sexta-feira, dezembro 30, 2016

O que está por vir, de Mia Hansen-Love ***1/2

O fato da protagonista de “O que está por vir” (2016) ser uma professora de filosofia se relaciona de maneira sutil com a própria estrutura narrativa da obra – a forma como a trama se desenvolve apresenta traços de um caráter didático, por vezes beirando uma síntese entre o esquemático e o dialético, na intenção de dissecar os meandros da vida pequeno-burguesa de Nathalie (Isabelle Huppert). Num primeiro momento, são expostas a contradição e a hipocrisia entre aquilo que é ensinado pela personagem e o seu cotidiano pessoal e profissional. No segundo momento, o foco está na dissolução dos pilares conservadores da vida de Nathalie para que ela possa entrar em sintonia com a natureza libertária do conhecimento ao qual se dedicou a estudar e propagar. Os truques do roteiro e sua simbologia podem até aparentar uma certa simplicidade na sua lógica, mas a grande força do filme está na encenação sóbria e repleta de nuances dramáticas e mesmo irônicas concebida pela diretora Mia Hansen-Love. Não há maiores concessões sentimentais na condução narrativa, com a cineasta se atendo a um formalismo de notáveis secura e objetividade, sem que isso, entretanto, sacrifique o aspecto emocional, que sempre irrompe com naturalidade e empatia. Colaboram ainda as contidas composições dramáticas do elenco, com óbvio destaque para Huppert, e a inteligência do roteiro que ressalta com sensibilidade a complexidade e a força desafiadora dos principais dilemas da trama.

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Belos sonhos, de Marco Bellocchio ****

A narrativa em “Belos sonhos” (2016) gira em torno de uma ideia de trama aparentemente até bem simples: a maneira como a precoce morte da mãe do protagonista Massimo (Valerio Mastandrea), quando ele ainda era criança, marcou o restante de sua vida. Só que com o velho mestre italiano Marco Bellocchio as coisas nunca são tão simples, com o cineasta convertendo tal história numa espécie de parábola moral de subtexto político-existencial fascinante. O fluxo temporal da trama corresponde a uma espécie de linha de memória marcada por traumas e esquecimentos. A sutil desconstrução da linearidade cronológica acentua a complexidade dos sentimentos e sensações que afloram com crueza e mesmo alguma ironia ao longo da narrativa. O passar dos anos para Massimo não corresponde exatamente a um amadurecimento do personagem, e nesse conceito perpassa uma síntese entre o sentimental e o intelectual a retratar tanto os aspectos intimistas quanto o caráter sócio-cultural do modelo do macho ocidental – nesse sentido, é brilhante a forma com que Bellocchio disseca na trajetória pessoal e profissional de Massimo seu envolvimento com o futebol, a política e o poder econômico, em que tais símbolos de masculinidade e prestígio social acabam não conseguindo esconder uma fragilidade inerente ao personagem. O registro estético para tal saga pessoal oscila com discrição entre a ambientação levemente estilizada do passado e a atmosfera de melodrama clássico do presente, em que as convenções do gênero são adulteradas com uma doce ironia perversa. Bellocchio “engana” com brilhante engenhosidade o espectador em seus truques formais-temáticos – em determinados momentos, ele insinua que a narrativa cairá em uma espécie de dramalhão novelesco edificante para logo depois revelar uma verve cáustica de encenação e texto. Dentro desse particular universo artístico, Bellocchio evidencia a sua indelével marca autoral e de lambuja faz um contundente e emotivo retrato psico-político da sociedade ocidental das últimas décadas.

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Sangue do meu sangue, de Marco Bellocchio ***1/2

O diretor italiano Marco Bellocchio mostra em “Sangue do meu sangue” (2015) que ainda é capaz de deixar as plateias desconcertadas. A trama do filme se situa em dois planos temporais, passado e presente, e faz uma reflexão intrincada sobre religião e poder. O viés estético e narrativo flutua dentro de uma estranha síntese que abarca drama de época, realismo fantástico e comicidade bufa, situando a obra numa encruzilhada artística-existencial difícil de precisar. Por vezes, o tratamento formal é tão insólito que faz tudo beirar o delirante. Bellocchio tem a sensibilidade de conciliar tais elementos diversos dentro de uma concepção rigorosa de filmar – ainda que a história se desenvolva por caminhos bastantes livres, em que ambientações solenes convivem de maneira natural com sensualidade à flor da pele, sempre dá para perceber a mão do cineasta dando um sentido personalíssimo para a narrativa. Dessa maneira, alguns truques melodramáticos de determinas cenas aos poucos são envenenados por uma atmosfera de puro absurdo, característica essa que é bem delimitada na figura de um chefão mafioso vampiro, que simboliza de maneira sardônica e melancólica uma certa concepção entre o irônico e o nostálgico de uma tradição secular decadente. Nesse bizarro jogo narrativo, não importa a existência de um final convencional que amarre todas as pontas da trama – para Bellocchio, importa mais traduzir em audiovisual um perturbador sentimento atávico que marca o imaginário coletivo de seu país.

terça-feira, dezembro 20, 2016

Sully - O herói do Rio Hudson, de Clint Eastwood ***

Uma expressiva parte da filmografia do diretor norte-americano Clint Eastwood é composta de obras baseadas em fatos reais que estabelecem uma espécie de inventário histórico e cultural dos Estados Unidos. Em tais produções, o foco do diretor não se limita apenas a encenar eventos “verdadeiros”, mas também a procurar traduzir uma série de conceitos e valores caros para o país como o patriotismo, a moral e heroísmo. O processo artístico de Eastwood na elaboração de tais trabalhos passa por uma abordagem formal sóbria e clássica e uma visão temática madura que enfatiza a complexidade psicológica do contexto histórico recriado. Dentro desse método, destacam-se produções brilhantes como “A conquista da honra” (2006) e “Sniper americano” (2015). Ainda que não tenha a mesma qualidade estética e textual dos filmes mencionados, “Sully – O herói do Rio Hudson” (2016) dá continuidade ao projeto artístico-histórico de Eastwood de maneira contundente. Ainda que se renda por vezes a alguns truques narrativos melodramáticos convencionais, o filme consegue oferecer uma interessante dimensão humanista para o insólito caso do comandante Sully (Tom Hanks), que em uma situação de emergência, em janeiro de 2009,  pousou um avião lotado em pleno Rio Hudson, em Nova Iorque, e que devido à sua perícia fez com que não houvesse nenhuma vítima fatal. De maneira sutil, prevalece na ambientação da trama um tom de ambiguidade – mesmo ressaltando momentos de exaltação da coragem do protagonista, a história se permite um certo clima de ressaca moral do cenário pós-crise econômica de 2008. Nesse sentido, a forma com que Eastwood conduz a narrativa e o teor sócio-político da trama evocam uma atualização do cinema de Frank Capra, em que até a atuação de Hanks emula alguns maneirismos típicos de James Stewart.

segunda-feira, dezembro 19, 2016

Maresia, de Marcos Guttman **1/2

Existem filmes que cativam mais pelos conceitos que procura trabalhar do que pelo seu resultado final propriamente dito. “Maresia” (2015) é um caso exemplar disso. Dá para perceber algumas nuances interessantes no roteiro, principalmente no que diz respeito a relação que se estabelece entre o especialista em arte Gaspar e o seu objeto de estudo, o pintor falecido Emilio Vega, ambos interpretados com forte intensidade por Júlio Andrade, em que os detalhes obscuros da vida de Vega parecem determinar os tormentos existenciais de Gaspar. Além disso, o filme apresenta uma direção de fotografia expressiva, que sabe valorizar tantos as belas paisagens do Rio de Janeiro quanto criar uma atmosfera sombria. Esses elementos promissores, entretanto, não conseguem se conciliar dentro de uma narrativa satisfatória. O roteiro se perde em viradas novelescas, além de seu subtexto ser esmiuçado sem maiores sutilezas. O tom contemplativo da abordagem do diretor Marcos Guttmann cai no enfadonho em algumas sequências, faltando para o filme uma mecânica narrativa mais ágil e contundente.

sexta-feira, dezembro 16, 2016

Elas me odeiam, mas me querem, de Spike Lee ***

Mesmo em um filme que não é dos mais expressivos de sua carreira, o diretor Spike Lee consegue deixar uma marca autoral indelével e capaz de suscitar alguns interessantes questionamentos artísticos e existenciais. Isso é o que fica evidente em “Elas me odeiam, mas me querem” (2004). A intenção do cineasta era fazer uma espécie de comédia farsesca a satirizar preconceitos raciais e valores comportamentais e sociais típicos da sociedade burguesa ocidental. O problema da obra, contudo, é que ela exigia uma abordagem mais ousada na construção de uma narrativa de tons libertários e de uma atmosfera que soubesse sintetizar erotismo e ácido sarcasmo. No geral, prevalece uma condução mais convencional de Lee, o que faz com que por vezes o filme caia no lugar comum. Ainda assim, o diretor consegue obter alguns bons momentos, principalmente por um notável virtuosismo na composição imagética de algumas cenas, no diferenciado trabalho de edição, na bela trilha sonora e em algumas passagens memoráveis do roteiro. Nesse último quesito, destaques para as sequências em que o protagonista Jack (Anthony Mackie) se torna um bem pago reprodutor para filhos de lésbicas, trazendo uma bem sacada combinação de ironia perversa e quente sensualidade (Spike Lee sempre teve ótima mão para filmar cenas de sexo).

