sexta-feira, março 29, 2019

Nós, de Jornan Peele ***1/2


Há um forte ponto comum entre “Nós” (2019) e “Corra!” (2017), o filme anterior do diretor Jordan Peele – são narrativas que em suas metades iniciais se formatam no gênero horror, mas que depois adquirem traços de ficção científica (ainda que sempre carregadas no grafismo sangrento), principalmente no sentido de que procuram uma causa “científica” para aquilo que aparentemente seria sobrenatural. No filme mais recente, Peele até investe mais em uma sutil simbologia do que em amarrar pontas soltas da trama. Assim, a efetiva força da obra está em sua vigorosa encenação e em algumas nuances do roteiro. Nesse sentido, é interessante reparar como aquela primeira sequência da praia, aparentemente “amena”, seja bastante reveladora de um subtexto bem ácido na forma com que disseca as hipocrisias e tensões nas relações humanas dentro de uma sociedade capitalista marcada por diferenças de classes e raciais – em meio a conversas civilizadas entre os membros de duas famílias à beira-mar se pode constatar sutis ressentimentos e invejas entre os dois clãs. Quando a narrativa chega finalmente nos momentos de violência e ação mais predominantes tais conflitos que se encontravam antes em um plano platônico/existencial se materializam com fúria desmedida – a família de Adelaide (Lupita Nyong’o) pode até se valer da brutalidade para fins de sobrevivência, mas também revela uma certa facilidade na forma com que ferem e matam seus antagonistas (principalmente os duplos da família com que haviam se encontrado na praia). Talvez isso seja o mais perturbador em “Nós” – a de como a fronteira entre a civilização e a luta bárbara pela sobrevivência é tênue. Por mais que haja a justificativa da presença de duplos perversos e selvagens, o limite que os separa das pessoas “normais” não apresenta tantas dificuldades em ser transposto. Um cenário que beira o apocalíptico parece ser encarado pelos personagens (e o mundo que os cerca) quase como se fosse um caminho natural para a humanidade.

quinta-feira, março 28, 2019

As filhas do fogo, de Albertina Carri ***1/2


Desde que se convencionou como gênero cinematográfico, a pornografia, na grande maioria de suas produções, tem como pilares estéticos-existenciais pelos menos dois grandes princípios – suas coreografias eróticas visam satisfazer desejos e fantasias eminentemente masculinas e aquilo que se poderia entender como roteiro na verdade seria mero pretexto para várias sequências de sexo explícito. Em “As filhas do fogo” (2018), a diretora argentina Albertina Carri brinca e subverte com tais fundamentos na forma com que articula a sua narrativa. Não se trata de uma obra essencialmente pornográfica, mas sim de um drama político-existencial de questionamento do patriarcalismo e de exposição/valorização do prazer feminino que incorpora elementos da pornografia. Há um senso de presença de trama, com essa, entretanto, se esvanecendo aos poucos, sem a necessidade de existência dos mecanismos convencionais da escrita para cinema, para que o filme se converta em um fluxo sensorial de erotismo, poesia, ensaio filosófico/visual e onirismo. Ou seja, o roteiro que se submete aparentemente ao furor erótico e libertário de transas homoeróticas femininas. O fato de uma das personagens principais ser uma cineasta acentua ainda mais a impressão de uma obra de caráter artístico que beira o metalinguístico na forma com que expõe seus questionamentos temáticos e os seus dilemas estéticos. A grande quantidade e variedade de sequenciais de sexo não implica em uma saturação dos sentidos, mas sim na configuração da possibilidade de amplitude dos papeis sexuais nessas relações sentimentais-carnais (ativo e passivo, dominador e dominado, feminilizado e masculinizado). No choque de preceitos de gêneros cinematográficos distintos a sensação primordial é de que a narrativa se quebra e se torna uma estrada que nunca termina, sem a necessidade de uma conclusão moralizante ou uma solução final para as suas personagens. Bastam que elas existam e transem para sempre...

