuras novas com caracterização psicológica (e mesmo visual) própria, o diretor J.J. Abrams adotou um caminho artístico preguiçoso e sem inspiração ao fazer uma espécie de reciclagem picareta de “Uma nova esperança”. A estrutura de trama e a relação entre os personagens são praticamente os mesmos do filme de 1977, com variações mínimas. É claro que os defensores mais xiitas vão dizer que seria uma homenagem ou algo que o valha, mas convenhamos que repetir na cara dura ideias velhas e já melhor trabalhadas acaba sendo muito pouco diante da expectativa que se criou nos últimos tempos por esse novo capítulo da saga. Além disso, Abrams não consegue dar liga na sua encenação para que pelo menos essa “refilmagem” parecesse minimamente vigorosa. Batalhas aéreas e terrestres são burocráticas na conjugação coreografia e efeitos especiais, não conseguindo extrair alguma efetiva tensão ou emoção para o espectador. Não há nem mesmo uma desenvoltura na forma com que os personagens se colocam em cena – a impressão constante é a de se estar vendo uma convenção de fãs da série fazendo cosplay nos cenários clássicos da saga. E é meio melancólico ver Harrison Ford, Carrie Fisher e Mark Hammill com presenças de cena tão artríticas. Na real, isso até acaba sendo sintomático do que efetivamente representa “O despertar da força”.


Talvez todo o fenômeno de devoção e marketing que assolou o planeta em função de retomada de uma nova trilogia de “Star Wars”, diante do resultado final de “O despertar da força”, acaba sendo também simbólico do que é a relação atual entre religião e comércio que domina o mundo. Fãs/fiéis defendem de forma indiscriminada seus ídolos/deuses enquanto produtores/pastores contam sorridente a bilheteria/o dízimo arrecadados...

quarta-feira, dezembro 16, 2015

O massacre da serra elétrica 2, de Tobe Hooper ****

Hoje em dia quando se fala em continuações ou reboots da franquia “O massacre da serra elétrica” logo se pensa em produções rasteiras e assépticas destinadas mais a levantar um troco fácil para os seus produtores do que acrescentar algo de relevante para a série. Sem querer parecer nostálgico, mas houve uma época em que isso foi diferente e dessa forma mais um capítulo da saga do maníaco Leatherface era algo realmente digno de nota para os apreciadores do cinema fantástico. Nesse sentido, “O massacre da serra elétrica 2” (1986) é um exemplar enfático dessa concepção. O diretor Tobe Hooper já tinha criado uma verdadeira escola dentro do gênero horror com o primeiro filme lançado em 1974, em que combinava com muita criatividade violência gráfica explicita, formalismo cru e atmosfera de sordidez e negativismo. Ao retomar a história e personagens na continuação em questão, mudou sua orientação artística de forma radical, mas preservando a coerência existencial da obra. Nesse sentido, é um trabalho que se mostra em perfeita sintonia com o espírito do melhor que foi feito no âmbito das produções de terror nos anos 80, principalmente naquela síntese contundente de suspense, horror e humor (vide obras como “Um lobisomem americano em Londres”, “Evil Dead” e “O soro do mal”). Há um viés em “O massacre da serra elétrica” que o diferencia bastante desses outros filmes – por trás de um roteiro repleto de delirantes situações sangrentas, há um ácido e sutil subtexto político no retrato caricatural que faz de típicas figuras que habitam o imaginário norte-americano, indo da típica fúria puritana de um policial alucinado em busca de vingança (Denis Hooper, evidentemente cheirado em cena) até nojentos e engraçados rednecks psicopatas (com direito inclusive a um escroto veterano do Vietnã), ou seja, um retrato nada gentil do sul republicano e reacionário dos Estados Unidos. Junto a uma intrínseca junção de dinâmica narrativa bem azeitada, encenação alucinada e ambientação fuleira, acaba se tendo uma legítima pérola cinematográfica marginal que só melhora com o passar dos anos.

terça-feira, dezembro 15, 2015

Tudo que aprendemos juntos, de Sérgio Machado **

O diretor baiano Sérgio Machado tinha demonstrado vigor narrativo em “Cidade Baixa” (2005) e “Quincas Berro D’Água” (2010), obras que traziam uma mistura interessante de brasilidades, erotismo e questões sociais, numa abordagem típica da sua geração de cineastas nordestinos que despontaram nos últimos anos (com destaque óbvio para o pessoal de Pernambuco). Diante desse histórico expressivo, ver a produção mais recente de Machado, “Tudo que aprendemos juntos” (2014), acaba causando forte decepção. Em algumas sequências, o diretor até preserva um certo frescor na encenação, mas acaba sendo muito pouco dentro de um quadro geral que remete a uma enésima versão requentada do clássico “Ao mestre com carinho” (1967). Clichês formais e temáticos são maltratados de forma impiedosa e rasteira. Mesmo que o roteiro tangencie dilemas prementes da sociedade brasileira contemporânea, o filtro estético e textual do filme é tão quadrado e burocrático que faz com que essa pretensão visão crítica se mostre superficial e reducionista.

segunda-feira, dezembro 14, 2015

No coração do mar, de Ron Howard **1/2

O diretor norte-americano tem uma filmografia marcadas por alguns altos e vários baixos. Depois do empolgante “Rush – No limite da emoção” (2013), era até natural que se houvesse uma expectativa positiva para o seu próximo filme. “No coração do mar” (2015), entretanto, mostra que o cineasta voltou ao habitual padrão de produções meia-boca. É claro que não se trata de um desastre completo como “Anjos e demônios” (2009), mas também está muito longe de fazer jus à promissora premissa de sua trama – mostrar os fatos reais que inspiraram Herman Melville a escrever a obra-prima literária “Moby Dick”. Howard é um diretor que sempre teve uma forte tendência para assepsia formal e temática na concepção de seus filmes, e isso acaba sendo justamente o principal equívoco artístico nesse seu trabalho mais recente. A caracterização visual da obra dentro do conjunto fotografia, direção de arte e efeitos especiais é exemplar desse traço característico do estilo de Howard filmar: tudo é tão artificial e limpo que os cenários de uma cidadezinha litorânea e de um baleeiro em pleno ano 1820 mais parecem de um insípido conto-de-fadas do que uma vigorosa reconstituição imagética fiel e realista. Mais grave do que isso é a forma com que as caças aos cetáceos e as batalhas entre a monstruosa baleia branca e o barco liderado por Owen Chase (Chris Hemsworth) são retratadas – ainda que mostrem razoável competência em sua coreografia, tais sequências são elaboradas dentro de padrões gráficos feitos essencialmente para não chocar as plateias, fazendo com que prepondere uma absurda falta de violência e sangue, itens fundamentais para que se ressaltasse o impacto sensorial da brutalidade do conflito entre o homem e a natureza. A verdade é que o viés adotado por Howard é muito mais o do conto moralista edificante, vide diálogos repletos de boas lições morais e os óbvios temas musicais melosos que pontuam a trilha sonora. Dessa forma, o resultado final é até um filme que por vezes diverte, mas que dificilmente consegue se concretizar como uma experiência cinematográfica memorável em nosso imaginário.