quinta-feira, dezembro 15, 2016

Visões do passado, de Michael Petroni ***

O roteiro de “Visões do passado” (2015) está recheado dos clichês temáticos básicos dentro do gênero horror que sintetiza o sobrenatural e o psicológico: almas penadas, ambientação que junta o real e o metafísico no mesmo plano, segredos e traumas mal digeridos do passado. O diretor Michael Petroni tem a manha de saber conciliar tais traços óbvios da trama com uma narrativa enxuta, formalismo bem estruturado e atmosferas sombrias capazes de gerar alguma tensão para o espectador. Além disso, conta com um bom ator (Adrien Brody) no papel principal, dando uma certa profundidade existencial para o protagonista. Ou seja, no geral, não apresenta novidades e nem vai entrar para história dentro do gênero, mas é bem mais divertido e envolvente do que as produções “modernas” de horror que tanto apelam para a câmera subjetiva para esconder a sua incompetência narrativa.

quarta-feira, dezembro 14, 2016

Conspiração e poder, de James Vanderbilt **

Um gênero que tem cadeira cativa no cinema norte-americano nas últimas décadas é o dos dramas históricos-políticos. De certa forma, sempre há algum diretor com a pretensão de realizar uma obra no nível de importância artística e temática de um clássico como “Todos os homens do presidente” (1976). “Conspiração e poder” (2015) é mais uma produção que busca tal objetivo, ao mostrar o polêmico caso em que o programa televisivo “60 minutes” acusou o ex-presidente George W Bush de não servir durante a Guerra do Vietnã usando a influência política de seu pai e que depois não conseguiu sustentar suas alegações por falta de provas, com os jornalistas envolvidos caindo em descrédito perante o público. O assunto é interessante e complexo, refletindo muito do jogo de poder envolvendo a mídia e o Estado, mas o tratamento formal e narrativo proposto pelo diretor James Vanderbilt é tão desprovido de vigor e ousadia que acaba mais provocando uma sensação de enfado para o espectador do que alguma tensão ou mesmo indignação. Falta dinâmica e até alguma ironia dentro dos clichês melodramáticos nos quais o cineasta se afunda. É claro que o filme pode despertar uma certa curiosidade pelo seu lado informativo para aqueles que se interessam pelo cenário sócio-político contemporâneo. Como cinema, entretanto, é uma experiência bastante frustrante.

terça-feira, dezembro 13, 2016

De Palma, de Noah Baumbach e Jake Paltrow ***1/2

A filmografia do diretor norte-americano Brian De Palma é marcada por uma grande depuração da linguagem cinematográfica. Como ele mesmo declara em um determinado do documentário “De Palma” (2015), para ele o roteiro tem a função de preencher uma concepção estética e narrativa que vem em primeiro lugar na sua mente. Os cineastas Noah Baumbach e Jake Paltrow, realizadores da mencionada produção documental, se mostram em sintonia com tais preceitos artísticos do seu protagonista, fazendo com que o filme se baseie quase que exclusivamente em longos depoimentos de De Palma dissecando cada uma das produções que dirigiu. Além do detalhar o contexto histórico de realização delas, ele discute o seu método de trabalho, principalmente em termos de encenação, truques estéticos e concepção visual. Impressiona a autoconsciência que De Palma demonstra nessa entrevista em relação a sua carreira, no sentido de como depura as suas influências, principalmente no caso de Hitchcock, e discute com lucidez sobre a recepção de seus filmes por parte de público e crítica. Nesse último quesito, boa parte daqueles filmes que muitos consideraram fracassos artísticos e comerciais em suas respectivas épocas de lançamento com o tempo mereceram uma revisão mais cuidadosa e tiveram os seus vários méritos artísticos reconhecidos. Tal fenômeno se relaciona com a sofisticação da abordagem formal de De Palma, cuja apreensão sensorial por parte das plateias exige um olhar mais amplo do que o mero interesse por entretenimento rápido. Para incrementar esse panorama artístico sobre o ato de fazer cinema, Baumbach e Paltrow inserem trechos significativos de todos os filmes discutidos em cena, bem como de obras que influenciaram De Palma. Assim, o espectador entra numa atordoante viagem sensorial dentro da mente de pura lógica cinematográfica de De Palma.

segunda-feira, dezembro 12, 2016

Ninguém deseja a noite, de Isabel Coixet **1/2

No subtexto da trama de “Ninguém deseja a noite” (2015) há um forte teor de contestação dos valores sócio-culturais do mundo ocidental. As obsessões, caprichos e preconceitos da protagonista Joséphine (Juliette Binoche) sintetizam os interesses mercantilistas e opressores dos países europeus colonizadores em relação aos países explorados por tais nações, com tais intenções de dominação sendo mascarados por hipócritas máscaras de patriotismo, religiosidade e civilidade. O problema do filme é que a contundência desse discurso temático acaba tendo a sua força diminuída a partir de uma abordagem narrativa atrelada ao melodrama excessivamente convencional. A obra da diretora espanhola Isabel Coixet até consegue apresentar algumas belas sequências em termos plásticos diante de um conjunto eficiente de fotografia e direção de arte, mas falta uma atmosfera de tensão e violência mais convincente, que efetivamente consiga prender o interesse da plateia. Coixet se contenta em enveredar por facilidades narrativas, como uma trilha sonora pomposa e onipresente e exageros sentimentais, ao invés de apostar num registro mais sóbrio que conseguiria reproduzir com mais verdade e paixão o eterno embate entre o indivíduo dito “civilizado” e uma natureza inclemente que não se rende a uma suposta meritocracia.

sexta-feira, dezembro 09, 2016

Time will burn, de Marko Panayotis e Otávio Sousa ***

Para muita gente, o rock and roll significa bandas que vendem milhares de discos, que tem shows lotados em grandes espaços (arenas, estádios), que são famosas em termos midiáticos e outras amenidades afins. Na realidade, tal cenário representa uma exceção dentro da história desse gênero musical, pois grande parte do que se já fez de melhor no rock está vinculado a situações como a de tocar em muquifos para algumas dezenas, não ter vendagens expressivas de suas gravações, ser ignorado pela imprensa e pelo público “normal”. Ok, também é recorrente dizer que o rock foi absorvido pelo sistema, mas ele sempre trará dentro de si um certo aspecto de marginalidade e contestação. Por isso que o documentário “Time will burn” (2016) consegue ser tão cativante. O filme retrata um recorte temporal e territorial bem delimitado – o cenário underground de bandas paulistas e cariocas no período de 1990 a 1994 que se aventuravam dentro um som barulhento bastante influenciado por grupos estrangeiros como Jesus and Mary Chain, My Bloody Valentine e Stooges. Cantando em inglês e desenvolvendo suas carreiras dentro de um esquema independente envolvendo gravações em cassetes “demo” ou discos por selos alternativos, apresentações em pequenos bares e boates e divulgação por fanzines, cartazes e flyers xerocados, nenhuma delas atingiu o sucesso comercial ou entrou para os anais da história “oficial” do rock and roll, mas acabaram se tornando cultuadas e influentes para alguns de seus seguidores. Para contar essa história, os diretores Marko Panayotis e Otávio Sousa articulam uma narrativa eficaz e envolvente e um acabamento estético que sabe sintetizar requinte e o espírito “do it yourself”, concentrando-se basicamente na trajetória das quatros principais bandas desse movimento (Pin Ups, Killing Chainsaw, Mickey Junkies e Second Come) e sabendo valorizar a crueza e espontaneidade nas filmagens de depoimentos e os impressionantes registros de época com as apresentações de tais bandas. Além disso, o filme consegue amarrar um coerente conceito existencial e artístico que dá a devida dimensão histórica daquele fenômeno cultural, mostrando como ele ainda é ressonante na atualidade.