terça-feira, março 26, 2019

A casa de veraneio, de Valeria Bruni Tedeschi ***1/2


As produções francesas “A casa de veraneio” (2018) e “Uma casa à beira-mar” (2017), ainda que aparentemente de forma involuntária, guardam fortes conexões artísticas-existenciais – são obras que partem de início de uma abordagem de caráter intimista ao retratar conturbadas relações familiares e amorosas, mas que aos poucos vão se configurando como sutis alegorias sócio-políticas a retratar a crise moral e ideológica do mundo ocidental contemporâneo. Se o filme de Robert Guédiguian tem uma narrativa de caráter francamente realista, o longa dirigido pela também atriz Valeria Bruni Tedeschi por vezes se permite inserir perturbadores toques oníricos e metafísicos. “A casa de veraneio” tem sua força concentrada em uma encenação vigorosa e em um roteiro repleto de achados de simbologia que variam entre a ironia cortante e a pungência. Se por um lado a trama focaliza as dores sentimentais da protagonista Anna (Tedeschi) e os conflitos repletos de ressentimentos de sua família em uma mansão de veraneio na Côte d’Azur, por outro também revela o cotidiano de exploração e alienação de seus empregados perdidos entre frustrações pessoais e escapadas eróticas. A contraposição entre tais classes sociais parece evocar os jogos sexuais e sardônicos de “A regra do jogo” (1939), clássico do cinema francês. Esse vórtice de desejos e sentimentos é captado por Nathalie (Noémie Lvovsky), uma escritora/roteirista de esquerda convidada na mansão e que é atropelada/tragada por toda essa situação confusa. Se Ana, diretora de cinema, vê todo o caos ao seu redor como fonte de inspiração para seus filmes, refletindo uma postura de egoísmo e até alguma indiferença pelos desdobramentos beirando o trágico de todos esses conflitos, Nathalie procura a reflexão crítica ao observar uma situação que serve como metáfora de uma Europa já desgastada pelos opressivos valores sócio-econômicos neoliberais. Nesse sentido, a presença da filha adotiva negra e africana de Ana na trama está muito longe do gratuita – na sua doçura infantil e mesmo na sua surpreendente lucidez sobre a realidade dos “adultos” que estão à sua volta, fica evidente a projeção de um futuro de renovação para a Europa que passa longe de velhos padrões brancos, colonialistas e patriarcais.

sexta-feira, março 22, 2019

Onde está você, João Gilberto?, de Georges Cachot ***


Um diretor francês faz uma reconstituição audiovisual do percurso de um escritor alemão que veio ao Brasil e tentou se encontrar pessoalmente com o mestre da bossa nova João Gilberto. A premissa da trama do roteiro do documentário “Onde está você, João Gilberto?” (2018) pode fazer parecer que a produção dirigida por Georges Cachot se trata apenas de mero exotismo ou excentricidade cômica. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, o filme vai adquirindo de maneira sutil contornos mais sombrios e misteriosos. Até porque logo no início se fica sabendo que Marc Fischer, o mencionado escritor germânico, acabou por cometer suicídio pouco depois de concluir o livro em que narrava a sua busca infrutífera por um encontro com seu ídolo musical. A motivação de livro e filme em suas respectivas buscas é a arte serena e sofisticada perpetrada pelo músico baiano, mas o resultado final da produção é bem distante dessa leveza artística. O que fica evidente em cena é um estudo algo perturbador sobre a obsessão doentia em vários de seus níveis, indo do desejo exagerado de Fischer e Cachot em ver de perto João Gilberto até o comportamento beirando maníaco do cantor e violinista em manter a sua privacidade a qualquer custo. No processo, o filme acaba fazendo uma espécie de inventário existencial/artístico da bossa nova e seus desdobramentos ao juntar depoimentos e números musicais de alguns dos principais personagens do movimento como Marcos Valle, João Donato e Miúcha, com destaque para a entrevista com Roberto Menescal, quando esse descreve João Gilberto como uma fonte de negativismo com suas manias e esquisitices a obrigar aqueles que estão à sua volta a lhe obedecerem de maneira quase incondicional. Diante de uma procura que vai se tornando cada vez mais sem saída, Cachot perverte a própria obra, que em seus momentos finais abandona o puro cinema verdade e adquire o formato de uma encenação a refletir um desejo que nunca sairá do plano platônico (ou dos sonhos?).