quinta-feira, dezembro 10, 2015

O fim e os meios, de Murilo Salles ***

Enquanto “Ausência” (2014) é uma obra que se apresenta como uma lúcida tese sociológica e falha como cinema, com “O fim e os meios” (2014) dá para dizer que as coisas se operam de forma contrária. O roteiro do filme de Murilo Salles se pretende como uma espécie de raio x sobre as estruturas de poder no cenário político brasileiro contemporâneo, em que mesmo aspectos da intimidade dos personagens refletem as relações de dominação econômica e desajustes sociais no Brasil. Os desdobramentos da trama, entretanto, não conseguem sustentar tais pretensões temáticas, resvalando por vezes em simplificações e banalidades que não conseguem sintetizar de forma satisfatória alguns conflitos complexos que são retratados no roteiro. Nesse sentido, não há a agudeza existencial que deixava o espectador inquieto em “Nome próprio” (2007), excelente produção anterior dirigida por Salles. Por outro lado, a encenação concebida pelo cineasta em “O fim e os meios” é tão intensa e fluida que mesmo as inconsistências da trama não impedem que a narrativa seja envolvente em sua condução. Salles tem a manha para criar algumas perturbadoras atmosferas de tensão dramática, sabendo valorizar também as expressões e gestuais de seus autores com bastante sensibilidade. Por mais que o filme tenha uma tendência para o caricatural, o misto de sexo, poder e picaretagem que envolve os personagens vinculam o filme a um pastiche eficiente no gênero policial permeado por uma atmosfera de sordidez perturbadora.

quarta-feira, dezembro 09, 2015

Ausência, de Chico Teixeira **1/2

'
A comparação entre “Ausência” (2014) e “Casa de Alice” (2007), filme anterior de Chico Teixeira, mostra que o diretor tem uma certa coerência artística. As duas produções têm tratamentos formais e temáticas semelhante – roteiro e narrativa obedecem a uma lógica rigorosa em seus desdobramentos, revelando uma visão de mundo aguçada na percepção das mazelas existenciais da sociedade brasileira contemporânea. No filme mais recente, a progressão de fatos da trama obedece a uma equação que beira a matemática, em que a sucessão de situações deprimentes faz com que o protagonista Serginho (Matheus Fagundes) entre numa espiral de desilusões. Teixeira faz transparecer em sua obra um severo modus operandi em que cada cena traz uma carga explicativa, e por vezes até simbólica, na construção de uma tese sobre abandono emocional na menoridade. É de se convir que nesse sentido “Ausência” seria uma expressiva peça sociológica a embasar teorias comportamentais. Todo esse acuro filosófica/intelectual, entretanto, não consegue se traduzir num resultado cinematográfico satisfatório. Falta uma vivacidade, uma transcendência artística, dentro desse estilo opaco de Teixeira filmar. O espectador até consegue entender os dilemas e dificuldades de Serginho, mas também não consegue sentir alguma real empatia pelo personagem e mesmo por aqueles que o cercam. Por mais que os diversos tipos de relacionamentos nos quais Serginho se envolve servem para construir a base para a evolução das ideias do filme, nenhuma dessas interações é esmiuçada de uma maneira mais profunda, ficando num desenvolvimento muito superficial. Se a história se concentrasse mais na ambiguidade do relacionamento entre Serginho e o “Professor” (Irandhir Santos), por exemplo, teria um impacto muito maior. No mais, até dá para entender que essa aridez estética e emocional de “Ausência” tenha uma função de evitar que a obra caia no sentimentalismo fácil ao abordar a questão da adolescência à beira-do-abismo, mas obras com temática semelhante como “Os incompreendidos” (1959) e “Pixote” (1981) já mostraram que se pode ter uma abordagem artística mais grandiosa e memorável sem perder a contundência de seu discurso.

terça-feira, dezembro 08, 2015

American Ultra - Armados e alucinados, de Nima Nourizadeh **

Existem filmes cujas premissas iniciais que deram origem aos seus respectivos roteiros são bem mais interessantes que os seus consequentes resultados finais. “American Ultra – Armados e alucinados” (2015) é um expressivo exemplar de tal constatação. Ainda que a profusão de produções sobre superespiões treinados a um limite sobre-humano seja grande (vide as franquias “007” e “Bourne”, além de derivados), a ideia de um agente com amnésia (Jesse Eisenberg) que passa os dias chapado de maconha e desenhando uns quadrinhos doidões e que acaba se tornando alvo de eliminação por uma agência governamental acaba despertando uma certa curiosidade para o espectador apreciador de uma boa aventura escapista. O problema é que a abordagem do diretor Nima Nourizadeh acaba não fazendo jus às expectativas promissoras. O ideal para um filme como esse é que a estrutura narrativa se vinculasse a uma síntese entre a comicidade ácida e a ação enlouquecida. No caso em questão, predomina uma dramaticidade excessiva, fazendo parecer uma obra que se leva mais a sério do que deveria. A encenação raramente encontra um tom adequado entre a comédia e a aventura, com os dilemas da trama mais parecendo uma variação derivativa da linha “Bourne”. E se restava ao elemento ação a chance de salvar “American Ultra” da decepção total, daí as coisas naufragam de vez – o formalismo concebido por Nima Nourizadeh é burocrático e sem inspiração. Estão lá as explosões, tiros, lutas e violência, mas tudo num conjunto incapaz de criar empatia ou alguma cena memorável. Ou seja, tudo bem distante da vigorosa releitura de clichês narrativos que Nourizadeh tinha estabelecido em “Projeto X” (2012), seu trabalho anterior.

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Remake, Remix, Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Pop Cinema, de Cem Kaya ***

Num primeiro momento, o documentário “Remake, Remix, Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Por Cinema” (2014) parece se resumir a uma boa coletânea de infames cenas de produções turcas dos anos 60 e 70 marcadas pela tosquice, cara-de-pau, ingenuidade e humor involuntário. Nesse sentido, talvez o principal mérito da obra é o seu trabalho de edição: por vezes, a ágil sucessão de hilárias sequências repletas de “defeitos visuais”, diálogos constrangedores, encenação amadorística e generosas doses de violência e escatologia levam o espectador a gargalhadas convulsivas. Um olhar mais atento, entretanto, pode identificar no filme dirigido por Cem Kaya um retrato crítico e por vezes até profundo sobre a cultura turca no período focado, época essa marcada por uma conjuntura bem específica e difícil de reproduzir nesses tempos atuais dominados pela internet e outros avanços tecnológicos. Naqueles tempos, a falta de grana constante para produções nacionais, um regime jurídico diferenciado de direitos autorais (ou, na verdade, a ausência de tal regime) e um cenário artístico afetado pela falta de informação e pelo obscurantismo religioso levam a uma profusão de filmes de baixo orçamento e nível formal risível de todos os gêneros (ficção científica, aventura, fantasia, terror, comédia, melodrama). No meio de uma temática marcada pelo grotesco e pela galhofa, Kaya tem algumas belas sacadas narrativas, principalmente por estabelecer conexões de tal filmografia com elementos típicos de vertentes cultuadas por cinéfilos como o exploitation e o trash, além de mostrar a relação da decadência comercial dessas produções com mudanças importantes na Turquia, como a consolidação de um capitalismo mais “profissional” e o avanço do fundamentalismo religioso. Assim, mais do que um mero exercício de nostalgia cinematográfica, “Remake, Remix, Rip-Off” acaba sendo uma interessante obra a dissecar de forma sutil os meandros das transformações políticas e sociais da Turquia, mas que também faz um memorável e contundente retrato da alma fuleira e sincera de um povo.

