sexta-feira, setembro 13, 2019

No coração do mundo, de Gabriel e Maurílio Martins ***1/2


Em um primeiro momento, a narrativa de “No coração do mundo” (2019) parece se configurar como uma sóbria junção de elementos de drama intimista e crônica social, com uma trama que mostra as insatisfações econômicas e existenciais de um grupo de personagens na periferia da cidade mineira de Contagem (o mesmo cenário, aliás, dos memoráveis “A vizinhança do tigre” e “Temporada”). O roteiro é bem delineado e aprofunda de maneira madura os desejos e dilemas de seus personagens, impressão essa que se acentua pela encenação que investe em um naturalismo de notável desenvoltura e que por vezes evoca trejeitos documentais. Nesse sentido, é de se valorizar também um ótimo trabalho de direção de elenco que valoriza tanto a espontaneidade amadora de alguns atores quanto a precisão dramática de uma artista poderosa como Grace Passô. De maneira sutil e coerente, entretanto, a narrativa vai se convertendo ainda em um tenso thriller policial. O tradicional formato “planejamento de um roubo perfeito” se insere com naturalidade na ambientação da trama e vai dando para o filme uma atmosfera cada vez mais sufocante. De certa forma, é como se a linhagem formal-temática do clássico cinema noir norte-americano e as trucagens estéticas de Michael Mann se incorporassem de maneira mais que convincente nesse contemporâneo cinema nacional de forte teor sócio-político. Essas escolhas criativas, situada naquela zona limite entre a tradição e a originalidade, se cristalizam de forma vigorosa no ato final de “No coração do mundo”, em uma bela síntese entre ação cinematográfica, tensão dramática e melancolia.

sábado, setembro 07, 2019

Vermelho sol, de Benjamin Naishtat ***1/2


O cineasta argentino vem construindo sua filmografia a partir de um olhar bastante singular dentro do gênero do cinema político. Se em “Bem perto de Buenos Aires” (2014) a narrativa partia de uma abordagem intimista para chegar em uma ácida visão sobre os conflitos de classe e em “O movimento” (2015) a aventura de época se convertia com sutileza demolidora no retrato de um atavismo da opressão social, na obra mais recente do diretor, “Vermelho sol” (2018), a estruturação de suspense traz em seu âmago uma recriação assustadora e impiedosa da Argentina de meados dos anos 70 prestes a ser tomada de vez por uma ditadura militar. A concepção formal/existencial de Naishtat para o seu filme é cirúrgica – a narrativa se constrói aos poucos de maneira sóbria, sem apelações. Nesse sentido, encenação e direção de fotografia compõem uma obra de atmosfera sufocante, em que a impressão perturbadora de uma força repressora a pairar sobre as relações humanas é constante. O roteiro de “Vermelho sol” também se distancia dos meros maniqueísmos fáceis, ao evidenciar que as ações totalitárias não partem simplesmente “de cima para baixo”, mas também são corroboradas por uma classe média hipócrita, obscurantista e arrivista, o que pode ser atestada na sinistra sequência de abertura do filme. Aliás, não muito diferente do que acontece na sociedade brasileira atual governada pela besta fera.

quinta-feira, setembro 05, 2019

O homem que matou Don Quixote, de Terry Gillian **


Todas as histórias e mitos que envolveram a conturbada realização da particular visão do diretor Terry Gillian sobre o personagem mais célebre da literatura ocidental estiveram por décadas nos imaginários não só dos admiradores do cineasta em questão como dos cinéfilos em geral – algumas delas, inclusive, acaram rendendo o extraordinário documentário “Lost in La Mancha” (2002). Todos pensavam nas várias possibilidades criativas que a recriação da figura de Don Quixote poderia render nas mãos do artista que concebeu obras delirantes e antológicas como “Brazil – O filme” (1985), “O barão de Munchausen” (1988), “Os doze macacos” (1995) e “Medo e delírio em Las Vegas” (1998). Pois agora que finalmente a produção tão desejada por Gilian e um considerável público se concretizou, a pergunta que fica é: valeu a pena tanta espera e alarde? Diante do resultado final de “O homem que matou Don Quixote” (2018), a resposta é um frustrante não. Não chega a ser exatamente um filme ruim – é até pior que isso, pois a impressão constante durante boa parte da narrativa é de um trabalho anódino, previsível, sem graça. Toda aquela lógica estética-temática marcada por uma ligação insólita entre o real e a fantasia que caracterizou boa parte do melhor da filmografia de Gillian se sujeita e diminui a um barroquismo estéril e a uma atmosfera de excessivo sentimentalismo. A impressão geral é a de releitura equivocada do clássico de Cervantes por um viés desajeitado de realismo fantástico típico de Garcia Marquez pela severa perspectiva anglo-saxã de Gillian (aliás, nem parece que se trata de um ex-Monty Python). Ou seja, Gillian realizou seu sonho, mas para boa parte da plateia é capaz que a lenda de uma possível obra-prima que nunca se concretizou por infortúnios do destino seja bem mais atraente.