quinta-feira, dezembro 08, 2016

Animais fantásticos e onde habitam, de David Yates **1/2

É bem provável que o séquito de devotos da franquia “Harry Potter” esteja bem satisfeito com “Animais fantásticos e ondem habitam” (2016). Para que não houvesse muitas polêmicas, os produtores colocaram como diretor o britânico David Yates, que foi o responsável pelos últimos capítulos da série do jovem bruxo, para que fosse entregue justamente aquilo que o seu público esperava. Ou seja, é mais uma produção no gênero fantasia a manter um padrão estético/temático competente e asséptico feito para não chocar a grande maioria da audiência. Dentro dessa previsível fórmula narrativa dá até para dizer que há alguns destaques, como a beleza plásticas de algumas soluções visuais, movimentadas cenas de ação que por vezes divertem e um elenco de atuações carismáticas. Mas no geral o que predomina é uma sensação de um formalismo pouco imaginativo e de emoções plastificadas, algo como mais uma cópia pálida da ambientação e dos maneirismos típicos da trilogia “O senhor dos anéis”. Em alguns momentos, a trama mostra alguns vislumbres mais sombrios e interessantes, que até sugerem uma certa perspectiva de que a narrativa enverede por caminhos mais ousados. Essa impressão, contudo, é logo apagada pela pegada burocrática da direção de David Yates que retira as poucas possibilidades de uma atmosfera de tensão que efetivamente prenda a atenção do espectador. Pode ser que “Animais fantáticos...” renda algumas semanas de debates e discussões entre nerds, geeks e assemelhados, mas logo cairá no esquecimento quando entrar em cartaz  mais uma produção de “Star War”, “Jogos vorazes” ou afins. É assim as coisas seguem...

quarta-feira, dezembro 07, 2016

O filho eterno, de Paulo Machline *1/2

O que torna “O filho eterno” (2016) uma adaptação cinematográfica frustrante do romance original de Cristóvão Tezza não é simplesmente o fato de tal versão não ser fiel ao livro em questão, mas o fato de representar uma medíocre antítese da proposta artística contundente de Tezza. Afinal, a mencionada obra literária apresenta uma engenhosa combinação entre a ficção e o real para tratar da complexa relação entre o escritor e seu filho com Síndrome de Down, com sutilezas narrativas da prosa que apresentam uma carga simbólica e existencial desconcertante e que também versam sobre o confronto do conteúdo idealista e apolíneo da arte com a crueza emocional do cotidiano e dos sentimentos humanos. Nada disso está presente no filme de Paulo Machline, que se contenta em enquadrar a história do original literário numa formatação asséptica e previsível, diluindo a contundência dos conflitos e dilemas da temática numa fórmula de soluções fáceis e edificantes, fazendo tudo parecer uma novelinha global qualquer.

segunda-feira, dezembro 05, 2016

Amnésia, de Barbet Schroeder ***

A trama de “Amnésia” (2015) estabelece uma insólita ponte entre a Alemanha nazista dos anos 30 e 40 com a ensolarada e hedonista praia espanhola de Ibiza nos anos 90, simbolizada no platônico relacionamento amoroso entre Jo (Max Riemelt), um jovem DJ, e Martha (Marthe Keller), uma retraída senhora de 70 anos, ambos germânicos “exilados” no paradisíaco litoral. O que poderia adquirir contornos de bizarrice melodramática ganha contornos bem mais sóbrios e profundos a partir da sutileza da abordagem narrativa do diretor Barbet Schroeder. A direção de fotografia valoriza com sensibilidade os belos cenários naturais de Ibiza, mas não cai no mero registro “cartão postal”, estabelecendo, na verdade, um inquietante contraponto entre essa ambientação agradável com o passado obscuro de Martha e a ambiguidade de sua relação com Jo. Outro ponto alto artístico é a maneira como a música se insere no filme, servindo como uma espécie de elo simbólico a retratar a cumplicidade entre o par de protagonistas e também o processo de reaproximação existencial de Martha com o mundo. Nesse sentido, os belos temas eletrônicos da trilha sonora realçam tanto o particular contexto cultural dos cenários da trama, afinal Ibiza é o grande ponto de convergência mundial da música eletrônica dançante, como um certo caráter libertário de “Amnésia” na exposição das relações humanas.

sexta-feira, dezembro 02, 2016

A chegada, de Denis Villeneuve ***1/2

Talvez o grande problema para que o canadense Denis Villeneuve se firmasse como um dos cineastas mais promissores a surgirem nos últimos anos é uma excessiva pretensão “autoral”. Não que ambição artística seja um problema, mas em seus filmes dava para perceber uma boa mão na encenação e um trabalho diferenciado na direção de atores e que por vezes falhavam como narrativa diante de um certo tom solene e excessivamente reflexivo que deixava o ritmo de suas histórias um tanto truncado, além dos seus respectivos roteiros se perderem em excessos novelescos. A ficção científica “A chegada” (2016) é o filme de Villeneuve que melhor consegue resolver esse nó criativo. Assim como em sua produção imediatamente anterior, “Sicário” (2015), fotografia e trilha sonora são grandes pontos altos da obra, ajudando a compor uma atmosfera melancólica e algo metafísica para uma trama versando sobre a chegada de alienígenas na Terra, apresentando algumas referências visuais e mesmo de ambientação que lembram Terrence Malick e Andrei Tarkovsky. A sofisticação de tais elementos estéticos consegue se encaixar com naturalidade dentro de uma lógica narrativa que se liga a uma estrutura de filme de gênero, ou seja, o tom contemplativo está em sintonia com uma dinâmica tradicional da ficção científica contemporânea. É de se ressaltar ainda a ousada concepção imagética dos efeitos especiais e um roteiro que consegue dosar de maneira equilibrada os clichês habituais da aventura fantástica com a pretensão e complexidade temáticas a envolver viagens no tempo, comentário sócio-político e utopia sci fi.

quarta-feira, novembro 30, 2016

Creepy, de Kiyoshi Kurosawa ****

O diretor japonês Kiyoshi Kurosawa tem uma forte vinculação com o cinema de gênero, principalmente na área de interligação entre o suspense e o horror, mas sua abordagem artística é bastante diversa daquela de produções nipônicas como “O chamado” (1998) e derivados. Isso fica bastante evidente em sua obra mais recente, “Creepy” (2016). Não há grandes inovações em termos formais e temáticos, e por vezes até pode haver um certo incômodo com algumas incongruências do roteiro. O forte de Kurosawa está na construção de uma atmosfera densa e perturbadora de tensão e terror, na caracterização bizarra de personagens e situações, na forte e sutil simbologia da trama e numa encenação desconcertante que varia do intimismo dramático ao puro horror gore. Os clichês narrativos tradicionais do gênero estão presentes de maneira constante, mas uma das grandes sacadas do cineasta está na sua criatividade e virtuosismo estéticos em manipular tais recursos e os colocar em cena sob uma perspectiva insólita e mesmo de caráter desafiador. Nesse sentido, a relação emocional que se estabelece no triângulo composto pelo protagonista Takakura (Yuko Takeuchi), sua esposa Yasuko (Hidetoshi Nishijima) e o asqueroso psicopata Nishino (Teruyuki Kagawa) revela nuances existenciais inquietantes, principalmente na forma com que questiona valores morais e comportamentais. A lógica e prática distorcidas de Nishino em induzir laços emocionais estimulando o vício em drogas pesadas e exterminar famílias parece evocar uma espécie de expiação das hipocrisias da sociedade moderna. Por trás desse discurso ambíguo há um complemento formal de coerência sensorial impressionante, vide a fotografia de tons sombrios, a trilha sonora de temas efetivamente assustadores e a edição que conduz a narrativa como se fosse um macabro conto gótico.

terça-feira, novembro 29, 2016

Menino 23: Infâncias perdidas no Brasil, de Belisário Franca ***

A premissa básica do argumento de “Menino 23: Infâncias perdidas no Brasil” (2016) pode fazer pensar até numa obra de cunho ficcional beirando o fantástico: nos anos 30, garotos negros órfãos são levados do Rio de Janeiro para uma grande fazenda do interior de São Paulo de propriedade de simpatizantes do integralismo e do nazismo e lá são submetidos a condições de escravidão. Ocorre, entretanto, que o filme dirigido por Belisário Franca é um documentário, ou seja, mostra fatos que realmente aconteceram, o que torna tudo ainda mais assustador e revoltante. A abordagem formal de Franca é simples e direta, utilizando depoimentos recentes, encenação discreta e registros audiovisuais de arquivo. A partir de tal recursos, o diretor consegue obter uma síntese narrativa eficiente e de impacto, conciliando de maneira precisa o aspecto histórico/didático, ao mostrar o contexto sócio-político do racismo naquele período, com o fator intimista/dramático, dando a palavra a dois homens que fizeram parte de tal “experimento” nefasto. A partir desse conjunto estético-temático, “Menino 23” traça um perfil complexo e contundente da trajetória do preconceito racial no Brasil, mostrando também como tal questão está intrinsecamente ligada aos mecanismos de opressão para perpetuação no poder de uma oligarquia econômica, evidenciando uma sintonia, dessa forma, com alguns fatos bem recentes da história do nosso país.