sexta-feira, dezembro 04, 2015

Pasolini, de Abel Ferrara ****

Quando se fala em cinebiografia nos dias de hoje, a primeira coisa que vem à cabeça é um filme cuja estrutura narrativa se resume a uma espécie de resumão linear da vida de seu protagonista, com alguma ênfase em determinados fatos mais relevantes, mas que no final das contas acaba se mostrando como uma obra superficial e que pouco consegue mostrar da essência de seus “homenageados”. Ainda que possam receber algumas indicações a Oscar ou páginas em cadernos culturais, o destino da maioria de tais produções é o esquecimento pela sua irrelevância artística e mesmo histórica. Sorte que existem exceções como esse “Pasolini” (2014) de Abel Ferrara, em que esse último retrata a últimas 24 horas de vida do genial diretor italiano. Só que nesse curto espaço de tempo focado, Ferrara consegue fazer um contundente inventário emocional e artístico do seu protagonista. O último dia de Pier Paolo Pasolini (Willem Dafoe) é marcado pelos tradicionais dilemas, conflitos e contradições que sempre marcaram sua trajetória como pensador, poeta e cineasta – seu conflito com os moralismos e mesquinharias do status quo econômico e social da sociedade ocidental, suas preocupações em dar vazão às suas obsessões estéticas e temáticas, o seu gosto por envolvimentos sexuais sórdidos. Mas ao mesmo que Ferrara concebe uma abordagem realista nessa visão fatalista dos momentos derradeiros de Pasolini, ele também envereda por um vórtice sensorial dentro da mente do artista, fazendo com que o espectador possa ter um vislumbre das lembranças difusas, anotações pessoais e mesmo projetos abortados pela sua precoce morte. Nesse último quesito, Ferrara emula com sensibilidade o próprio estilo de Pasolini na encenação que faz de um roteiro nunca filmado desse último, fazendo lembrar aquele realismo mágico picaresco e enlouquecido que o italiano criou para a sua “Trilogia da vida”. De certa forma, somente um eterno desajustado como Ferrara poderia ter a manha de nos oferecer um significado bastante aproximado do papel decisivo que Pasolini teve na cultura mundial.

quarta-feira, dezembro 02, 2015

A visita, de M. Night Shyamalan ***

O que mais incomodava em “Depois da terra” (2013), o penúltimo longa-metragem do diretor M. Night Shyamalan, era o fato de transparecer uma forte despersonalização por parte do cineasta. Independente de se gostar ou não de Shyamalan, é inegável que em boa parte de sua filmografia dá para sentir um certo traço autoral, a delineação de um estilo particular, o que não ficava evidente na referida obra. Em “A visita” (2015), seu trabalho mais recente, Shyamalan retoma sua veia própria de realizador diferenciado, também retornando ao horror, gênero no qual se destacou em “O sexto sentido” (1999) e “O fim dos tempos” (2008). Nessa nova incursão ao terror cinematográfico, ele surpreende por enveredar por uma concepção narrativa bastante manjada no cenário das produções de horror contemporâneas – a da câmara subjetiva, onde quem registra a ação são os personagens. Diferente do tom previsível e pueril da franquia “Atividade paranormal”, “A visita” demonstra criatividade na utilização desse recurso estético. Na trama, a dupla adolescente de protagonistas está realizando um documentário intimista sobre a relação de sua mãe e os avós, fazendo com que mostrem domínio técnico em termos de encenação e edição. Por vezes, inclusive, chegam a discutir sobre conceitos importantes no gênero documental. A partir de tal arcabouço formal e temático, e tendo como principal cenário uma rústica fazenda isolada no meio de interior norte-americano, Shyamalan consegue extrair uma atmosfera de horror gótico, fazendo com que o filme tenha algumas memoráveis sequencias bastante tensas e assustadoras na sua combinação de temores atávicos, escatologia e violência. Pena que o roteiro insira alguns momentos de melodrama familiar excessivo, o que diminui de forma considerável o impacto e concisão da obra. Ainda assim, “A visita” está bem acima da média do que tem sido feito no gênero nos últimos anos e serve também para mostrar que Shyamalan está longe de ser considerado carta fora do baralho.

terça-feira, dezembro 01, 2015

A ilha do milharal, de George Ovashvili ***

Apesar do exotismo de sua procedência, a produção da Geórgia “A ilha do milharal” (2014) não chega a ser um bicho de sete cabeças em termos formais e temáticos. É claro que para aqueles acostumados com os padrões frenéticos e escapistas de boa parte do que se produz na Hollywood atual a narrativa lenta e detalhista elaborada pelo diretor George Ovashvili pode para esquisita e enfadonha. A trama do filme é simples e sem grandes variações em seu desenvolvimentos e mesmo nas suas viradas, mas guarda em suas entrelinhas alguns simbolismos que são trabalhados de forma eficiente e até mesmo por vezes encantadora. Dentro da concepção artística desse trabalho Ovashvili, a exposição do passar do tempo é essencial na construção dramática. O passo-a-passo do levantamento de uma plantação de milho em uma pequena ilha temporária de um rio interiorano, assim como a amostragem do cotidiano de sua manutenção, é essencial para se dimensionar a carga dos conflitos e dilemas delineados pelo roteiro. A valorização dos silêncios e ênfase nas expressões e gestuais dos personagens também são essenciais para a atmosfera de melancolia e mesmo para a sensação de tragédia iminente e inevitável que pairam de forma constante sobre “A ilha do milharal”. O rigor dessa abordagem estética e emocional encontra um complemento acertado na encenação, principalmente por uma direção de fotografia que consegue captar com uma grandiosidade contida as nuances visuais dos belos cenários naturais do filme. Se em grande parte da narrativa predomina essa discrição nas escolhas artísticas de Ovashvili, as sequenciais finais da tempestade que inunda a ilha e destrói grande parte da plantação de milho representam uma catarse sensorial impactante capaz de fixar no imaginário do espectador por um bom tempo.

segunda-feira, novembro 30, 2015

Mistress America, de Noah Baumbach ***

Se em “Frances Ha” (2012) o diretor Noah Baumbach fazia uma espécie de releitura contemporânea de alguns dos maneirismos habituais da Nouvelle Vague, em “Mistress America” (2015), sua nova colaboração com atriz e roteirista Greta Gerwig, ele faz a revitalização moderninha daquelas comédias norte-americanas amalucadas dos anos 30 e 40. Usando como personagens estudantes esnobes de literatura, pseudointelectuais e figuras boêmias da noite nova-iorquina, Baumbach faz uma espécie de inventário emocional de uma geração de jovens de classe média dentro de uma estrutura narrativa que parece uma reciclagem do clássico “Levada da breca” (1938) de Howard Hawks. Pode parecer esquisito por vezes, até porque o cineasta deixa impresso boa parte do seu habitual estilo típico de cinema independente contemporâneo: narrativa seca que por vezes emula um estilo documental, roteiro de caráter naturalista, trilha sonora pop rock de acento indie (no caso, com excelentes temas compostos pela dupla Dean & Britta, além de antológicas canções de OMD e Suicide). Num primeiro momento, essa mistura de referências diversas pode parecer indigesta, mas com o desenrolar da trama o filme fica mais fluente e orgânico no seu misto de pretensão cool e comicidade. Da metade para o fim, por sinal, fica bem engraçado, com a protagonista Brooke (Gerwig), em suas tiradas bem humoradas e no seu porte desengonçado, fazendo lembrar até mesmo algumas personagens memoráveis interpretadas por Katherine Hepburn. 