quinta-feira, março 21, 2019

Gimme danger, de Jim Jarmusch ***


Para quem conhece a trajetória de Jim Jarmusch e gosta de Stooges, “Gimme danger” (2016) pode ser um tanto decepcionante. Jarmusch sempre demonstrou ter uma ligação forte com a música em seus filmes, vide obras memoráveis como “Trem mistério” (1989) e “Year of the horse” (1997). A carreira dos Stooges foi marcada por grandes doses de confusão, bizarrices e sordidez, matéria-prima que seria um prato cheio para um cineasta mais afeito à cultura underground como Jarmusch. O documentário que conta a história da banda, entretanto, peca por um tratamento por vezes excessivamente reverente e convencional, beirando o institucional. O terço final da narrativa, por exemplo, é um balde de água fria ao captar o processo de aceitação dos Stooges pelo establishment/mainstream, com direito, inclusive, a entrar no Rock and Roll Hall of Fame, premiação de viés ostensivamente conservador. Apesar de tais escorregadas, o filme ainda assim merece conferida por dois motivos óbvios: a música dos Stooges em seu período mais produtivo (segunda metade dos anos 60 e primeira dos 70) configura uma das melhores páginas da história do rock e Jarmusch é um diretor muito acima da média mesmo em trabalhos menos inspirados. Há farto e precioso material de arquivo a mostrar os anos loucos de existência dos Stooges, além de alguns depoimentos entre o cômico e o pungente de ex-integrantes, e em alguns momentos Jarchusch consegue dar uma dinâmica narrativa interessante para todo esse conteúdo. Ou seja, no mínimo “Gimme danger” consegue ser informativo e divertido.

quarta-feira, março 20, 2019

Lazzaro felice, de Alice Rorwacher ****


A fronteira entre o realismo e o fantástico já havia sido explorada de maneira memorável pela diretora Alice Rohrwacher em “As maravilhas” (2015). Em “Lazzaro felice” (2018) ela retoma essa abordagem artística com vigor e originalidade ainda maiores. A obra é algo como se o naturalismo poético de “A árvores dos tamancos” (1978) fosse contaminado pelos tons alegóricos das narrativas audiovisuais de Pasolini. A primeira parte do filme, desenvolvida no âmbito rural, evoca um neo-realismo tardio, mas pertinente, expondo um subtexto de forte teor de crítica social relativo a exploração econômica e cultural. Na segunda parte da narrativa, com a ação se voltando para um contexto urbano, a atmosfera envereda por uma síntese estranha entre a ironia e o místico, mas permanecendo com sutileza uma visão sócio-econômica pessimista sobre as relações humanas. A obra aos poucos vai se configurando como uma parábola religiosa, em que algumas passagens da trama são claras citações a histórias bíblicas. Ao invés de acentuar beatitude ou alguma transcendência mística, entretanto, tais citações à religiosidade cristã acabam se revelando como ácidas alfinetadas na hipocrisia moral da sociedade contemporânea, estabelecendo as contradições do discurso religioso institucional com os sentimentos e atitudes de mesquinharia e perversidade inerentes a um ordenamento capitalista-cristão. Nessa sua obra-diatribe, Rorwacher estabelece algo de atemporal em sua abordagem estética-existencial, em que passado e presente se mostram por vezes quase indistintos quando se trata de expor que os mecanismos de opressão sobre os desfavorecidos pouco se alteraram nos últimos séculos.