segunda-feira, novembro 28, 2016

Snowden - Herói ou traidor?, de Oliver Stone ***1/2

Parte significativa da filmografia do diretor norte-americano Oliver Stone é dedicada a fazer uma espécie de inventário sócio-político-cultural da história do seu país. Dentro desse nicho, seu maior acerto artístico foi “JFK” (1991), que apresentava uma combinação notável entre narrativa dinâmica e envolvente e um conteúdo aprofundado e inquietante sobre a temática que versava. Essa síntese também é o grande mérito de “Snowden – Herói ou traidor” (2016), obra mais recente de Stone, que foca a história do ex-agente da CIA que denunciou os mecanismos de espionagem virtual praticada pelos Estados Unidos. Ainda que o filme se renda a alguns convencionalismos narrativos, a noção de ação cinematográfica é muito bem trabalhada, vide a edição que incorpora com naturalidade e coerência efeitos digitais a simularem o mundo da virtualidade e a encenação vigorosa e bem coreografada que extrai uma tensão perturbadora nas sequências mais cruciais em termos dramáticos. O roteiro apresenta um certo traço panfletário, o que fica evidente na caracterização maniqueísta de personagens e situações, mas ao mesmo tempo sabe valorizar a complexidade dos dilemas morais e contradições de seu protagonista, além de mostrar detalhes das operações políticas e de segurança do governo norte-americano que geralmente são tratadas com superficialidade na mídia “oficial”. Para falar a verdade, é até provável que a falta de escrúpulos da CIA e do NSA a investigarem indevidamente cidadãos nativos e governos estrangeiros seja muito mais acentuada e cruel na realidade do que na simulação de uma obra para o cinema. E ainda que tais fatos retratados no filme sejam ainda relativamente recentes, a abordagem de Stone traz um traço atemporal ao deixar evidente mais um dos métodos da permanente opressão de governos e grandes corporações sobre os indivíduos.

sexta-feira, novembro 25, 2016

BR 716, de Domingos de Oliveira ***1/2

Alguns dos filmes mais recentes do diretor Domingos de Oliveira pecavam por um acabamento formal meio qualquer nota e um texto autoindulgente, vide “Juventude” (2008) e “Paixão e acaso” (2012). Em “BR 716” (2016), o cineasta corrige esse rumo criativo e entrega um dos seus trabalhos mais expressivos e cativantes. Para começar, ele conta com uma direção de fotografia de notável beleza plástica, num registro preto e branco que sublinha com sensibilidade uma atmosfera mista de nostalgia e onirismo. Por se tratar de uma obra de caráter memorialista e autobiográfica, marca de grande parte da filmografia de Domingos, a narrativa vem marcada por algo de difuso e exuberante, como se as lembranças viessem sob um prisma exagerado e sem um grande compromisso com o “real”. Essa preferência pelo subjetivismo acaba tornando o filme muito mais visceral e verdadeiro na forma com que retrata com crueza e carinho os dilemas e contradições existenciais do protagonista Felipe (Caio Blat), alter ego do diretor. Outro trunfo de “BR 716” é a uma encenação que sabe unir rigor e um teor libertário, havendo um dinamismo coerente tanto nas sutilezas dramáticas e cômicas dos momentos mais intimistas quanto na caracterização dionisíaca das festas constantes promovidas por Felipe. Por se tratar de um retrato geracional focado no Rio de Janeiro de 1964, há momentos que a produção assume alguns clichês narrativos um tanto ingênuos na sua contextualização histórica, mas isso na realidade se incorpora com naturalidade dentro do próprio espírito de melancolia nostálgica da obra. Domingos de Oliveira ainda acerta num dos pontos que costuma ser o seu forte, a direção de atores, fazendo com que o seu elenco mostre algumas atuações memoráveis, como a evocação de uma diva esfuziante de Sophie Charlotte, a caracterização alucinada de Glauce Glima e mesmo a intepretação de Blat, que faz uma verdadeira possessão incorporando os trejeitos e maneirismos típicos de Oliveira.

quinta-feira, novembro 24, 2016

Cinema Novo, de Eryk Rocha ***1/2

Seria um tanto incoerente fazer um documentário sobre o Cinema Novo utilizando uma linguagem convencional e acadêmica, tendo em vista o fato do movimento deflagrado por Glauber Rocha e outros inquietos cineastas ter procurado justamente romper com tradicionalismos mofados dentro da ordem cinematográfica. Por esse motivo, o cineasta Eryk Rocha adota uma via criativa e ousada em “Cinema Novo” (2016) – ao invés de simplesmente “contar uma história” utilizando os recursos mais óbvios nesse tipo de produção como se fosse uma reportagem, ele preferiu fazer o espectador entrar numa viagem sensorial dentro de um imaginário delirante e criativo para ter uma ideia do significado artístico e existencial das principais obras daquele período e de seus criadores. Nesse sentido, a citação visual direta de “O encouraçado Potemkin” (2016) não é gratuita, pois o enfoque na montagem, o grande legado de Serguei Eisenstein, é o principal mote criativo no documentário em questão. Praticamente todo o material audiovisual é composto de trechos documentais da época e cenas dos principais trabalhos do Cinema Novo e de obras que influenciaram, foram influenciadas ou simplesmente tiveram alguma sintonia com tais produções cinemanovistas. Eryk Rocha organiza as ideias sobre a sua temática dentro de uma linha teórica delimitada com precisão e sensibilidade, criando dessa forma uma trama sutil e complexa. Há o surgimento explosivo dos filmes, o momento em que os cineastas discutem suas criações e o contexto sócio-cultural que as envolvem, o impacto que os filmes causam no Brasil e no mundo e, por fim, os motivos que levam à implosão do movimento e a dispersão de seus principais diretores. É fascinante a forma com que o documentarista estrutura o seu caleidoscópio narrativo dentro dessa lógica histórica, fazendo com que um mosaico de conceitos, abordagens e discursos diversos e muito pessoais ganhem uma coerência intrínseca na leitura que fazem do Brasil e do cinema do passado, do presente e do futuro.

quarta-feira, novembro 23, 2016

Elle, de Paul Verhoeven ****

A produção francesa “Elle” (2016) é uma bela síntese das concepções autorais muito particulares do cineasta holandês Paul Verhoeven, combinando refinamento narrativo com um sensorialismo visceral. Estão lá boa parte dos clichês básicos do gênero suspense, mas eles são manipulados com uma elegância fenomenal e ao mesmo tempo também são pervertidos dentro de uma trama repleta de desdobramentos insólitos e um forte conteúdo simbólico (nesse sentido, é antológica a sequência do jantar de natal, em que a composição e dinâmica da mesa reflete as divisões sócio-econômicas-culturais da sociedade ocidental contemporânea). O roteiro em sua primeira metade até insinua um formato que evoca a atmosfera de algumas obras de Alfred Hitchcock, principalmente naquela fórmula “quem é o culpado”, mas esse direcionamento aparentemente convencional vai se tornado cada vez mais difuso, com Verhoeven transformando a narrativa numa espécie de perturbadora parábola moral. Os dilemas e contradições da protagonista Michèle (Isabelle Huppert) são complexos e por vezes até bizarros, mas exalam uma humanidade crua e contundente na forma plural com que as diversas facetas da personagem se expõem e interagem (sentimental/existencial/profissional). Esse contexto temático repleto de nuances recebe um tratamento formal bastante lapidado, com destaque para a encenação precisa na sua junção de naturalidade e detalhismo imagético, vide as intensas cenas de sexo e violências (aliás, na melhor tradição Paul Verhoeven), e as sequências em que os games eletrônicos se inserem na narrativa, guardando uma correlação irônica sensacional com aquilo que se passa no mundo “real” da trama, além da trilha sonora tensa e sedutora e o elenco de atuações antológicas (Huppert, por sinal, num dos grandes momentos de sua expressiva carreira).

terça-feira, novembro 22, 2016

Depois da tempestade, de Hirokazu Koeeda ***

Em suas obras mais recentes, o cineasta japonês Hirokazu Koeeda vem formatando seu estilo dentro do gênero do melodrama familiar. Nessa vertente, ainda que não apresente nada tão contundente quando o drama fantástico “Depois da vida” (1998) ou o suspense intimista “Ninguém pode saber” (2003), o diretor lançou trabalhos que se afastam de uma abordagem óbvia ou do sentimentalismo excessivo. Esse é o caso de “Depois da tempestade” (2016). A história do escritor e detetive Ryota (Hiroshi Abe) que se sente frustrado pelas dificuldades financeiras e pelo fracasso do casamento é enquadrada numa narrativa sóbria e num roteiro que não abre concessões fáceis. A caracterização de personagens e situações é delineada de maneira sensível e complexa, o que cria tanto tensão dramática para o filme quanto empatia com o espectador. A marca autoral de Koeeda é nítida de maneira sutil – a síntese entre formalismo e temática tem notável coerência artística e se mostra desafiadora ao não se adaptar às necessidades comerciais de se mostrar acessível, preservando a crueza dos sentimentos e sensações dos personagens e dispensando um final feliz e conciliador artificioso.