sexta-feira, novembro 27, 2015

As mil e uma noites: Volume 1 - O inquieto, de Miguel Gomes ****

Tempos conturbados como o que vivemos na atualidade podem nos angustiar, perturbar, deprimir ou provocar algumas outras reações negativas. Por outro lado, um cenário de crise econômica, social e cultural também é capaz de despertar algo de muito positivo – a criatividade artística necessária para contestar, criticar e ironizar um status quo opressor e hipócrita. E esse é justamente o caso do extraordinário “As mil e uma noites: Volume 1 – O inquieto” (2015), produção cinematográfica portuguesa em que o diretor Miguel Gomes destila de forma contundente o seu descontentamento com o governo e a sociedade de seu país. Desde o início, de forma mesma expressa, o cineasta deixa clara a sua motivação na realização da obra em questão, colocando que a conjuntura econômica de austeridade fiscal e cortes de benefícios sociais torna para ele impossível fazer um filme sem que tal assunto entre dentro de sua temática. O trabalho de Gomes, entretanto, não reduz a estética a mero veículo para um discurso panfletário. O próprio formalismo do filme tem um viés político ao se recusar a fazer concessões de fácil digestão para o público. Gomes combina com notável fluidez documentário, ficção e metalinguagem, fazendo com que a encenação naturalista se entrelace de forma estranhamente harmônica com elementos de cinema fantástico e mesmo aspectos de desconstrução narrativa. Dessa maneira, o Portugal atual de políticas econômicas ditadas por tecnocratas e de desemprego estrutural convive com um país de cotidiano arcadista repleto de realismo mágico. A inventiva concepção artística de Gomes remete a outra antológica versão desse mesmo clássico literário, aquela perpetrada por Pasolini em 1974, filme que adaptava o clássico texto oriental para uma linguagem de herança neorrealista. Ainda que de estilos diversos, as obras de Gomes e Pasolini se irmanam na capacidade de refletir seus respectivos tempos históricos em narrativas repletas de imaginação e ironia.

quinta-feira, novembro 26, 2015

Os Maias - Cenas da vida romântica, de João Botelho ***1/2

Para o diretor português João Botelho, não bastava simplesmente adaptar o original literário de “Os Maias – Cenas da vida romântica” (2014) para dentro de uma linguagem cinematográfica. Para o cineasta, primordial era preservar a essência temática da obra e valorizar a prosa lapidada ao extremo do escritor Eça de Queiroz. Para isso, Botelho recusou a simples encenação naturalista e apostou numa estilização formal acentuada. A produção se baseia em truques estéticos simples e na empostação dos diálogos. É como se a preocupação não fosse que aquilo que se vê em tela fosse crível ou acessível para o espectador moderno, interessando mais criar uma determinada atmosfera que se preocupasse em colocar o espectador dentro de um vórtice sensorial. Nesse sentido, a Lisboa que se revela na obra é quase difusa, beirando o onírico – parece uma capital portuguesa do século XIX que habita o imaginário de um possível leitor apaixonado de Eça. O texto que brota da tela através da narração e dos diálogos vem num tom solene, por vezes declamado. Ao invés do anacronismo tedioso, tal recurso provoca um estranho encantamento pela força e encadeamento dessas palavras e diálogos que denotam uma ampla gama de sentimentos e sensações. A trama de “Os Maias” pode sugerir em sua superfície uma tragédia novelesca, mas nas suas entrelinhas traz um fino senso de humor a satirizar as hipocrisias e mesquinharias da sociedade portuguesa da época. É grande mérito de João Botelho saber preservar essas geniais nuances da escrita de Eça, traduzindo esse clima de decadência sedutora em várias sequencias antológicas, o que fica evidente principalmente nas cenas em que a ácida metralhadora verbal de João da Ega (Pedro Inês) se manifesta e na lassidão perturbadora da última sequência de sexo entro Carlos da Maia (Graciano Dias) e Maria Eduarda (Maria Flor).

quarta-feira, novembro 25, 2015

Aliança do crime, de Scott Cooper **

Tinha tudo para ser um puta filme: o mesmo diretor dos excelentes “Coração louco” (2009) e “Tudo por justiça” (2013), a impressionante história real que inspirou a obra-prima “Os infiltrados” (2006) e um elenco repleto de ótimos atores. O resultado final de “Aliança do crime” (2015), entretanto, fica bem aquém dessas altas expectativas. Por vezes, até dá para sentir algumas fagulhas criativas que dão uma ideia do que o filme poderia ser, principalmente em algumas sequencias de ação e violência que mostram que Scott Cooper tem um talento natural para esse tipo de cenas. O que falta para a produção é uma narrativa equilibrada e dinâmica que consiga conciliar esses bons momentos de forma mais satisfatória. No geral, prevalece uma abordagem burocrática e despersonalizada que faz com que o filme raramente consiga despertar alguma tensão efetiva ou empatia pelas situações e personagens. O roteiro é tremendamente superficial e derivativo, além das caracterizações dramáticas do elenco serem afetadas e caricaturais. Falta uma densidade estética e temática melhor trabalhada – do jeito que ficou, parece que se está vendo um episódio qualquer daqueles programas televisivos banais sobre crimes em que a encenação parece um mero pretexto para o conteúdo jornalístico apelativo, o que acaba sendo muito pouco para um cineasta como Cooper.

terça-feira, novembro 24, 2015

Cativas - Presas pelo coração, de Joana Nin **1/2

É interessante observar como “Cativas – Presas pelo coração” (2013) é uma obra que consegue ser tão emblemática tanto das qualidades quanto dos vícios que marcam a contemporânea filmografia do documentário brasileiro. A temática do filme em questão é bem determinada: o cotidiano das mulheres que são namoradas e esposas de homens que se encontram cumprindo penas em estabelecimentos prisionais. A abordagem concebida pela diretora Joana Nin valoriza bastante o viés do dramático ao retratar as dificuldades e amarguras que uma situação dessas pode trazer para a vida de suas protagonistas, mas por vezes se permite um leve acento bem humorado. De certa forma, é um trabalho que se mostra em conexões com outros exemplares recentes do gênero que buscam uma espécie de síntese da natureza entre o sentimental, o melodramático e o brega, a tentar buscar a essência da alma brasileira do cidadão típico dessa nova classe C. Dentro de tal perspectiva, a cineasta abusa dos longos depoimentos em que suas entrevistadas narram suas respectivas trajetórias de envolvimento com amores “bandidos”. Em algumas dessas entrevistas, há nuances expressivas a explicitar a natureza insondável de algumas escolhas pessoais. Em boa parte dos outros depoimentos, entretanto, há uma certa atmosfera de enfado na repetição excessiva de histórias e lamentações muito semelhantes entre si. Ainda assim, em seu contexto geral, “Cativas” até consegue ter um saldo positivo principalmente pelas sequências em que Nin consegue transcender a formatação convencional. Nesse sentido, destaque absoluto para a sequência da visita íntima, que culmina numa suarenta e ousada cena de sexo real filmada de forma consentida. Antológica também são as tomadas finais, em que uma jovem mulher percorre os labirínticos corredores de uma penitenciária até chegar ao pátio de visitas e encontrar o seu amado, tudo isso ao som de uma pérola romântica de Márcio Greyck.

