segunda-feira, agosto 26, 2019

Abaixo a gravidade, de Edgar Navarro ***1/2


Talvez em tempos mais tranquilos e menos brutalizados, um filme como “Abaixo a gravidade” (2019) poderia ser analisado como uma obra a versar com melancolia e ironia, além de um viés surrealista, sobre a velhice, em que a conexão com o filme mais celebrado de seu diretor, “Superoutro” (1989), está justamente no contraponto em que este último representaria uma explosiva manifestação estética e existencial enquanto que no longa mais recente esse caráter de intensa anarquia artística foi filtrado por um olhar mais sereno (ainda que igualmente desconcertante). Mas já que “Abaixo a gravidade” foi lançado em meados de 2019, com o país dominado pelo designíos de uma besta-fera e seus fervorosos admiradores/defensores, o trabalho de Navarro ganho uma conotação ainda mais ampla e desafiadora. A trajetória do idoso Bené (Everaldo Pontes) em busca de algum sentido em sua vida em meio a um caos social e à indiferença de boa parte da sociedade se enquadra em uma narrativa libertária e a um roteiro repleta de bizarras e poéticas simbologias. Bené busca para sua vida uma síntese de paz interior, justiça social e possibilidade de extravasar sua sexualidade e acaba esbarrando em mundo cada vez mais neurótico e desigual. Na condução dessa pequena saga intimista, Navarro insere elementos de ficção científica e algo de nonsense, sem nunca perder, entretanto, a coesão de encenação e narrativa. Assim, aquilo que se inicia com uma abordagem realista ao poucos se manifesta tanto como sombria fábula quanto como onirismo encantador.

quinta-feira, agosto 08, 2019

Estou me guardando para quando o carnaval chegar, de Marcelo Gomes ****


Pode-se dizer que “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” (2019) tem como produção gêmea em termos artísticos/existenciais outra obra expressiva do cinema nacional recente, a obra-prima “Arábia” (2017). Em ambos os filmes, há uma visão humanista crítica e sutil sobre o “progresso” sócio-econômico no Brasil deste século (e mesmo milênio) dentro de estruturas estéticas-formais em que gêneros cinematográficos tradicionais são pervertidos com elementos narrativos insólitos. No caso do documentário de Marcelo Gomes, uma obra que a princípio poderia parecer uma investigação beirando o jornalístico-histórico sobre uma cidade do interior pernambucano aos poucos se converte em um amargo e irônico ensaio sensorial sobre os descaminhos da sociedade capitalista contemporânea, com direito ainda a um certo viés intimista/memorialista. O resultado final é desconcertante, principalmente no confronto que se estabelece na visão de Gomes entre um passado idealizado e mais humanizado e um presente marcado pela opressão mal disfarçada da busca arrivista e incessante de ascensão sócio-econômica que automatiza e brutaliza as individualidades. Entre os registros secos do cotidiano de trabalho manual e mecânico constante e dos depoimentos entusiasmados daqueles que “venceram” na vida, são inseridos na narrativa trechos reveladores de um atávico caráter desafiador e malandro de parte dessas pessoas que ainda resistem, mesmo sem saber, em se deixar suplantar totalmente por essa lógica conformista do “trabalho dignificante”. Nesse sentido, o terço final da narrativa, quando a população de Toritama desarma o seu conservador discurso “pró-trabalho eterno” e se rende a alguns dias de diversão inconsequente no carnaval, é revelador dessa condição de rebeldia e contestação quase involuntária que marca tanto o filme de Gomes quanto a própria natureza de parcela do povo brasileiro.

quarta-feira, agosto 07, 2019

The mongolian connection, de Drew Thomas ***


Dentro dos cada vez mais restritivos (e obscuros) critérios de escolhas do mercado de distribuição de filmes no Brasil, talvez o destino de “The mongolian connection” (2019) fosse o de ser exibido por aqui em algum serviço de streaming e olhe lá (até porque nem em DVD mais esse tipo de filme tem chegado por aqui – afinal, ainda existe locadora disso?). Graças ao FANTASPOA, entretanto, o espectador porto-alegrense teve a chance de ver essa produção policial norte-americana independente na tela grande. Não há nada de particularmente original no filme, mas é uma reciclagem bem eficaz e divertida de clichês do gênero. As coreografias de tiroteios, porradarias e perseguições automobilísticas são bem-feitas, encenação e caracterizações garantem alguma densidade dramática e o roteiro até oferece exotismo ao situar grande parte da ação na Mongólia. Ou seja, o diretor Drew Thomas pode estar distante de ser um Michael Mann, mas pelo menos entrega um filme policial bem decente e que sustenta o interesse do espectador por uma hora e meia. O que não deixa de ser um feito.

segunda-feira, agosto 05, 2019

Deodato Holocaust, de Felipe Guerra ***


Quem acompanha o trabalho de Felipe Guerra sabe que ele, além de cineasta, é um misto de admirador, incentivador e estudioso do gênero fantástico no cinema, indo de clássicos do estilo até as mais excêntricas obscuridades e tranqueiras do gênero. Assim, um filme como o documentário “Deodato Holocaust” (2019) serve não apenas como uma interessante amostragem da carreira artística do cineasta italiano Ruggero Deodato como também evidencia essas diferentes facetas do próprio Guerra. A escolha narrativa de priorizar como fio condutor um longo depoimento de seu protagonista é arriscada, pois poderia fazer com que o longa tivesse um caráter estritamente histórico e jornalístico. Guerra evita que seu filme caia nessa armadilha ao usar uma edição que sabe conciliar com uma dinâmica inteligente trechos com declarações contundentes de Deodato e expressivas imagens de arquivos e dos filmes mencionados pelo diretor. Além disso, a entrevista ainda consegue evitar a simples enumeração de fatos e datas, fazendo com que seu protagonista profira declarações que variam entre confissões existenciais e artísticas e um misto de ironia e desafio na forma com que Deodato enfrenta os pontos mais polêmicos levantados nas perguntas feitas por Guerra e equipe (principalmente no que diz respeito à toda controvérsia que envolveu a realização e lançamento de “Canibal holocausto”). E no que era para ser um simples documentário biográfico de um diretor, a obra destaca de maneira sutil um subtexto que faz o retrato de uma geração de artistas que desenvolveram seus trabalhos dentro dos ditames comerciais e estéticos da época (anos 60 e 70 e primeira metade dos 80), mas que preservaram um senso artístico particular, herdeiro da influência de alguns mestres que os antecederam e com quem até mesmo trabalharam (Dario Argento, Mario Bava e Deodato foram colaboradores, respectivamente, de Sergio Leone, Federico Fellini e Roberto Rossellini).