segunda-feira, novembro 21, 2016

Dr. Estranho, de Scott Derrickson ***

Por mais que haja uma coerência na forma com que os filmes interagem dentro do seu universo e uma competente qualidade narrativa nas suas realizações, a atual linha de produções cinematográficas da Marvel não permite grandes variações e ousadias dentro de sua fórmula artística – claro que com algumas honráveis exceções, como “Os guardiões da galáxia” (2014). Dentro dessa lógica, “Dr. Estranho” (2016) é um exemplar bastante sintomático de tal situação. Estão presentes boa parte dos preceitos formais e temáticos que já pautaram os demais filmes das outras franquias, principalmente no que diz respeito às obras que mostram as origens dos super-heróis, e que de certa forma também são característicos dos próprios quadrinhos que as inspiraram. O diretor Scott Derrickson segue tão à risca essa cartilha que por vezes temos a impressão de se estar assistindo a refilmagem de “O homem de ferro” (2008), só que por um prisma místico (as piadinhas bestas, por exemplo, são as mesmas). Ainda assim, o ritmo da narrativa tem uma desenvoltura cativante e as cenas de ação tem uma coreografia bem resolvida. E se por um lado o roteiro tem uma mecânica um tanto previsível em excesso e falte uma efetiva tensão dramática capaz de surpreender o espectador (culpa principalmente de um vilão sem graça, o que é recorrente nos filmes da Marvel), há de se destacar como a questão do misticismo é bem incorporada na trama, apresentando tanto alguns conceitos bem interessantes quanto rendendo algumas sequências de força imagética deslumbrante.

sexta-feira, novembro 18, 2016

Tio Bernard - Uma antilição de economia, de Richard Brouillette ****

O grande trunfo artístico de “Tio Bernard – Uma antilição de economia” (2015) está na ligação estético-existencial que se estabelece no discurso sócio-político-econômico do seu protagonista, Bernard Maris, economista e editor do periódico humorístico Charlie Hebdo, com a formatação concebida pelo diretor Richard Brouillette. A narrativa do documentário consiste basicamente num longo depoimento do citado intelectual, dado no ano de 2000, dissecando as contradições e hipocrisias do capitalismo moderno e também expondo os mecanismos de manipulação e opressão escondidos por trás dos discursos edificantes de livre mercado e prosperidade propagados por grande parte de economistas e tecnocratas. Para acompanhar tal diatribe lúcida e desafiadora, Brouillette utiliza uma abordagem que sintetiza urgência, contenção de recursos e um teor reflexivo sobre o seu próprio mecanismo de realização, em que mesmo detalhes de bastidores refletem uma atmosfera de contestação e ironia. A edição se efetiva nas trocas de rolos de película, detalhe esse que é incorporado dentro da própria encenação como recurso dramático-cômico (é de se reparar que nesses “intervalos”, em que a tela escurece, tio Bernard continua a falar sem parar e até acentua a acidez de suas tiradas). O talento oratório, a capacidade de fundamentação arguta e o carisma de Marin são aproveitados ao máximo diante dessa linguagem cinematográfica que combina com precisão sofisticação e fúria. Tais soluções narrativas afastam a obra do campo da simples reportagem e a configuram como um contundente libelo humanista-artístico contra um ordenamento social e político marcado pela injustiça e o absurdo e ajudam a entender como uma figura como a do tio Bernard pode perturbar tanto o status quo vigente. Não por acaso, ele estava entre as vítimas do lamentável atentado terrorista sofrido pelo Charlie Hebdo em janeiro de 2015.

quinta-feira, novembro 17, 2016

O plano de Maggie, de Rebecca Miller ***

A influência que talvez mais salte aos olhos ao se assistir a “O plano de Maggie” (2015) seria a filmografia de Woody Allen. A diretora norte-americana Rebecca Miller evoca algumas referências tanto do estilo de filmar quanto na concepção de roteiro típicos do estilo de Allen. Estão lá a concepção formal que por vezes emula uma espécie de documentário caseiro, o senso de humor que sintetiza leveza e amargura, a trama repleta de situações entre o inusitado e o embaraçoso, além de personagens confusos em termos sentimentais e existenciais. O resultado final, contudo, está longe do mero pastiche. Os truques dramáticos e cômicos da história são eficientes em suas cirandas amorosas e quiproquós familiares, além de condensarem com alguma crueza alguns dos principais dilemas e contradições de uma certa classe média intelectual contemporânea. A encenação proposta por Miller tem naturalidade e apresenta nuances que procuram fugir das soluções fáceis, tendência essa que é reforçada pela trinca principal do elenco em interpretações que trazem complexidade e ironia nas doses certas.

quarta-feira, novembro 16, 2016

Indignação, de James Schamus **1/2

Transpor o universo literário do escritor Philip Roth para o cinema é uma tarefa penosa. A produção norte-americana “Indignação” (2016) é um exemplo enfático de tal dificuldade. Estão lá na trama as habituais obsessões temáticas-existenciais do autor – o questionamento dos valores éticos e morais da sociedade norte-americana, a exposição dos preconceitos raciais e sociais, os tormentos sexuais de personagens complexos. O problema é que tais temas são trabalhados de forma artificial e solene tanto pelo roteiro quanto pela encenação, retirando, dessa forma, a verve e a ironia com que Roth costuma tratar esse material em seus romances. A linguagem literária também não consegue se consolidar em outro tipo de narrativa – a descrição oral em primeira pessoa do protagonista Marcus Messner (Logan Lerman) é excessiva e afetada, roubando um espaço essencial que deveria ser ocupada pela concepção imagética do filme. Assim, falta sutileza e uma efetiva profundidade na forma com que personagens e situações são desenvolvidos. Ainda que a fotografia e a direção de arte demonstrem alguma beleza visual na sua reconstituição dos anos 50 e a atuação de Olivia Hutton apresente um interessante encanto, “Indignação” tem um resultado final falho na sua proposta de dissecação sensorial das hipocrisias arraigadas dos Estados Unidos devido a uma abordagem estética e textual que carece de força e ousadia.

sexta-feira, novembro 11, 2016

Busca insaciável, de Milos Forman ****

Quando se fala na fase norte-americana da carreira do cineasta tcheco Milos Forman, logo vem à mente filme antológicos como “Um estranho no ninho” (1975), “O povo contra Larry Flynt” (1996) e “O mundo de Andy” (1999). Pouco se comenta, entretanto, sobre sua produção de estreia nos Estados Unidos, “Busca insaciável” (1971), o que é uma grande injustiça, pois se trata de uma obra que está, no mínimo, no mesmo nível artístico dos trabalhos mencionados. A formatação narrativa mantem muito da original abordagem de linguagem cinematográfica que Forman praticava em alguns de seus filmes mais marcantes realizados em seu país natal como “Os amores de uma loira” (1965) e “O baile dos bombeiros” (1967) – é de se reparar, por exemplo, que a sequência inicial de “Busca insaciável” em que vários jovens, num inventivo truque de edição, cantam a mesma música é semelhante à da jovem que canta ao violão na abertura de “Os amores de uma loira”. Assim, a visão de ironia ácida de Forman sobre os hipócritas valores sócio-culturais da sociedade norte-americana da época (e que se mantém até hoje, vide a recente eleição de Donald Trump) vem embalada por um sofisticado formalismo que combina uma direção de fotografia seca e objetiva e uma edição de cortes insólitos. A contundência de tal estética se alia a uma esquisita e sardônica atmosfera de distanciamento emocional, gerando um efeito desconcertante para o espectador – a aparente frieza da encenação esconde uma grande tiração de sarro do reacionarismo e visão obtusa do americano norte-americano médio. Nesse sentido, é particularmente brilhante a sequência em que respeitáveis pais de família fumam maconha num evento social para tentar entender os motivos dos filhos terem fugido de casa. No mais, é curiosa como essa reflexão sobre o período do flower power acaba se relacionando com outro filme de Forman que versava sobre temática semelhante, o musical “Hair” (1979), formando um expressivo e amargo panorama sobre a contracultura.