segunda-feira, novembro 23, 2015

Olmo e a gaivota, de Petra Costa e Lea Glob ***

Se em “Elena” (2012) a diretora Petra Costa realizou um documentário marcado por um subjetivismo que fazia com que a obra beirasse a ficção, em “Olmo e a gaivota” (2014), codirigido com a dinamarquesa Lea Glob, ela novamente se embrenha em uma fronteira nebulosa entre o real e o imaginário. Essa produção mais recente apresenta uma estrutura narrativa intrincada, em que as situações e os personagens podem ser considerados “verdadeiros”, só que se desenvolvem de forma encenada, com direito, inclusive, a intervenções diretas das realizadoras interagindo com seus atores. Esse hibrido de cinema verdade, ficção, metalinguagem e teatro (os “personagens” são em sua maioria profissionais do meio) apresenta um sensorialismo desconcertante, pois os recursos estéticos não estão ali apenas para experimentos de linguagem, mostrando também um sintonia notável com a própria temática do filme. A obra se propõe a uma espécie de desnudamento sentimental da protagonista Olivia Corsini, uma atriz que se descobre grávida justamente quando estava em vias de estrear em uma ambiciosa montagem de “A gaivota”, de Anton Tchecov, acaba tendo de abandonar a peça e entra em uma crise existencial ao ter de ficar recolhida em casa durante o período de gestação. Através dessa história intimista, as diretora propõem um olhar ao mesmo tempo cru e sensível da condição feminina perante ao machismo e ao materialismo típicos da sociedade ocidental contemporânea. E não se trata de mera chorumela sentimentalista – ainda que não tenha a contundência formal e o clima de loucura e onirismo constantes de “Elena”, “Olmo e a gaivota” é contundente e sem concessões no seu discurso estilístico e de conteúdo.

sexta-feira, novembro 20, 2015

Head - Os Monkees estão soltos, de Bob Rafelson ****

Poucos filmes conseguiram captar de forma tão plena as contradições e dilemas do anos 60 quanto “Head – Os Monkees estão soltos” (1968). Em seu longa-metragem de estreia, o diretor norte-americano Bob Rafelson realizou uma obra conturbada e fervilhante de criatividade alucinada, fazendo tanto um inventário de suas obsessões artísticas quanto um comentário ácido sobre uma época de transição e mudanças em todos os sentidos (cultura, comportamento, política e afins). A narrativa parece obedecer a um fluxo aleatório de referências, pensamentos e imagens. Num primeiro momento, tudo pode parecer gratuito ou puramente experimental, como se fosse apenas uma grande brincadeira chapada de Rafelson e dos Monkees. Aos poucos, entretanto, essa profusão de elementos e ideias vão adquirindo um sentido singular, configurando uma perspectiva estética e temática de caráter crítico e irônico. Os Monkees entrando num vórtice de cenas diversas que remetem aos gêneros cinematográficos mais clássicos, a presença constante de figuras icônicas da cultura pop (Victor Mature, a Coca Cola), a colagem de sequencias documentais, as trucagens que remetem a um estilo psicodélico – tudo isso se combina numa narrativa que se estrutura como um pesadelo sem fim e que ainda soa tremendamente ousada nos dias de hoje no seu questionamento sobre a relação entre arte e comércio. A trilha sonora, composta por melodiosas e lisérgicas canções da banda protagonista, é o complemento exato a sublinhar essa obra marcada pela esquisitice formal e por uma lucidez desconcertante.

quinta-feira, novembro 19, 2015

007 contra spectre, de Sam Mendes **1/2

A franquia “007” acabou tomando um outro direcionamento a partir do momento em que Daniel Craig assumiu o papel de James Bond. A violência ficou mais explícita, as histórias assumiram uma atmosfera soturna e Bond se tornou um personagem brutal e um tanto sorumbático. Para muitos, esse novo direcionamento representava uma traição àquele perfil de produções escapistas e divertidas, além da caracterização do protagonista que primava por um misto de charme e canalhice, tipo esse consagrado por Sean Connery, Roger Moore e Pierce Brosnan. Deixando esses purismos de lado, é fato que essa fase recente teve ótimos momentos dignos de entrar em qualquer antologia do melhor que já foi feito com o personagem criado por Ian Fleming. A ação alucinada de “Cassino Royale” (2006) e a elegância formal de “Skyfall” (2012) mostraram que a série ainda podia render produções cativantes. Em “007 contra Spectre” (2015), a fórmula atual, entretanto, já demonstra evidentes sinais de cansaço. É claro que estão presentes algumas boas sacadas estéticas (o plano-sequência inicial é memorável), além das trucagens apresentarem um nível gráfico expressivo. O problema dessa nova aventura de 007 é uma narrativa esquemática em excesso e pouco criativa. O roteiro faz suceder fatos de forma mecânica e pouco convincente, não gerando interesse ou empatia, o que se estende para uma caracterização pouco inspirada dos personagens (Blofeld, por exemplo, é mostrado como um vilão qualquer, e não como o antagonista mais relevante da extensa galeria de adversário de Bond). E mesma a pretensa seriedade temática da era Craig acaba soando ridícula diante da forma simplória com que a trama pretende se conectar com as histórias dos produções anteriores. Tiroteios, pancadarias e explosões se acumulam e se mostram banais e incapazes de gerar alguma efetiva tensão para o filme. Há boatos que dizem que Craig está pensando em sair da pele do agente secreto mais famoso do cinema. Diante de sua eterna cara de tédio em “Spectre” e da frouxidão da obra em questão, talvez tais suposições não sejam tão fantasiosas.

terça-feira, novembro 17, 2015

O futuro, de Mirada July **1/2

Mais do que cineasta, a norte-americana Miranda July é essencialmente uma artista multimídia. Nesse sentido, suas produções cinematográficas mais parecem um laboratório de suas ideias e obsessões artísticas do que propriamente filmes perfeitamente acabados. Coerente com tal proposta, “O futuro” (2011) pode frustrar aqueles que esperam um formalismo rebuscado ou equilibrado. Quem estiver com a mente mais aberta para a proposta estética de July, entretanto, pode até se sentir envolvido em algumas cenas com a narrativa trôpega e que por vezes extrapola para o fabular. Não se trata de uma obra de fácil digestão – as situações e dilemas do roteiro são expostos num tom oscilante e fragmentado, com os eventos da tramas e mesmo a caracterização psicológica dos personagens se desenvolvendo pelas vias do aleatório e do onírico. Por vezes, predomina uma certa ambiência de distanciamento emocional. Em outras passagens, a combinação entre intimismo cortante e elementos de ficção científica acaba criando uma atmosfera estranha e perturbadora. Mesmo que o resultado final de “O futuro” seja irregular, as ousadias e excentricidades de July acabam criando algumas cenas capazes de se fixar sutilmente em nosso imaginário.

