quarta-feira, maio 20, 2015

Conversas com meu jardineiro, de Jean Becker ***

Na teoria, pelo menos em termos daquilo que um resumo da trama e mesmo da estrutura narrativa pode fazer supor, “Conversas com meu jardineiro” (2007) seria uma daquelas produções rotineiras e esquecíveis de abordagem edificante e previsível que as velhinhas que vão ao Guion tanto gostam de apreciar. Olha só o que seria a trama: um pintor endinheirado (Daniel Auteil) voltar a residir na casa de campo em que passou boa parte da infância e adolescência, reencontra um velho amigo de escola (Jean-Pierre Darroussin) que se torna seu jardineiro, esse último passa a dar conselhos e ensinamentos de como o seu chefe/amigo deve aproveitar melhor as coisas simples e belas da vida e na conclusão o tal jardineiro acaba morrendo de câncer, deixando uma lição de vida para o pintor. Apesar desse aparente acúmulo de clichês e golpes emocionais, o resultado final desse filme francês é bem mais interessante do que aquilo que é um cético espectador poderia esperar. Para começar, o diretor Jean Becker tem um forte trunfo ao contar com Auteil e Darroussin nos papéis principais, pois ambos mostram sutis composições dramáticas despidas de excessos, fazendo com que os protagonistas não pareçam caricaturas ou estereótipos. Becker também acerta na sua concepção formal de narrativa, com uma direção de fotografia que valoriza os belos cenários campestres, além do cineasta preservar uma abordagem emocional marcada pela elegância e discrição (é só reparar, por exemplo, que nos momentos mais climáticos não há uma música melosa a sublinhar tais cenas). Ou seja, no final das contas, “Conversas com meu jardineiro” não traz grandes arroubos criativos, mas pelo menos mostrar que um melodrama tradicional ainda pode ser feito de maneira digna em termos sensoriais e intelectuais.

terça-feira, maio 19, 2015

Mad Max: A estrada da fúria, de George Miller ****

Assistir à “Mad Max: A estrada da fúria” (2015) leva a uma inevitável questão: “O que aconteceu com os filmes de ação?”. Isso porque os vários momentos epifânicos dessa aventura mais recente do clássico personagem criado por George Miller mostram como um filme de aventura pode ser tão catártico. E não se trata de mera reciclagem ou nostalgia oitentista. O que Miller faz é enquadrar o seu característico de filmar e editar tão bem azeitado nas outras produções da série dentro da atual estrutura tecnológica de trucagens, sem que com isso despersonalize suas concepções particulares. E o resultado é estrondoso em termos sensoriais, de cair o queixo mesmo. Ao contrário do “visionário” Zack Snyder e derivados, Miller não se esconde atrás de truques baratos para camuflar incompetência de concepções formais equivocadas. Sua encenação é dinâmica, por vezes até delirante, mas sempre preservando clareza e detalhismo visuais impressionantes. Além disso, a atmosfera sórdida e suja de um cenário distópico de pós-apocalipse é mais do que convincente – é efetivamente perturbadora e quase palpável pelo fenomenal trabalho de direção de arte. O roteiro é exemplar na caracterização de situações e personagens, dando-lhes tanto real densidade dramática quanto uma bem vinda carga de ironia perversa. A trama carrega um teor simbólico extraordinário, através de uma visão ácida sobre a relação entre religião e opressão política e ainda por saber valorizar e preservar carga mítica que a forte figura de Max (Tom Hardy) representa. Diante de todos esses acertos de “Mad Max: A estrada da fúria”, dá até para dizer que o filme de Miller se torne paradigmático para o gênero ação, evidenciando como obras recentes como “Velozes e furiosos 7”, “Noite sem fim” e “Vingadores: A era de Ultron” podem ser tão frustrantes em suas concepções equivocadas.