terça-feira, março 19, 2019

Roma, de Alfonso Cuarón ****


Depois de passar quase duas décadas envolvido com produções dentro do gênero fantástico (onde foi muito bem-sucedido, por sinal), o diretor mexicano Alfonso Cuarón volta a trabalhar na linha do drama que alia intimismo e temática social, na intenção de formar uma espécie de panorama sócio-político-existencial do seu país. Se em “E sua mãe também” (2001) ele focava o seu olhar nos preconceitos e desventuras afetivas da classe média alta, em “Roma” (2018) a trama se concentra de maneira mais aguda na rotina dos desfavorecidos social e economicamente, mais especificamente dos descendentes indígenas, ainda que haja a presença forte do quotidiano de uma família pequeno-burguesa. Para isso, Cuarón aposta em uma fórmula narrativa de talhe clássico – direção de fotografia de tons que beiram o épico, edição de ritmo sereno e atmosfera de sobriedade emocional (ainda que o roteiro tenha fortes pendores sentimentais). Nessa rigorosa concepção estética-temática, o que tinha tudo para cair no melodrama excessivo acaba se configurando em um impiedoso retrato da injustiça social, da alienação política e dos conflitos de classe. O esmerado trabalho imagético e a sutileza da encenação realçam de maneira contundente os sentimentos de opressão, exploração e desesperança que rondam o dia-a-dia da protagonista Cleo (Yalitza Aparício), sem que ela mesmo perceba com clareza tudo que se passa com ela. Cuarón não busca soluções fáceis para os dilemas da trama e nem ameniza o seu formalismo angustiante para tornar as coisas palatáveis para o espectador. Pelo contrário – a meia-hora final de “Roma” dispensa a idealização banal de uma conciliação ilusória entre os seus atores sociais, enfatizando ainda mais a crueldade e hipocrisia de uma sociedade patriarcal-cristã-capitalista em relação às camadas mais humildes e a incapacidade dessas em se revoltar de maneira efetiva contra quem lhes impõe condições degradantes de vida.

segunda-feira, março 18, 2019

Imagem e palavra, de Jean-Luc Godard ****


A primeira conexão que me veio à mente ao assistir a “Imagem e palavra” (2018) foi com o disco “Endtroducing...” de DJ Shadow. No álbum em questão, canções e sonoridades se formam a partir de colagens insólitas de trechos de outras canções, sons ambientais, diálogos e batidas, com um resultado final cuja estranha beleza não está em um acabamento formal límpido, mas exatamente em uma ambientação entre a sujeira desconexa e a musicalidade expressiva que brota de um aparente universo paralelo. No filme de Jean-Luc Godard, a noção tradicional e bem-comportada de cinema como meio de expressão que conta uma história linear com começo, meio e fim é jogada para o espaço – aliás, coisa que já havia sido feita com muita propriedade nos filmes mais recentes do cineasta franco-suiço. Em “Imagem e palavra” a narrativa se formata essencialmente a partir de um muito particular trabalho de edição que evoca o memorialismo histórico de Godard expresso na tela como um devaneio/reflexão localizado na zona limite entre as reminiscências e o onírico. Toda a junção de trechos de filmes ficcionais e documentários, reportagens e fotogramas com temas musicais e declamação de prosa, poesia, filosofia e afins não se cristaliza como uma estrutura apolínea e clara para os olhos do espectador, mas sim como um jorro sensorial por vezes atordoante, em outros momentos plácido, em que os cortes na montagem são abruptos e desvinculados de um regramento formal convencional. Há várias cenas em que a imagem trata de uma coisa, a música vem de um trecho diverso e há um terceiro elemento da voz narradora que também brota de um outro plano dimensional/narrativo – ainda que diferentes entre si, os elementos convergem para um discurso artístico/político/existencial de unicidade e coerência, ou seja, essa estética de aparência difusa é o amparo ideal para uma visão humanista de forte rigor intelectual sobre a história dos dois últimos séculos do mundo, em que a brutal oposição entre as propensões do ser humano tanto para o irracional (guerras, preconceitos) quanto para o iluminismo (arte, cultura, ciência) acabam desembocando no conflito atual entre o ocidente e o oriente. Mesmo os créditos iniciais e finais rompem com o ordenamento mercadológico e artístico da indústria cinematográfica contemporânea, sugerindo um loop contínuo de um filme (e da História) que se recusam a findar e serem catalogadas como obras acabadas. É Godard ainda mostrando que é uma figura difícil de engolir pelo establishment/mainstream.