segunda-feira, novembro 16, 2015

A floresta que se move, de Vinícius Coimbra *

O diretor Vinicius Coimbra trabalhou em algumas novelas e outras produções televisivas da Globo nesses últimos anos. Esse seu histórico na TV fica evidente na própria concepção artística de “A floresta que se move” (2015), seu filme mais recente. A intenção da obra era adaptar “Macbeth”, a clássica peça teatral de Willian Shakespeare, para o contexto contemporâneo brasileiro, fazendo com que a bastante conhecida trama envolvendo poder, traição, culpa e morte se enquadrasse dentro de um cenário envolvendo valores pequeno burgueses e a rotina de picaretagens econômicas de grandes bancos. Se as ambições de Coimbra até parecem interessantes, o resultado final, entretanto, deixa muito a desejar. O filme naufraga de forma constrangedora em todos os seus aspectos: o roteiro é destituído do menor traço de sutileza, a encenação é truncada e beira o amador na caracterização de cenas e personagens, o elenco abusa da canastrice dramática, o formalismo é asséptico e despersonalizado evocando um reclame alongado ou mesmo um insípido capítulo de uma novela qualquer. Se a intenção do espectador era ver uma versão cinematográfica para um texto original de Shakespeare, é melhor procurar algum trabalho dirigido por Kenneth Branagh. Mas se por outro o desejo da plateia é assistir a alguma tranqueira, dá para encarar esse “A floresta que se move”. Afinal, sua ruindade é tão escancarada que chega até a ser divertida.

quinta-feira, novembro 12, 2015

Hacker, de Michael Mann ***1/2

Desde a sua estréia nos cinemas, a trajetória de Hacker (2015) não tem sido das mais festejadas. Grande fracasso comercial nos Estados Unidos, amplamente malhado pela crítica “especializada”, lançado direto em DVD no Brasil. Diante de tais fatos, num primeiro momento, poderia-se afirmar que o filme mais recente do diretor norte-americano Michael Mann é um dos grandes fiascos do ano. Por mais que Mann seja cultuado por um número expressivo de admiradores, não dá para dizer que essa recepção negativa seja uma novidade para ele. Ele não é aquele típico cineasta “respeitável” que com frequência recebe prêmios em festivais, indicações ao Oscar, várias resenhas elogiosas de jornais e revistas. Pelo contrário – alguns de seus melhores filmes tiveram uma recepção inicial fria por parte de críticos e foram sucessos moderados de bilheteria. Essa recepção tem algumas explicações. Mann começou a trabalhar na televisão (mídia considerada menos “nobre”), nunca esteve ligado a uma turma ou movimento cinematográficos específicos (como, por exemplo, Scorsese com o pessoal da “Nova Hollywood” ou Jim Jarmusch na ponta de lança do cinema independente norte-americano) e se vinculou aos gêneros policial e aventura. Para muitos, ele sempre foi visto no máximo como um competente “tarefeiro” dos grandes estúdios. Dentro dessa lógica, sua biografia tem semelhanças com as de outros hoje incensados diretores como John Ford, Howard Hawks e Alfred Hitchcock: a de autores que dentro de uma estrutura convencional de grandes produções comerciais conseguiam expressar uma visão particular e bastante criativa da arte cinematográfica. Filme a filme, Mann construiu uma sólida filmografia que com o passar do tempo passou por reavaliações e se tornou peça chave na compreensão da evolução da linguagem estética do cinema contemporâneo. Em obras-primas como Fogo contra fogo (1995), Colateral (2004) e Miami Vice (2005) se expandiram de forma extraordinária os elementos artísticos mais caros do cinema de Michael Mann: a dinâmica precisa de narrativa, a montagem elegante e moderna que tanto se vale do classicismo quanto de influências inesperadas da estética “video-clipeira” dos anos 80 (fonte de onde William Friedkin também bebeu no seminal Viver e morrer em Los Angeles), a fotografia de notável textura imagética (poucos diretores conseguiram aproveitar de forma tão criativa a plasticidade da filmagem em câmera digital quanto Mann), o uso criativo de canções e temas incidentais na trilha sonora para a construção da tensão dramática, a caracterização sóbria de personagens, o virtuosismo insuperável no registro de cenas de pancadaria e tiroteio. Nesse último quesito, aliás, Mann representa uma verdadeira escola dentro do cinema de ação: enquanto Sam Peckinpah é o mestre da violência em câmera lenta e John Woo se sobressai pelo barroquismo exagerado na concepção da ação cinematográfica, Mann se notabilizou por um realismo conciso e impactante.


Ainda que não esteja no nível artístico do melhor da filmografia de Michael Mann, Hacker é uma obra que está em sintonia com aquilo que faz dele um dos mais importantes cineastas em atividade. Na realidade, é muito mais coerente com o estilo autoral de Mann do que Inimigos públicos (2009), obra essa que se mostrava como uma certa descaracterização do marca estilística de Mann em nome de um academicismo típico do gênero “filme de época” (afinal, tratava-se da recriação dos últimos meses de vida do célebre gangster John Dillinger). Nessa produção mais recente, Mann volta a se concentrar numa temática contemporânea, com uma trama envolvendo jogos de espionagem e terrorismo tecnológico. Aliás, o roteiro de Hacker é o seu ponto fraco, perdendo-se por vezes em alguns clichês baratos que trancam a narrativa. Em um primeiro momento, Mann parece até preocupado em provar ser “moderno” para as plateias jovens, perdendo tempo com algumas trucagens genéricas (as tomadas “internas” em redes de computadores são chatas e desnecessárias). Aos poucos e de forma sutil, entretanto, a narrativa vai se assentando e a sensibilidade e técnica refinadas de Mann afloram com mais intensidade. Ainda que o filme trabalhe dentro dos preceitos esperados de um tradicional “thriller” de ação, pode-se perceber uma série de nuances que o diferencia do que se faz na maioria dos casos dentro do gênero. A caracterização taciturna e de poucas palavras do protagonista Nicholas Hathaway (Chris Hemsworth) é exemplar dessa abordagem, fazendo lembrar o antológico personagem principal interpretado por Alain Delon no clássico francês O samurai (1967). Aliás, o filme de Jean-Pierre Melville é uma boa referência para entender a encenação proposta por Mann – ao invés da narrativa de ritmo frenético, prevalecem cenas marcadas por uma tensão discreta que desembocam em econômicas e vigorosas sequencias de ação. A metade final de Hacker é onde a narrativa entra em definitivo ponto de bala, com Mann extraindo uma fina síntese de suspense cool e violência gráfica, com absoluto destaque para toda a climática sequência de Nicholas enfrentando seus antagonistas a base de porrada, tiros, facadas e sagacidade numa procissão religiosa em Jacarta. Tais momentos, junto à sequência da ópera em Missão Impossível: Nação secreta e a todo Mad Max: A estrada da fúria, representam um dos grandes destaques do cinema de ação de 2015.