segunda-feira, maio 18, 2015

A vida privada dos hipopótamos, de Maira Bühler e Matias Mariani ***

Mais do que simplesmente contar um fato real, o documentário “A vida privada dos hipopótamos” (2014) busca a discussão do próprio método do gênero cinematográfico ao qual pertence. Não que a temática abordada não seja interessante – a história do técnico em informática norte-americano Christopher Kirk que vai para a Colômbia conhecer os hipopótamos africanos comprados por Pablo Escobar, apaixona-se por uma exótica e bela nativa, depois se transforma em traficante internacional e acaba preso e condenado em São Paulo traz uma dimensão humana e simbólica fascinante em suas nuances dramáticas. A jornada pessoal do Kirk traz o subtexto marcante do indivíduo originário de um país organizado e racional do primeiro mundo que cai na gandaia sensual e caótica de uma capital terceiro-mundista e termina tragado num vórtice de prazer e culpa. A boa sacada estética dos diretores Maíra Bühler e Matias Mariani é enquadrar a saga intimista de seu protagonista dentro de uma concepção formal caseira, dando a impressão de que o filme emula um diário audiovisual de Kirk. Assim, ferramentas como textos de mails, filmagens de celulares e depoimentos via skype se integram de forma natural com técnicas tradicionais documentais, configurando uma narrativa densa e envolvente no seu misto de dramaticidade e ironia. Por vezes essa desconstrução dos mecanismos típicos do gênero soa excessiva, principalmente quando os próprios cineastas se inserem na narrativa como personagens (esse tipo de recurso, para soar orgânico e não forçado, exige um grau de mestria e sagacidade que só um diretor brilhante e experiente como Eduardo Coutinho, por exemplo, tem a manha de colocar em prática). Ainda sim, “A vida privada dos hipopótamos” é uma obra acima da média em relação à boa parte do que tem aparecido nos documentários nacionais recentes.

quinta-feira, maio 14, 2015

Noite sem fim, de Jaume Collet-Serra **


Até dá para sentir que o diretor Jaume Collet-Serra procura dar um toque autoral em “Noite sem fim” (2015), recheando a narrativa com truques de edição, falsos planos-sequência e trucagens digitais. No contexto geral, entretanto, tais floreios estéticos acabam soando supérfluos e mesmo contraproducentes para o filme. Faltou à obra uma construção de atmosfera de tensão mais consistente e uma encenação de concepção menos óbvia para que a produção tivesse uma efetiva densidade dramática que cativasse a plateia. Por mais que o roteiro delineie uma história que deveria se mostrar sufocante para os seus principais personagens, a verdade é que as resoluções para os dilemas da trama são banais e fáceis demais. Quando o protagonista Jimmy Conlon (Liam Neeson) decide se livrar de vez do antagonista Shaw Maguire (Ed Harris) e seu bando, por exemplo, faz isso com uma facilidade constrangedora, como se ele fosse um super-homem antes adormecido. Collet-Serra parte de um conceito equivocado para realizar uma obra do gênero policial: que para realizar esse tipo de filme, basta atrolhar a trama de perseguições automobilísticas épicas e de tiroteios sem fim. O resultado dessas escolhas do cineasta resulta em pura irrelevância. Trabalhos recentes e extraordinários dentro do mesmo gênero como “Tudo por justiça” (2013) e “O ano mais violento” (2015) dispensam esse tom frenético e apostam em formalismo contido, ambientação sóbria e roteiro mais complexo, e acabam se mostrando muito mais eficientes e memoráveis.

quarta-feira, maio 13, 2015

Honeydripper - Do blues ao rock, de John Sayles ***


O título complementar em português que colocaram em “Honeydripper – Do blues ao rock” (2007) é pouco sutil, mas também é bem esclarecedor das intenções do diretor John Sayles. Em meio a uma trama situada no interior do sul do Estados Unidos na década de 50 envolvendo episódios de exploração e racismo, o filme mostra de forma simbólica e emblemática o momento em que o blues começou a se formatar em um novo estilo que desembocaria no rock and roll. Ainda que o roteiro tenha mais um fio de história que serve de pretexto para a parte musical da obra, Sayles conduz a sua narrativa de forma eficiente, sabendo construir uma atmosfera envolvente dentro de microverso de situações e personagens que refletem o conturbado momento histórico norte-americano da época. Apesar do tom de crítica social da obra, não há um aprofundamento existencial sobre os fatos. Para Sayles, interessa mais saber como esse contexto ajudou a fomentar um gênero musical marcado pelo inconformismo e selvageria. E nesse sentido, “Honeydripper” tem seus momentos mais memoráveis quando a música se torna a principal personagem, variando de uma ambientação que beira o solene e o misterioso quando o blues é o protagonista até uma atmosfera de fúria e devassidão quando o rock primitivo se configura em cena. Apesar da encenação de Sayles pender para o naturalismo, o verdadeiro encanto da produção está na caracterização mítica e mesmo amorosa de uma época em que a música refletiu os dilemas e o imaginário de boa parte de uma nação.