sexta-feira, março 15, 2019

O outro lado do vento, de Orson Welles ****


Toda a carreira artística do diretor norte-americano Orson Welles se pautou em uma fascinante tensão criativa entre um lado classicista em termos formais e um forte fator de inovações e experimentação de linguagem cinematográfica. “O outro lado do vento” (2018), seu filme “perdido” lançado recentemente, é uma extensão dessa marca autoral do cineasta, assim como reflete estética e existencialmente a época em que foi realizado (os anos 70).  Naquela década, Welles já se encontrava distante dos grandes estúdios e tinha dificuldades para concluir seus projetos em função de dificuldades econômicas. Ao mesmo tempo, era uma época em que o cinema norte-americano passou por profundas transformações provocadas pelos egressos da Nova Hollywood (um deles, Peter Bogdanovich, tem importante participação no resultado final de “O outro lado do vento”). Também foi um tempo em que o cinema exploitation se encontrava em voga nas telas pelo mundo inteiro. “O outro lado do vento” é síntese de todas essas características e dilemas artísticos do período com a notória e indelével veia autoral de Welles. A narrativa é fragmentada, a fotografia se sobressai pela estilização, há várias cenas marcadas por sexo e violência e o roteiro tem um subtexto intrincado e que flerta com a metalinguagem e o autobiográfico, e tudo isso é filtrado pelo barroquismo muito particular do diretor. É Welles se mostrando atento às principais tendências formais e temáticas da época, mas as manipulando com radical ousadia e entregando um resultado final desconcertante e memorável.

quinta-feira, março 14, 2019

Capitã Marvel, de Anna Boden e Ryan Fleck ***


Gostando-se ou não do resultado final de “Capitã Marvel” (2019), pode-se entrar em consenso pelo menos com uma coisa em relação ao filme – ele serve para mostrar que em termos musicais a década de 90 foi fodástica. São tantas as pérolas rock e pop que aparecem ao longo da narrativa que isso por si só já tornaria a mais nova produção dos estúdios Marvel um passatempo bem agradável. Mas o filme dirigido por Anna Boden e Ryan Fleck consegue ter outros atrativos convincentes para o espectador. As sequências iniciais podem até parecem um tanto derivativas na asséptica e pouco original conjunção efeitos especiais e direção de arte (dá uma impressão de refugo pouco inspirado da saga “Star Wars”, o que é natural pelo fato das trucagens digitais serem de responsabilidade da Industrial Light & Magic, a mesma da novela espacial de George Lucas). É quando os skrulls entram em cena e a ação pouco depois passa para o planeta Terra que a obra começa a se mostrar efetivamente divertida e por vezes empolgante. Claro que dentro de um certo padrão de previsibilidade dos estúdios Marvel, mas o que é já é acima da média quando se pensa nos diversos abacaxis recentes das adaptações cinematográficas do Universo DC. O filme se permite até a algumas leves e saudáveis alterações dentro de certos parâmetros temáticos originais dos quadrinhos, principalmente na caracterização da protagonista e dos skrulls, que se revelam bem funcionais para a produção. Aliás, em termos de roteiro, a exposição de um discurso de empoderamento feminino consegue ter coerência e alguma profundidade, não forçando a barra e nem caindo na gratuidade. Essa questão sócio-comportamental, inclusive, insere-se com naturalidade dentro do caráter de aventura escapista da obra. No final das contas, pode-se ficar de bode com toda a dominação mercadológica derivada de “Capitão Marvel” e da babação geek em volta da Marvel Estúdios, mas pelo menos dá para se reconhecer que o filme não se limita a ser mero pretexto para toda essa badalação comercial.