quarta-feira, novembro 11, 2015

Dheepan - O refúgio, de Jacques Audiard ***1/2

O diretor francês Jacques Audiard teve uma interessante sacada narrativa em “Dheepan – O refúgio” (2015) ao formatar o filme dentro de uma estrutura clássica do gênero faroeste. É só observar os pontos chaves da trama. A migração do Sri Lanka para a França do ex-guerrilheiro Dheepan (Antonythasan Jesuthasan), da jovem Yalini (Kalieaswari Srinivasan) e da pequena Illayaal (Claudine Vinasithamby), estranhos entre si e que fingem ser uma família, fugindo de um cotidiano de guerra constante e privações em busca de estabilidade econômica e social traz clara relação com os pioneiros que séculos atrás desbravaram o selvagem oeste norte-americano em busca de uma vida melhor; a rotina conturbada da “família” em um condomínio popular francês dominado por traficantes remete ao dia-a-dia daqueles que conviviam com pistoleiros e assaltantes de bancos e diligências no velho oeste; o dilema existencial de Dheepan entre a recusa a assumir sua antiga condição de homem violento e homicida e a necessidade de preservar sua integridade física e daqueles que o cercam é o mesmo de anti-heróis antológicos como o William Munny da obra-prima “Os imperdoáveis” (1992). Por fim, a memorável e brutal sequência em que o protagonista invade sozinho um prédio repleto de marginais para resgatar Yalini é o correspondente das habituais cenas finais de duelos entre mocinhos e bandidos. Também é mérito de Audiard conseguir enquadrar de maneira orgânica e convincente essa espécie de faroeste contemporâneo dentro de uma perspectiva típica de um drama que varia de forma notável entre o social e o intimista. Nesse sentido, o caráter humanista de “Dheepan” é bastante acentuado na sua profunda e sensível caracterização psicológica de personagens e situações, qualidade essa que Audiard já tinha mostrado domínio em obras contundentes como “De tanto bater meu coração parou” (2005) e “O profeta” (2009) – essa última, por sinal, uma singular recriação do gênero “policial/gangster”.

terça-feira, novembro 10, 2015

Straight Outta Compton - A história do N.W.A., de F. Gary Gray ***

O fato de Dr. Dre e Ice Cube, membros originais do N.W.A., serem produtores da cinebiografia do lendário grupo de rap, “Straight Outta Comtpon – A história do N.W.A.” (2015), acaba não passando o incólume. Por vários momentos, a produção parece ter um caráter institucional ou de marketing pessoal dos artistas focados. Os quinze minutos finais do filme são bem emblemáticos dessa tendência de propaganda autocelebratória. E é justamente aí que reside as sequências mais fracas da obra dirigida por F. Gary Gray, ficando visível um artificialismo incômodo na narrativa. Por outro lado, existem outros motivos que fazem com que se entenda porque “Straight Outta Compton” tenha gerado tanta empatia com uma expressiva parcela do público. Para começar, as cenas envolvendo ensaios, gravações em estúdio e shows são empolgantes na forma com que conjugam a música impactante do N.W.A. com uma encenação precisa e icônica. É de se destacar ainda que Gray é um diretor competente para cenas de ação, o que fica evidente na tensa sequência de abertura do filme, além dos momentos que retratam o cotidiano dos personagens principais com repressão policial e envolvimento com criminalidade. E falando nessa questão da brutalidade da polícia, aí reside também um dos grandes méritos da produção, que transparece uma raiva sincera e contundente por parte da população negra nos Estados Unidos diante de uma conjuntura de sistemático desrespeito com direitos humanos por parte de órgãos de segurança do Estado e preconceitos raciais diversos a gerar situações humilhantes e vexatórias. O roteiro não abre concessões e nem soluções conciliatórias e paternalistas em sua visão de mundo: todos os personagens brancos são vistos como racistas e exploradores, enquanto que o teor desbocado e revoltado das letras do N.W.A. é a consequência natural e justa contra a hipocrisia e preconceito social da sociedade norte-americana. Discordando ou não de tal ótica, é inegável que ela é ousada e desafiadora perante um status quo tão alienado e conformista.

segunda-feira, novembro 09, 2015

Minha irmã, de Ursula Meyer ***

Diferente do seu filme anterior, “Home” (2008), obra que por vezes enveredava por uma abordagem que beirava o delirante, em “Minha irmã” (2012) a diretora Ursula Meyer optou por uma vertente cinematográfica bem definida, o realismo social. Dentro desse gênero, a cineasta pouco ousa em termos formais e temáticos – estão lá todos os preceitos inerentes a tal estilo (a narrativa seca, a encenação naturalista, a discreta trilha sonora que sublinha sutilmente algumas cenas, a temática a combinar o olhar intimista e uma trama a expor as mazelas econômicas e comportamentais da sociedade ocidental capitalista). Se por um lado a produção em questão não traz nada de novo em sua estética, por outro é inegável que Meyer enlaça os referidos elementos do gênero com convicção e coerência. A caracterização de situações e personagens é marcada pela crueza e pela complexidade psicológica, dispensando sentimentalismos fáceis e soluções escapistas. Por várias vezes a dupla de protagonistas Louise (Léa Seydoux) e Simon (Kacey Klein) é irritante em suas atitudes imaturas e conturbadas, mas é justamente por isso que ambos parecem críveis e perturbadores. A dureza existencial e artística com que Meyer conduz a narrativa não afasta o forte pendor humanista de “Minha irmã”. Pelo contrário: apenas ainda mais enfatiza o impacto emocional do filme. A contundente conclusão do filme sintetiza com perfeição essa visão de mundo, ao juntar de forma precisa o formalismo sem concessões de Meyer com um olhar amoroso sobre a relação entre dois personagens principais.

sexta-feira, novembro 06, 2015

Obra, de Gregório Graziasi **

No histórico pessoal do diretor Gregório Graziasi, consta que por um tempo ele foi estudante de arquitetura. Em seu primeiro longa-metragem, “Obra” (2013), tal referência não passa despercebida. O protagonista da trama, João Carlos (Irandhir Santos), é um arquiteto, enquanto o cerne da concepção formal do filme se baseia na direção de fotografia que valoriza bastante os cenários urbanos de prédios e asfaltos da cidade de São Paulo. Os enquadramentos compõem um ambientação ambígua, que oscila entre o requinte plástico de formas e texturas e o sufocamento do concreto duro e frio típico da capital paulista. A intenção de Graziasi é clara – estabelecer um paralelo entre essa arquitetura caótica, mista de beleza melancólica e feiura opressiva, com o estado de angústia existencial do personagem principal. A trama, formatada dentro de uma estrutura narrativa ligada ao gênero suspense, ao poucos se expande para uma conotação mais simbólica, a retratar principalmente a desigualdade social e o conflito de classes típicos da sociedade brasileira contemporânea. Se as intenções artísticas de Graziasi são ambiciosas e ousadas, por outro lado a execução de suas concepções deixa bastante a desejar. É inegável que a produção apresenta um esmero estético, mas isso não consegue se vincular a uma narrativa envolvente. A encenação é engessada, sem frescor ou naturalidade, e mesmo as pretensas metáforas do roteiro se efetivam de forma primária e artificial. A falta de traquejo narrativo em “Obra” compromete até mesmo as atuações do elenco, onde mesmo a intepretação de um ator diferenciado como Irandhir Santos se mostra afetada e pouco convincente.