quinta-feira, novembro 10, 2016

O pecado de Hadewijch, de Bruno Dumont ***1/2

A filmografia do diretor francês Bruno Dumont é baseada numa síntese bastante particular de preceitos artísticos e existenciais que remetem a cineastas como Roberto Rossellini e Robert Bresson. Assim, seus filmes abarcam uma estranha combinação de conto moral e formalismo rigoroso e ascético, em que a exposição do mal estar e inquietações ético-religiosas da sociedade ocidental contemporânea vem acompanhada de uma linguagem estética contida e distanciada na configuração de seu modus operandi. “O pequeno Quinquin” (2014) é a representação mais expressiva das concepções insólitas de Dumont, mas “O pecado de Hadewijch” (2009) mostra que esse estilo já estava cada vez mais delineado em suas nuances de sensibilidade e esquisitice. A trajetória da protagonista Céline (Julie Sokolowski) em busca de redenção espiritual e de uma aproximação mais íntima com uma divindade superior é esmiuçada numa narrativa seca e sem concessões, em que elementos como a ironia e a sensualidade se manifestam com discrição perversa. No meio dessa jornada intimista, Dumont estabelece uma sutil amostragem sócio-cultural da Europa desse século, principalmente em questões conflitantes e contraditórias como o preconceito racial e o fanatismo religioso.

quarta-feira, novembro 09, 2016

Curumim, de Marcos Prado ***1/2

O que diferencia um documentário cinematográfico de uma reportagem audiovisual? A pergunta pode parecer complexa e para alguns a fronteira entre esses dois gêneros narrativos é até muito tênue, mas um filme como “Curumim” (2016) acaba por estabelecer uma diferenciação bastante contundente. O assunto principal de sua trama, a prisão e fuzilamento do brasileiro Marco Archer na Indonésia por tráfico de drogas, foi bastante comentado na mídia. A abordagem concebida pelo diretor Marcos Prado, entretanto, afasta-se do meramente informativo, fazendo com que a sua obra seja uma viagem existencial perturbadora tanto na mente de seu protagonista quanto nas circunstâncias históricas e sociais do período abrangido na trajetória de Archer. Para isso, Prado utiliza recursos diversos para compor a narrativa – filmagens próprias, registros obtidos por Archer na prisão (onde aguardou por mais de 10 anos pela sua execução), imagens de arquivo, depoimentos e até mesmo encenações. A edição consegue equilibrar de maneira notável a precisão de um formalismo “profissional” com o caráter amador de algumas tomadas, criando uma atmosfera ambígua na sua mescla de “filme caseiro” e sóbrio retrato geracional. O formalismo criativo articulado pelo cineasta consegue captar com sensibilidade e vigor as nuances dramáticas da história contada, abrangendo a era de hedonismo e inocência do Rio de Janeiro dos anos 70 e 80, a decadência de uma classe alta brasileira de perfil aristocrático na virada do século, os “causos” movido a aventuras e drogas do protagonista ao redor do mundo e a sua final degradação física e mental trancafiado numa prisão fuleira nos cafundós da Ásia. Nesse relato sombrio que se situa num ponto difuso entre o épico e o intimista, “Curumim” ainda se permite de maneira sutil uma amarga reflexão sobre o sistema de valores distorcidos que envolvem questões polêmicas como a pena de morte e o combate ao tráfico de drogas. Nesse amplo espectro temático, as ambições artísticas e contestadoras de Prado se mostram elevadas, com o cineasta dando conta de tais intenções com a criatividade e ousadia das soluções narrativas e de conteúdo de uma produção memorável.

terça-feira, novembro 08, 2016

A viagem de meu pai, de Philippe Le Guay ***

Dentro de uma temática já bastante abordada por outras produções cinematográficas, a das dificuldades da velhice, “A viagem de meu pai” (2015) não chega a ser uma obra-prima, mas ainda assim consegue apresentar algumas surpresas positivas capazes de gerar inquietação para o espectador. A maior delas é a forma com que o diretor Philippe Le Guay formata a sua narrativa, que se desenvolve a partir de uma relação com a própria dinâmica do processo gradual de senilidade do protagonista Claude Lherminier (Jean Rochefort). Assim, as noções de tempo e realidade vão se tornando cada vez mais difusas com o avançar da trama, ainda que a encenação evoque um tom naturalista, fazendo com que fatos corriqueiros do cotidiano convivam em uma estranha harmonia com toques oníricos e por vezes delirantes. É mérito também do filme em manter uma atmosfera de sobriedade emocional, em que situações melancólicas e mesmo cruéis não são expostas com obviedades sentimentais, prevalecendo uma certa crueza existencial e se permitindo até em alguns momentos uma dose de ironia. Claude não é retratado de forma simplista como uma mera vítima de sua condição como idoso – os percalços pelos quais ele e sua família passam ganham uma condição de inevitabilidade do destino, sugerindo-se ainda como consequências de atos praticados pelo protagonista quando mais jovem e de seu próprio e inato temperamento orgulhoso. Dentro dessa proposta de Le Guay, a atuação de Rochefort ganha especial ressonância, pois sua interpretação é repleta de notáveis nuances dramáticas e cômicas.

segunda-feira, novembro 07, 2016

Canção da volta, de Gustavo Rosa de Moura **1/2

Os conceitos estéticos e existenciais de “Canção da volta” (2016) são consistentes e inquietantes. A trama que que trata das consequências práticas e sentimentais provocadas pelas crises de depressão de Julia (Marina Person) para sua família apresenta um subtexto desafiador no sentido de questionar os preceitos comportamentais de uma classe média dita civilizada e humanista. A concepção narrativa procura acompanhar esse caráter ousado do roteiro, valendo-se de uma estrutura temporal que por vezes se afasta do linear, como se mostrasse em sintonia com o caráter errático da personalidade da protagonista. O problema central da produção dirigida por Gustavo Rosa de Moura, entretanto, está numa encenação um tanto engessada e que não acompanha esse espírito libertário da história que é contada. Falta uma maior desenvoltura na interação dos atores com aquilo que é contado em cena, fruto de uma excessiva racionalização na hora de colocar as ideias em prática. Os melhores momentos da obra são aqueles em que a forma e o conteúdo encontram uma síntese mais livre e espontânea, vide a sequência em que Julia entra em uma espécie de transe e dança sozinha esbarrando pelos móveis da casa ou as tomadas das aulas de balé da personagem – tais trechos imagéticos conseguem apresentar uma carga simbólica forte apenas pelo vigor da ação e sintetizam melhor o espírito contestador de “Canção da volta”. Se o diretor tivesse mantido esse tipo de solução narrativa, talvez seu filme tivesse apresentado um resultado artístico semelhantes a produções memoráveis que versaram sobre temática semelhante como “Possessão” (1981) e “Melancolia” (2011).

sexta-feira, novembro 04, 2016

O contador, de Gavin O'Connor ***

A descrição de “O contador” (2016) como uma espécie de cruza picareta entre a “Bourne” com “Gênio indomável” (1997) pode parecer um exagero jocoso, mas também não deixa de ter a sua pertinência. Ou seja, pelo menos em termos de premissa de trama, a produção em questão não passa de uma bobagem escapista. Sorte que o diretor Gavin O’Connor, o mesmo do excelente “Guerreiro” (2011), consegue oferecer um senso narrativo envolvente e faz com que o roteiro sobre um contador autista com apurado treinamento militar que desvenda e destrói uma conspiração corporativa consiga gerar alguma tensão e interesse para o espectador. As cenas de ação envolvendo lutas e tiroteios são coreografadas com clareza e filmadas com uma fotografia elegante. Esse formalismo concebido por Gavin O’Connor é até previsível, entretanto é executado com precisão e convicção. Até a habitual inexpressividade de Ben Affleck consegue ser aproveitada dramaticamente tendo em vista o distúrbio do protagonista. E é interessante também notar que mesmo uma história repleta de inverossimilhanças como a apresentada no filme revela um subtexto um tanto nebuloso, na forma com que a lei e seus respectivos agentes (policiais, políticos e afins) são retratados como ineficientes na busca de justiça, e reforçando a necessidade de indivíduo suprir tais “lacunas” com iniciativas próprias truculentas. Os fãs da barbárie de toga no Brasil provavelmente vão se identificar...

quinta-feira, novembro 03, 2016

Lolo: O filho da minha namorada, de Julie Delpy ***

A filmografia de Julie Delpy como diretora parece girar dentro de uma fórmula narrativa simples – crônicas familiares que além da reflexão sobre as relações pessoais também apresentam um subtexto sócio-político. Dentro desse conceito artístico, o ponto alto da carreira da cineasta é o extraordinário “O verão do Skylab” (2011). “Lolo: O filho da minha namorada” (2015) não apresenta o mesmo nível de qualidade, mas ainda assim tem os seus pontos inquietantes. Num primeiro momento, o espectador se sente envolvido pelos eficientes truques cômicos relacionados aos planos perversos do jovem Lolo (Vincent Lacoste) para acabar com o namoro de sua mãe, a cosmopolita Violette (Delpy), com o ingênuo interiorano Jean-René (Dany Boon), rendendo algumas divertidas cenas que envolvem um humor físico que beira o pastelão e o escatológico. Numa visão mais atenta da trama e mesmo da encenação concebida por Delpy, entretanto, pode-se perceber algo de sombrio e irônico em detalhes como a caracterização psicótica de Lolo, a violência física e psicológica de algumas das “brincadeiras” do personagem-título e as sutis ironias que se fazem em determinadas situações do roteiro que envolvem questões de classe e a atual situação econômica da Europa. De se considerar também a crueza de alguns diálogos a expor a sexualidades e as seguranças existenciais de uma mulher adulta na sociedade contemporânea. Ainda que o final feliz agridoce do filme represente uma espécie de concessão típica de uma comédia romântica, “Lolo” reforça a impressão de que Delpy possui um traço autoral na forma com que elabora suas narrativas cinematográficas.