terça-feira, março 12, 2019

A balada de Buster Scruggs, de Ethan e Joel Coen ****


Enveredar para o faroeste não é exatamente uma novidade para os irmãos Coen. Os cineastas já haviam realizados releituras bem autorais e particulares do gênero, tanto na atualização contemporânea de “Onde os fracos não têm vez” (2007) quanto no tom crepuscular de “Bravura indômita” (2010). Em “A balada de Buster Scruggs” (2018), entretanto, esse processo de recriação se mostra mais radical e desconcertante, em uma abordagem artística e existencial que talvez só encontre paralelos recentes com a reconstrução “tarantinesca” do gênero no sensacional “Os oitos odiados” (2015). Ao dividir a narrativa em seis episódios, os Coen buscam caminhos estéticos e temáticos diferentes para cada segmento, mas sem nunca perder a unidade artística-conceitual. Indo do musical estilizado até o horror gótico, e passando pelo realismo e a comédia de erros, o filme nunca perde o prumo a partir de uma impecável síntese formal-textual, com destaque para a fotografia de plasticidade arrebatadora, um roteiro lapidado à beira da perfeição e um elenco repleto de atuações memoráveis. “A balada de Buster Scruggs” é uma obra que reflete uma das grandes marcas autorais dos Coen – a capacidade de entrelaçar com naturalidade elementos do cinema clássico norte-americano com algumas nuances perversas de renovação.

segunda-feira, março 11, 2019

Nunca convide o seu ex, de Ryan Eggold **


Na pretensão, “Nunca convide o seu ex” (2017) era para ser uma visão mais crua e desencantada da gasta premissa de protagonista levemente desajustado que percebe o quanto a sua vida desandou quando sabe que uma ex-namorada está prestes a se casar com outro e daí decide reverter a situação faltando poucos dias para o fatídico matrimônio. O filme do diretor Ryan Eggold também tem algo de “500 dias com ela” (2009) ao fazer um retrato irônico sobre os jovens adultos do século XXI, com direito a algumas referências de cultura pop (afinal, nerds e geeks adoram esse tipo de coisa auto-celebratória/marturbatória). Em meio a tantas intenções e influências, entretanto, a narrativa se perde devido a uma abordagem artística superficial e previsível. A pretensa transgressão de questionar os valores pequeno-burgueses se revela pífia – toda a saga de mal-estar existencial e equívocos do protagonista Adam (Justin Long) não causa qualquer tensão dramática, limitando-se a evocar uma estéril fotogenia estética e um insípido tratamento temático destinados a não perturbarem um público não muito exigente.

sexta-feira, março 08, 2019

Sexo, drogas e jingle bells, de Jonathan Levine *1/2


A parceria entre o diretor Jonathan Levine e os atores Joseph Gordon-Levitt e Seth Rogen tinha se mostrado frutífera no excelente drama “50%” (2010). Em “Sexo, drogas e jingle bells” (2015), entretanto, a reunião entre eles tem resultados bem menos satisfatórios. A premissa inicial do roteiro é até promissora, em que um trio de amigos tem a tradição de fazer uma noite de loucuras anual justamente na véspera de natal. A trama em seu começo até insinua algumas situações interessantes e engraçadas, mas a narrativa vai se revelando cada vez mais previsível e quadrada, além das soluções do roteiro se apresentarem convencionais e conservadoras em excesso. No cômputo geral, está mais para uma produção natalina rotineira do que para uma boa gozação com o tema (coisa que se podia esperar tendo em vista o histórico de direto e elenco).