terça-feira, maio 12, 2015

Vingadores: A era de Ultron, de Joss Whedon **1/2


Para um velho admirador de quadrinhos de super-heróis, caso deste que vos escreve, ver um filme como “Vingadores: A era de Ultron” (2015) traz uma carga de simpatia imediata. Aquela seqüência inicial do ataque dos heróis à base da Hidra e também as cenas do brutal e exagerado quebra-pau entre o Homem de Ferro e o Hulk representam a materialização de um antigo sonho de assistir na tela grande com recursos decentes e competência formal uma típica trama de HQs da Marvel. E também não deixa de ser comovente ver o cuidado com que os estúdios da Marvel têm se preocupado em manter a coerência e a interação entre os filmes dentro de um mesmo universo. Dito isso, vamos para o outro lado da moeda: esse novo capítulo para os cinemas das aventuras dos Vingadores deixa a desejar como espetáculo cinematográfico, estando bem abaixo em relação à primeira parte da série. A longuíssima duração da produção deixa evidente alguns dos seus principais defeitos, a começar pelo excesso de momentos intimistas que são pueris em seus dilemas dramáticos e superficiais e apressados nas suas resoluções. A noção de sutileza do diretor Joss Whedon em tais momentos beira o inexistente – e dá-lhe música melosa e atores fazendo expressões estilo cachorrinho pidão na legítima escola Malu Mader de atuar. Aliás, dar um papel tão importante quanto o da Feiticeira Escarlate para a careteira e canastrona Elisabeth Olsen acaba sendo até comprometedor. Quaisquer cenas envolvendo o romance entre o Bruce Banner/Hulk (Mark Ruffalo) e Viúva Negra (Scarlett Johansson) ou a reclusão dos heróis para lamber as feridas emocionais naquela localidade bucólica têm potencial dramático nulo e somente servem para emperrar o ritmo narrativo. E mesmo em algumas tomadas de pancadarias e batalhas épicas a encenação é prejudicada por uma composição de cena um tanto primária. O roteiro também apresenta problemas na caracterização de personagens e situações: Ultron é um vilão que não traz aquela carga de ameaça e violência inerente à figura original dos quadrinhos, enquanto a morte de Mercúrio (Aaron Taylor-Johnson) se mostra um recurso oportunista e ridículo (afinal, como o homem mais rápido do mundo pode morrer de forma tão óbvia e banal?). Mesmo com os equívocos apontados, é claro que “Vingadores: A era de Ultron” está bem longe de ser um filme ruim, pois, por vezes, consegue ser bem divertido quando investe em trucagens e porradarias apoteóticas. É fato também, entretanto, que alto nível de outras produções da Marvel (“Guardiões da Galáxia”, as duas partes de “Capitão América”, o primeiro “Vingadores”) e o respeitável currículo artístico de Whedon faziam esperar um resultado final bem mais satisfatório.

segunda-feira, maio 11, 2015

Dólares de areia, de Israel Cárdenas e Laura Amelia Guzmán **1/2


Ao mostrar em sua trama o conturbado romance entre uma européia idosa (Geraldine Chaplin) em longas férias na República Dominicana com uma jovem prostituta nativa, a produção “Dólares de areia” (2014) revolve velhos dilemas existenciais e artísticos já visitados em outras obras cinematográficas ou mesmo literárias – a da relação conflituosa entre a decadência física da velhice e o vigor imaturo da juventude, e, por tabela, do misto de cerebralismo e romantismo melancólico típicos do Velho Mundo e a misteriosa e difusa sensualidade e a moralidade dúbia inerentea às “colônias”. A atemporalidade dessa temática não encontra um tratamento formal à altura no filme dos diretores Israel e Laura Amelia Guzmán. Ainda que por vezes surja algum rasgo estético interessante, o que predomina é uma narrativa previsível e sem maiores arroubos criativos. Claro que é de se admirar uma certa atmosfera de sobriedade e distanciamento emocional que permeia a obra em questão. Nada, entretanto, que cative o público de forma mais efetiva. No final das contas, o grande trunfo de “Dólares de areia” é contar no elenco com Geraldine Chaplin: atriz de recursos dramáticos expressivos, ela faz com que até mesmo cada ruga de velhice de suas feições ganhe uma conotação simbólica bastante forte ao denotar angústia e frustração. Sua elegante atuação oferece uma centelha de transcendência artística para o filme.