terça-feira, novembro 01, 2016

Demônio de neon, de Nicolas Winding Refn ****

A obra-prima “Drive” (2011) se provou como uma extraordinária exceção dentro do estilo habitual do diretor Nicolas Winding Refn, pois era uma obra marcada por uma narrativa precisa e de formalismo clássico que se adaptava de acordo com a marca autoral do cineasta. Nas demais produções de sua filmografia, o dinamarquês investe numa abordagem que valoriza muito mais o sensorial e o atmosférico do que os meandros do roteiro, vide filmes antológicos como “O guerreiro silencioso” (2009) e “Apenas deus perdoa” (2013). “Demônio de neon” (2016) é uma continuação dos preceitos artísticos de Refn – imagine-se um conto moral às avessas sobre a beleza e a inocência marcado por uma ambientação difusa de hedonismo, horror e delírio onírico e se pode ter uma ideia do que representa essa estranha narrativa. As referências visuais e temáticas são diversas e insólitas, como o horror sensual e barroco de Mario Bava, as nuances enigmáticas de David Lynch, o realismo de corres berrantes de algumas produções oitentistas (leia-se “O fundo do coração” e “Dublê de corpo”). Refn amarra todas essas influências e citações dentro de uma linguagem coesa e particular, fazendo o espectador entrar num vórtice de loucura, violência e erotismo, ora repugnante, ora bizarramente encantador. O esmero estético se manifesta em cada detalhe do filme e não se reduz a mero exibicionismo técnico, revelando notável sintonia existencial com a própria natureza misteriosa e simbolista do roteiro, conforme pode ser observado na climática trilha sonora de temas eletrônicos, na fotografia que varia com notável desenvoltura entre o sombrio sutil e o luminoso exagerado, na encenação de síntese desconcertante entre o naturalismo e o estilizado, na caracterização maneirista e icônica dos personagens. Por falar nisso, é curioso perceber que no elenco da produção está Karl Grusman, que atuou no papel principal de “Love” (2015), de Gaspar Noé, cineasta que é uma espécie de gêmeo criativo existencial de Refn.

segunda-feira, outubro 31, 2016

A nona vida de Louis Drax, de Alexandre Aja ***1/2

O diretor francês Alexandre Aja é um dos nomes mais interessantes a terem surgidos no panorama mundial do cinema fantástico nos últimos anos. Sua filmografia é baseada numa síntese artística bastante pessoal e marcante, combinando grafismo exagerado, senso narrativo preciso e atmosferas entre o doentio e o delirante, vide obras memoráveis como “Alta tensão” (2003), “Viagem maldita” (2006) e “Piranha 3D” (2010). Em sua obra mais recente, “A nona vida de Louis Drax” (2015), Aja mantém a sua marca autoral e ainda envereda por uma insólita recriação do suspense psicológico característico de algumas produções de Alfred Hitchcock (principalmente o clássico “Quando fala o coração”) sob um prisma de conto fabular à maneira de Tim Burton e Guillermo Del Toro. Essa junção de elementos estéticos diversos acaba tendo um resultado final bastante coeso. A trama é algo rocambolesca, repleta de flashbacks e alternando inclusive planos dimensionais (o real, o imaginário e o onírico), mas Aja consegue dar uma unidade impressionante e nada confusa dentro desses universos temporais e existenciais paralelos. Os elementos psicanalíticos podem parecer manjados num primeiro momento ao versarem sobre pulsões homicidas, desejos sexuais difusos, o mar como símbolo da segurança materna e mitomania, mas com o tempo eles acabam se revelando funcionais e intrigantes, ainda mais quando se integram ao apuro visual expressivo de Aja e a sua dinâmica narrativa que emula uma verdadeira jornada dentro de um pesadelo úmido e sombrio. Dentro dessa lógica artística peculiar e marcada pela morbidez romântica, o cineasta também acerta na forma com que dirige o seu elenco, de quem arranca algumas composições dramáticas antológicas, com destaque para a caracterização meio alucinada do garoto Aiden Longworth no papel título e para atuação no estilo “loira enigmática e fatal” de Sarah Gandon (e que faz lembrar algumas personas inesquecíveis nessa linha criadas por Hitchcock).

sexta-feira, outubro 28, 2016

Terra estranha, de Kim Farrant ***1/2

As regiões desérticas da Austrália têm um histórico interessante como cenário expressivo de produções relevantes na história do cinema, vide produções antológicas como “A longa caminhada” (1971), “O corte da navalha” (1984), “A proposta” (2006) e toda a franquia “Mad Max”. Essa fascinante tradição se mantém em “Terra estranha” (2015), obra em que o deserto australiano funciona quase como se fosse um personagem próprio da trama, ditando não só as intempéries físicas sofridas pelos indivíduos como também servindo de fator simbólico das confusões existenciais de tais figuras. Em sua superfície, o roteiro tem como mote principal o desaparecimento de um casal de jovens irmãos numa árida cidade interiorana e toda a sorte que dúvidas e suspeitas que um evento como esse pode suscitar. A diretora Kim Farrant usa alguns clichês narrativos do gênero suspense, mas essa rendição ao convencional é ilusória. Aos poucos, a narrativa vai se tornando cada vez mais atmosférica e misteriosa, dando vazão a uma série de cenas marcadas por um perturbador misto de languidez a flor-da-pele, desejos difusos e frustrações sentimentais. A procura pelos adolescentes vai se tornando um processo de expiação de culpas e acerto de contas com o passado obscuro dos personagens. Farrant acerta no alvo ao não se preocupar com as aparentes pontas soltas da trama, levando mais em conta as consequências psíquicas dos fatos do que se concentrando em encontrar “bandidos”, o que fica evidenciado na poética, enigmática e algo libertária conclusão do filme. A abordagem estética adotada por Farrant para essa saga existencial é outro grande acerto, com uma direção de fotografia magnífica a explorar a riqueza de nuances imagéticas proporcionada pelos cenários desérticos em termos de iluminação e enquadramentos, além da climática trilha sonora que acentua ainda mais a síntese de mistério e delírio da narrativa. De se considerar ainda as atuações de Nicole Kidman e Joseph Fiennes, que entregam algumas das composições dramáticas mais complexas de suas carreiras.

quinta-feira, outubro 27, 2016

A passageira, de Salvador Del Solar ***

Assim como na produção argentina “Kóblic” (2016), o filme peruano “A passageira” (2014) procura formatar uma reflexão sobre a ditadura militar na América Latina dentro de uma estrutura de cinema de gênero (no caso, o suspense policial). Se na citada obra portenha tal propósito fica apenas na intenção, ainda que resulte num divertido faroeste reciclado, no trabalho do diretor Salvador Del Solar essa síntese entre questionamento político-social e formatação de gênero soa mais homogênea e convincente, tendo como principal responsável para isso um roteiro muito bem delineado em seu desenvolvimento e subtextos. Há nuances na trama que revelam um forte caráter simbólico a refletir uma sociedade marcada pela opressão e exploração de classes. Nesse sentido, a figura da personagem Celina (Magaly Solier), nativa de uma vila indígena exterminada por militares na época da ditadura, é bastante emblemática – quando adolescente, abusada por militares; na fase adulta, explorada por agiotas e picaretas de classe média alta. Seu discurso final, indignado e no seu dialeto nativo, representa a cena mais memorável de “A passageira” no seu misto de fúria e frustração. A abordagem formal e textual de Del Solar para a história que conta é marcada por uma sobriedade admirável, ainda que a narrativa se ressinta de um certo excesso de convencionalismos. Ainda assim, “A passageira” consegue preservar a sua capacidade de inquietar e se fixar por um tempo no imaginário do espectador.