quinta-feira, março 07, 2019

A garota na névoa, de Donato Carrisi **


No que uma produção italiana no gênero suspense se diferencia de outra norte-americana rotineira no mesmo gênero? Em nada, ou pelo menos é que o se consta ao assistir a “A garota na névoa” (2018). Por vezes, até há um esboço de fuga do lugar comum na caracterização do protagonista Vogel (Toni Servillo), um veterano e excêntrico detetive que investiga o sumiço, e provável assassinato, de uma adolescente em uma aldeia no interior da Itália. A impressão de algo diferente, entretanto, logo se dissipa no desenvolvimento da uma narrativa esquemática, e de concepção visual asséptica que jogam o filme do diretor Donato Carrisi para o limbo das obras fáceis de ver e também fáceis de esquecer. Falta sutileza e tensão dramática consistente na encenação e mesmo na edição – repare-se, por exemplo, como uma música incidental ostensiva e constante deixa a narrativa com uma incômoda atmosfera rococó. Não que uma ambientação operística/barroca fosse necessariamente um defeito – é só pensar que Dario Argento adorava impregnar seus filmes com exageros barrocos extraordinários. Assim, falta para Carrisi um senso audiovisual mais apurado para justificar a sua pretensão de grandiosidade estética. E mesmo a tentativa de se realizar no subtexto do roteiro uma visão crítica sobre o fanatismo religioso e a falta de escrúpulos da mídia sensacionalista na sociedade moderna acaba se frustrando diante da superficialidade dos truques banais da trama com suas viradas rocambolescas e estapafúrdias.

quarta-feira, março 06, 2019

Um balde de sangue, de Roger Corman ***1/2


O diretor norte-americano Roger Corman geralmente é mais lembrado como um cineasta capaz de realizar filmes bastante lucrativos operando a partir de condições e recursos modestos ou mesmo por ter sido o produtor que possibilitou os primeiros passos artísticos de uma série de importantes diretores e atores ligados à “Nova Hollywood” (Francis Ford Coppola, Jack Nicholson, Peter Bogdanovich). Por trás de tais credenciais, entretanto, há também o fato de que Corman tinha também talento acima da média como diretor. Em boa parte de sua filmografia fica evidenciada a capacidade de estabelecer narrativas seguras e envolventes, além de inventivas soluções imagéticas e roteiros que sabiam sintetizar de maneira insólita dramaticidade e ironia. “Um balde de sangue” (1959) é exemplar enfático desse traço autoral de Corman. É de se reparar na forma fluente com que tiração de sarro com a cultura beatnick, humor negro e algumas ambiências de horror clássico convivem na mesma narrativa. O diretor transcende as limitações e anacronismos dessa linhagem de produções e cria uma obra repleta de desconcertantes nuances formais-temáticas, com destaque para a direção de arte mista de caricatural e estilização, a ótima atuação de Dick Miller em um raro papel de protagonista, as expressivas sequências finais de perseguição e atmosfera e trama carregadas de comicidade macabra.

sexta-feira, março 01, 2019

Dogman, de Matteo Garrone ***


O diretor italiano Matteo Garrone volta a focar suas lentes no submundo do crime em “Dogman” (2018), assim como tinha feito em “Gomorra” (2008), sua obra mais célebre e que o tornou conhecido mundialmente. Se a obra mais antiga tinha uma abordagem formal que emulava o documental e tinha um escopo mais amplo na sua visão temática, em “Dogman” a narrativa tem caráter intimista e se formata como um drama convencional, ainda que em termos estéticos haja uma crueza audiovisual. O cenário de uma periferia marcada por um aspecto arruinado e dominada pela contravenção é rústico e algo desolado e mesmo os personagens tem uma caracterização entre o desglamourizado e a estilização sórdida, tudo embalado, entretanto, por uma direção de fotografia que consegue dar uma plasticidade insólita para o filme. O roteiro se desenvolve por caminhos bem previsíveis, mas é mérito de Garrone saber extrair alguns momentos de efetiva tensão dramática, além de um senso de humor flertando com o macabro. Ponto positivo também para a forte química entre os dois principais atores Marcello Fonte e Edoardo Pesce, interessante tanto por suas expressivas performances quanto pelo contraste físico e psicológico entre os dois. Em um contexto geral, o filme de Garrone é bem realizado, mas incomoda a falta de maiores arroubos criativos ou de uma efetiva transcendência artística. A decepção se justifica ainda mais quando se pensa em tantos clássicos do cinema italiano que enveredaram para essa vertente do realismo social com resultando bem mais memoráveis que “Dogman”.