sexta-feira, maio 08, 2015

Dragões da violência, de Samuel Fuller ****


Uma característica forte no trabalho do diretor norte-americano Samuel Fuller era o fato dele conseguir deixar evidente a sua marca autoral em produções bancadas por grandes estúdios. Ou seja, dentro de uma estrutura narrativa tipicamente convencional ele inseria elementos formais e temáticos ousados e criativos. “Dragões da violência” (1957) é um filme bem emblemático dessa tendência do cineasta. Na superfície, é um faroeste tradicional em boa parte dos seus detalhes: divisão entre homens da lei e bandidos, duelos e tiroteios, cidadezinha poeirenta, temas musicais de tons épicos. São nas nuances, entretanto, que Fuller se diferencia. Na trama que se constrói, aos poucos se começa a perceber que os limites entre o bem e o mal ficam cada vez mais tênues, fazendo com que aquele maniqueísmo tradicional do gênero fique nebuloso. Na realidade, a obra amplia o alcance de sua visão moral, no sentido de abordar a corrupção inerente a uma sociedade que ainda está se formatando. Dentro de tal concepção, Fuller vai ainda mais além, fazendo com que “Dragões da violência” tenha um tom crepuscular, antecipando até alguns conceitos nos quais Sam Peckinpah e Sergio Leone se aprofundaram nos anos seguintes. No filme de Fuller, capta-se de forma sutil justamente o começo da transição do momento de um oeste marcado pela lei do mais forte para um novo tempo em que o Estado de Direito se torna efetivamente o elemento de consolidação de uma civilização. Para marcar esse subtexto mais sofisticado, Fuller concebe uma estética vigorosa, baseada tanto numa encenação repleta de achados visuais extraordinários quanto na montagem que combina com precisão classicismo e cortes frenéticos.

quinta-feira, maio 07, 2015

O olhar invisível, de Diego Lerman **


A premissa básica da trama da produção argentina “O olhar invisível” (2010) é simples, mas interessante em seus elementos: dentro de um microcosmo ambientado em uma escola de classe média alta, no início da década de 80, o roteiro procura fazer uma análise social e existencial sobre o clima de repressão moral e política característica da ditadura no país naquela época. Tal concepção de narrativa não chega a ser propriamente uma novidade – é só lembrar o arrasador “Cria cuervos” (1976), obra-prima em que o diretor Carlos Saura fazia um agudo retrato do ocaso da ditadura franquista pela visão metafórica de uma família se desintegrando. Mas fazer essa referência a essa produção espanhola chega a ser covardia, pois o cineasta Diego Lerman está muito distante de ter a classe e sensibilidade de Saura. O trabalho do diretor argentino até simula alguma elegância formal nos seus grandes planos e na edição de poucos cortes, com a encenação de Lerman valorizando silêncios e pequenos gestos de seus personagens. Essa sutileza estética, entretanto, é ilusória. Tudo que acontece em cena se desenvolve de forma mecânica e sem inspiração, pois Lerman parece confundir sobriedade narrativa com um estilo monótono de filmar e editar seu material dramático. Falta uma efetiva atmosfera de tensão e mesmo um senso imagético mais apurado para que o filme consiga alguma transcendência artística. Nesse contexto, aquela que era para ser a seqüência clímax de “O olhar invisível”, o momento em que a professora protagonista é estuprada por seu diretor, acaba ganhando apenas uma dimensão grosseira que beira o cômico. O dilema cinematográfico que determina que a obra de Lerman seja tão irrelevante se concentra num princípio básico: no gênero do cinema político, não basta que o assunto seja sobre política – a própria forma tem de ser política no sentido de ser contundente e incômoda para o espectador. Do jeito que ficou, “O olhar invisível” está mais para um melodrama convencional que por acaso se passa num período político conturbado.