quarta-feira, outubro 26, 2016

Kóblic, de Sebastián Borensztein ***

O diretor argentino Sebastián Borensztein dá a impressão de querer realizar uma revitalização de clichês de filmes de gênero. No medíocre “Um conto chinês” (2011), fez uma espécie de recriação pálida de comédia romântica, ainda que procurasse dar uma aparência ilusória de realismo dramático. Em sua mais recente empreitada, “Kóblic” (2016), o cineasta busca uma espécie de síntese entre drama político e policial, mas o que realmente atinge como resultado final é um faroeste reciclado e por vezes até bem divertido. O roteiro insinua uma pretensa seriedade ao evocar o drama de desaparecidos políticos que na verdade eram jogados ao mar por agentes da repressão no período da ditadura militar argentina nos anos 70 e 80. Mas essa aura solene é jogada por terra diante dos furos da trama – se o protagonista Kóblic (Ricardo Darín) quer tanto ficar incógnito numa cidadezinha fim de mundo do interior, por que se expõe tanto saindo para beber no único bordel da região e também tendo um caso com a companheira de um tipinho violento e execrável? Isso sem contar que em algumas sequências o filme se perde em excessos melodramáticos, principalmente nas partes românticas. Na verdade, a melhor forma de encarar “Kóblic” é como se fosse um tipo de versão fuleira para “Os brutos também amam” (1953). A caracterização do delegado vilão Velarde (Oscar Martinez), por exemplo, é um primor de escrotidão e sordidez. E o terço final repleto de duelos e mortes encenados com boa dinâmica e detalhamento visual é bem memorável. Em tais cenas, Borensztein consegue dar uma certa ambientação mitológica cativante para a sua obra, e com Darín conseguindo tendo uma interessante altivez icônica para o seu personagem que faz lembrar algo do enigmático cowboy Shane.

terça-feira, outubro 25, 2016

Festa da salsicha, de Conrad Vernon e Greg Tiernan ***1/2

É intrigante que um dos filmes mais ácidos e contestadores da atual temporada seja uma animação norte-americana cômica, desbocada e escatológica. Mas esse é exatamente o caso em “Festa da salsicha” (2016). O filme dos diretores Conrad Vernon e Greg Tiernan obedece a uma estrutura narrativa fabular básica no gênero das animações, em que uma trama repleta de aventura e alguns toques românticos traz em suas entrelinhas uma “moral da história” envolvendo superação e amadurecimento, com direito, inclusive, a momentos musicais entre o apoteótico e o meloso. Só que o roteiro que mostra alimentos antropomorfizados de um supermercado que tomam consciência de que servem somente para saciar a fome dos deuses gigantes (no caso, os seres humanos) na realidade se mostra uma corrosiva diatribe contra alguns dos valores mais caros da sociedade contemporânea. Na visão da obra, a religião só serve para iludir ignorantes incautos para que esses não questionem uma realidade de opressão e exploração, fazendo com que uma classe dominante se beneficie dessa alienação (não faz lembrar um certo país que teve um golpe de estado recentemente com a colaboração de uma direita evangélica?). E a melhor resposta para tal empulhação mística seria a revolta violenta, além de uma filosofia de vida baseada num hedonismo libertário. “Festa da salsicha” consegue formatar esse discurso ousado e humanista em uma narrativa bastante divertida e movimentada, além de trazer um grafismo marcante na forma com que violência, sexo e escatologia são expostos em cena. Caros pais, não se assustem com a faixa etária, essa é a animação que seus filhos devem ver!!

segunda-feira, outubro 24, 2016

Meu amigo, o dragão, de David Lowery **1/2

Dá para perceber em “Meu amigo, o dragão” (2016) uma certa abordagem conceitual diferente. Tanto em sua estética quanto no conteúdo, o filme do diretor David Lowery parece querer recuperar uma atmosfera setentista em termos de atmosfera e construção narrativa. Há um caráter de crônica nostálgica e ingênua aliada a um viés ecológico na forma com que a trama é apresenta na tela. Essa concepção provavelmente vem do fato da produção ser uma refilmagem de uma animação de 1977. Diante de tais escolhas artísticas, a obra de Lowery até tem algum encanto em determinadas passagens, fruto de uma encenação bem coreografada na combinação de trucagens digitais e interação entre os personagens. Por outro lado, essa ambientação agridoce por vezes retira a capacidade do filme em gerar tensão para a plateia, o que seria fundamental dentro de um trabalho no gênero aventura fantástica juvenil. Dá até para entender que se buscou um perfil mais humano na caracterização dos dilemas e críticas comportamentais presentes no roteiro, mas no geral essa coisa de fofice excessiva faz com que os vilões e ameaças que surgem ao longo da história se mostrem poucos críveis ou assustadores.

quinta-feira, outubro 20, 2016

O botão de pérola, de Patrício Gusmán ***1/2

No seu primeiro terço de duração, o documentário chileno “O botão de pérola” (2015) sugere ao espectador em sua formatação como se fosse uma versão mais apurada e artística daquelas produções televisivas de canais como Discovery ou History Chanel a versar sobre a importância da água na sobrevivência e desenvolvimento da humanidade. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, o diretor Patrício Gusmán vai desviando de maneira sutil sua obra para um viés sócio-político-cultural desconcertante, traçando um desolador retrato do massacre dos povos nativos de seu país e relacionando com o brutal massacre de perseguidos políticos na ditadura de Pinochet, cujos corpos eram jogados no meio do oceano. Mais que um simples manifesto panfletário, o caráter humanista e poético da abordagem de Gusmán consegue combinar com coerência e sensibilidade essa ampla temática dentro de uma linguagem cinematográfica apurada e de uma visão existencial complexa, em que todos os aspectos da narrativa se entrelaçam com desenvoltura – fotografia grandiosa, engenhosas trucagens visuais, atmosfera e trilha sonora solenes, roteiro repleto de preciosas nuances textuais valorizadas pela etérea narração do próprio Gusmán. Nessa estranha e encantadora síntese artística concebida pelo cineasta, a antropologia e o fantástico convivem de maneira harmônica dentro um fascinante e bizarro universo.

quarta-feira, outubro 19, 2016

Um dia perfeito, de Fernando León de Aranoa ***

O cineasta espanhol Fernando León de Aranoa havia demonstrado notável domínio narrativo e sensibilidade no trato de temática social no extraordinário “Segunda-feira ao sol” (2001). Ainda que sem o mesmo grau de brilho artístico do filme mencionado, “Um dia perfeito” (2015) mostra que Aranoa permanece com suas mencionadas qualidades. O tema da trama é espinhoso – o cotidiano de um grupo de ajuda humanitária no conflito dos Bálcãs em meados dos anos 90. Ocorre que a abordagem é diferenciada e surpreendente, pois, ainda que preserve a forte aura dramática, há uma certa atmosfera de ironia e absurdo que predomina sutilmente por todo o filme, fazendo lembrar de leve a clássica comédia de guerra “MASH” (1970). Tal orientação existencial da narrativa revela uma coerência pertinente, em que as desventuras sentimentais do responsável de segurança Mambrú (Benicio Del Toro) e a obsessão por velocidade, perigo e rock and roll do motorista B (Tim Robbins) funcionam como válvulas de escape emocionais diante de uma rotina repleta de morte, destruição e barbárie de um conflito étnico-político. O subtexto do roteiro guarda ainda uma crítica ao olhar hipócrita e moralista que o mundo ocidental tem sobre a guerra naquela região, em que alegações e julgamentos de que tais lutas e demais atitudes delas advindas sejam “sem sentido” se revelam estéreis, pois na verdade os reflexos de tal conflito apenas demonstram valores e dilemas típicos da sociedade capitalista contemporânea. No mais, a notável interação entre o elenco homogêneo em boas atuações e a ótima trilha sonora roqueira se mostram em sintonia com as soluções narrativas e temáticas de Aranoa, fazendo de “Um dia perfeito” uma inquietante obra a refletir sobre a natureza das guerras no mundo atual.

terça-feira, outubro 18, 2016

Nosso fiel traidor, de Susanna White ***

Dentro do universo das adaptações cinematográficas de obras literárias do escritor John Le Carré, “Nosso fiel traidor” (2015) está longe do brilhantismo de produções extraordinárias como “O alfaiate do Panamá” (2001) e “O espião que sabia demais” (2011), mas também não chega perto de induzir ao sono como “A casa da Rússia” (1990) e “O homem mais procurado” (2014). O filme da diretora Susanna White até começa um pouco claudicante, principalmente na breguice da sua sequência de abertura e também por uma encenação soando excessivamente mecânica. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, a fórmula estética-temática ganha mais corpo e a tensão se mostra mais efetivamente presente. Os truques do roteiro são óbvios, típicos das tramas de espionagem de Le Carré, mas são desenvolvidos com eficiência e convicção. A direção de fotografia valoriza o exotismo e beleza dos cenários cosmopolitas e paisagens naturais que aparecem ao longo da história, há uma atmosfera que alterna habilmente entre a elegância contida e a leve sensualidade, prepondera um clima constante de mistério e suspense que provoca algum frio no estômago do espectador e algumas cenas guardam um poder imagético forte na sua simbologia (a sequência final com o protagonista Perry Makepeace andando na contramão de uma pequena multidão é um achado). No mais, as boas atuações carismáticas de Ewan McGregor, Stellan Skarsgard e Damian Lewis acentuam a notável sobriedade formal de “Nosso fiel traidor”.