quinta-feira, novembro 05, 2015

Sicario, de Denis Villeneuve ***

O canadense Denis Villeneuve é um cineasta que mostra geralmente em seus filmes boa mão para cenas de ação e para construir narrativas fluentes. O que incomoda em filmes como “Incêndios” (2010) e “Os suspeitos” (2013), entretanto, é o tom solene da ambientação e a queda para os clichês mais baratos do suspense e do melodrama, fazendo com que por vezes se tenha a impressão de se estar assistindo a um grande novelão. Em sua produção mais recente, “Sicario” (2015), não dá para dizer que ele tenha se livrado de forma plena de tais vícios, mas ainda assim entrega um trabalho bem mais satisfatório e memorável. Para que isso tenha acontecido, contou com dois grandes trunfos: a exuberante fotografia de Roger Deakins (indispensável assistir “Sicario” numa sala de cinema para fruir das nuances sensacionais de enquadramentos e iluminação) e a sinistra trilha sonora composta pelo islandês Jóhann Jóhansson. Além disso, a encenação concebida por Villeneuve se mostra ainda mais elaborada e dinâmica que o habitual. Por mais que o roteiro seja previsível em seu desenvolvimento, o requinte formal do filme consegue extrair momentos de tensão bem convincentes. O que impede “Sicario” de atingir um nível artístico mais transcendente é o fato de Villeneuve continuar se levando mais a sério do que merece. Com alguma constância, surgem sequencias que assumem um caráter messiânico a anunciar a corrupção e prepotência de agências de segurança do governo como se estivessem expressando uma grande novidade, o que acaba soando um pouco ridículo diante de uma caracterização superficial e óbvia de situações e personagens – ainda que esses últimos sejam rasos na sua construção psicológica, há de se ressaltar as ótimas e carismáticas atuações de Josh Brolin e Benicio Del Toro. No mais, falta para “Sicário” o estofo criativo e as atmosferas de perturbadora sordidez de “Selvagens” (2012), filme que também retratava os violentos grupos mexicanos de tráfico de drogas, e mesmo aquele vigor casca grossa de “Miami Vice” (2006) para que entre no rol dos policiais contemporâneos antológicos. Mas do jeito que ficou, ainda é um prato cheio para os curtidores do gênero.

quarta-feira, novembro 04, 2015

45 anos, de Andrew Haigh ***

Há uma impressão de letargia que pontua boa parte da duração de “45 anos” (2015). A direção de Andrew Haigh é bastante austera na sua concepção narrativa – assim como não há grandes arroubos criativos em termos estéticos, também é perceptível que o cineasta não se deixa levar por truques sentimentais para facilitar a vida do espectador. Mesmo a trama é marcada por uma conotação modorrenta, em que os fatos da história contada se sucedem de forma lenta e com variações sutis. Os motes principais do roteiro se desenvolvem em alguns poucos dias da semana em que ocorrerá a festa de 45 anos de casado casal protagonista Geoff e Kate Mercer (Tom Courtenay e Charlotte Rampling em atuações precisas), obedecendo a uma lógica de repetições de atos do cotidiano e de um certo imobilismo existencial por parte dos personagens principais que por vezes pode levar a uma sensação de tédio sonolento para quem assiste ao filme. O que pode parecer um formalismo irritante aos poucos vai revelando uma coerência sensorial notável. Por trás da atmosfera taciturna e da interação entre os indivíduos baseados em olhares e gestos expressivos e diálogos superficiais há uma espécie de discreta revolução intimista a dissecar a ilusão de felicidade pequeno burguesa. As irônicas e ácidas sequências finais de “45 anos” reafirmam o seu caráter levemente subversivo, tanto no discurso hipócrita e no passos de dança debochados de Geoff quanto na expressão de amargura e frustração de Kate.

terça-feira, novembro 03, 2015

Ponte dos espiões, de Steven Spielberg **1/2

Toda a sequência inicial de “Ponte dos espiões” (2015), obra mais recente de Steven Spielberg, que envolve a perseguição e captura do espião soviético Rudolf Abel (Mark Rylance), parece uma antítese do que se verá no restante do filme: é tensa, seca, praticamente não recorre a trilha sonora, valorizando o bem executado jogo de montagem precisa, virtuosos movimentos de câmera e enquadramentos expressivos, fazendo lembrar, inclusive, “Munique” (2005), uma das melhores produções dirigidas pelo próprio Spielberg. Não que na maior parte da duração de “Ponte dos espiões” não dê para perceber o preciosismo técnico habitual do cineasta. Muito pelo contrário. O formalismo do filme é responsável pelo que há de melhor nele, em sua capacidade de seduzir a plateia pela sua plasticidade e mesmo por uma narrativa acessível. O problema, entretanto, é que tirando os aludidos primeiros momentos, raramente essa estética consegue fazer a produção transcender. Spielberg se deixar levar por alguns clichês narrativos preguiçosos, fazendo com que poucas vezes se consiga sentir uma atmosfera de tensão mais palpável. A caracterização dos personagens trafega entre o caricato e o superficial (até o tal espião soviético mais parece um velhinho simpático e injustiçado do que um espião perigoso), a ambientação e direção de arte são marcadas por uma assepsia visual e o complexo jogo de interesses políticos que marca a trama acaba se reduzindo a maniqueísmos e edificantes lições de vida. É claro que boa parte desses maneirismos temáticos e formais é inerente no estilo de Spielberg, mas a diferença é que em outros trabalhos mais consistentes eles conseguiam se adequar de forma mais convincente e orgânica. Do jeitos que ficaram em “Ponte dos espiões”, tais maneirismos apenas dão a impressão de um artista acima da média que se acomodou em concepções artísticas mofadas.

quinta-feira, outubro 29, 2015

Numa escola de Havana, de Ernesto Daranas **1/2

No atual contexto sócio-político tanto nacional quanto internacional, a produção cubana “Numa escola de Havana” (2014) ganha uma perspectiva humanista diferenciada a partir da visão de mundo que o diretor Ernesto Daranas deixa clara na trama do filme. Dentro de uma conjuntura em que setores conservadores da sociedade civil, políticos oportunistas e religiosos fundamentalistas clamam pela redução da maioridade penal e o aumento no rigor de aplicação de penas para jovens infratores, a obra de Daranas expõe um olhar tolerante e complexo sobre a infância e a adolescência inserida num cotidiano de pobreza e privações diversas. O roteiro não expõe soluções fáceis para o destino do jovem protagonista Chala (Armando Valdes Freire) e nem caracteriza o personagem através de estereótipos e idealizações – Chala por diversos momentos é francamente desagradável e teimoso em seu comportamento. Essa dureza na concepção do personagem e de algumas situações é necessária justamente para realçar a importância de uma abordagem mais humana e racional na condução da questões envolvendo menores em condição de vulnerabilidade social e econômica. Nesse sentido, a figura da veterana professora Carmela (Alina Rodrigues) ganha uma conotação simbólica nas suas atitudes de enfrentamento contra a insensibilidade e o caráter obtuso da burocracia educacional. Mas se nesse âmbito temático “Numa escola de Havana” se revela contundente, em termos formais não vai muito além dentro da estrutura clássica de melodrama. A encenação concebida por Daranas é apenas correta, chegando por vezes à beira do enfadonho. A narrativa evoca algo do clássico “Os incompreendidos” (1959), obra emblemática a retratar uma juventude conturbada e rebelde. É óbvio, entretanto, que Daranas está longe de ter a classe e inventividade estéticas de um Truffaut.