quarta-feira, maio 06, 2015

A história da eternidade, de Camilo Cavalcante **


O que caracteriza o cinema pernambucano como aquele mais criativo do atual panorama nacional é uma abordagem visceral tanto em termos formais quanto temáticos, em que os diretores buscam muito mais o impacto sensorial do que uma adequação a padrões de bom gosto estético, vide obras memoráveis como “A febre do rato” (2011), “O som ao redor” (2012), “Tatuagem” (2013) e “Amor, plástico e barulho” (2013). O que se pode perceber em “A história da eternidade” (2014) é quase que o oposto de tal direcionamento artístico. O diretor Camilo Cavalcante usa como base de sua obra uma plasticidade requintada e uma atmosfera de tons solenes. Fica-se com a impressão constante de que se está assistindo a uma transposição de uma típica tragédia grega para os confins do sertão nordestino. Mesmo as interpretações do elenco evocam uma certa empostação em diálogos, expressões e gestos, além dos densos temas da trilha sonora reforçarem aquela aura de seriedade e mesmo de opulência barroca. Ao contrário de seus colegas conterrâneos, Cavalcante parece procurar legitimidade autoral ao aderir a esses classicismos acadêmicos. Tais soluções narrativas por vezes até trazem um certo encanto imagético para o filme, mas também tiram muito do seu vigor narrativo. A produção se escora demais em simbolismos e dilemas muito manjados, sem realmente tirar algo de efetivamente envolvente e espontâneo de tais recursos. A forma com que o roteiro lida com temas tabus e controversos como incesto, violência, culpa e repressão religiosa é marcada pela assepsia e mesmo um moralismo enviesado. Se tal direcionamento artístico de Cavalcante leva “A história da eternidade” para caminhos de maior aceitação para o público médio, também é verdade, entretanto, que o torna uma experiência cinematográfica pouco memorável.

terça-feira, maio 05, 2015

O Gebo e a Sombra, de Manoel de Oliveira ***


Os detratores do cineasta português Manoel de Oliveira, recentemente falecido, podem dizer o que quiserem dos seus filmes, mas pelo menos uma coisa eles terão de reconhecer: pode-se perceber em grande parte de sua obra um traço autoral muito particular, como se todas essas produções habitassem um universo à parte daquilo que tem aparecido nos cinemas nos últimos tempos. “O Gebo e a Sombra” (2012), seu derradeiro trabalho, pode não ser a sua obra-prima, mas tem o inegável mérito de ser uma eficiente síntese de suas obsessões formais e temáticas. A narrativa se configura dentro de uma encruzilhada em que se batem elementos de literatura e cinema. Esse choque faz com que a linguagem estética adquira um estranho caráter mestiço. Oliveira abdica do naturalismo, mas isso não quer dizer que a trama habite um plano delirante ou onírico. Sua encenação seca e precisa enfatiza a beleza rigorosa do texto literário que serviu de base ao filme, sem deixar também de valorizar a encanto de uma composição visual detalhista e estilizada. As interpretações do elenco se mostram em sintonia com as concepções artísticas do cineasta, num misto de declamações que beiram o poético e de um desconcertante distanciamento emocional. Os métodos de Oliveira de filmar e editar são radicais na idealização e execução, exigindo do espectador uma forte abstração para poder penetrar nessa dimensão sensorial diferenciada. O resultado, por vezes, é recompensador para quem se dispor a embarcar nessa viagem audiovisual típica do diretor luso.

segunda-feira, maio 04, 2015

Vício inerente, de Paul Thomas Anderson ****


O fluxo narrativo de “Vício inerente” (2014) obedece a uma lógica particular – é como se o espectador visse tudo o que está ocorrendo em cena pela perspectiva chapada de maconha do protagonista Larry “Doc” (Joachim Phoenix em mais um desempenho sensacional). Não significa necessariamente, entretanto, que se trata de um olhar delirante. É mais como se o formalismo do filme se guiasse pela percepção alterada do personagem. Diante de tal concepção estética, mesmo o fato da produção se originar de uma obra literária ganha uma dimensão diferenciada. A narração over de uma das personagens, por exemplo, poderia soar como um artifício redundante e previsível, mas dentro do universo audiovisual criado pelo diretor Paul Thomas Anderson acaba adquirindo uma perspectiva insólita e brilhante, fazendo com que a narrativa ganhe um sarcástico tom fabular. Outros truques formais e temáticos do cineasta têm grau de eficiência e criatividade semelhantes: a caracterização de situações e personagens por vezes corresponde a um ideário típico de um imaginário “hipponga”, os temas incidentais e as canções que compõem a trilha sonora se inserem como se estivessem numa rádio que oscila de volume e frequência, as resoluções da trama e a própria encenação se sucedem numa ambientação de casualidade e de forma anticlimática, as atuações do elenco variam entre a sutileza dramática e tom grotesco. Apesar de inicialmente o roteiro se filiar ao gênero policial/suspense, não prevalece uma atmosfera de tensão, mas de irônico distanciamento emocional. Essa queda por um discreto humor sardônico assim como a particular estética empregada por Anderson revelam com sutileza a verdadeira natureza existencial e artística de “Vício inerente”: a de um comentário amargo sobre o fim de uma utopia e a sua assimilação como mais um produto por uma sociedade em que o lucro nunca pode cessar.