quarta-feira, fevereiro 28, 2018

Linha de ação, de Allen Hughes **


Dá para dizer que “Linha de ação” (2013) é uma tentativa de modernização de cinema noir. Tirando o fato da produção ser colorida, está lá boa parte dos preceitos narrativos e temáticos que marcaram alguns dos principais clássicos policiais sombrios dos anos 40 e 50. Mas como foi dito no início desse texto, o filme do diretor Allen Hughes é apenas uma tentativa, e bem insatisfatória por sinal. Ao invés de realizar uma recriação autoral como, por exemplo, Roman Polanski e os irmãos Coen fizeram, respectivamente, nos brilhantes “Chinatown” (1974) e “O homen que não estava lá” (2001), Hughes se contentou apenas em ficar acumulando de forma mecânica e pouco inspirada clichês formais e textuais, tendo como resultado final uma obra despersonalizada e asséptica.

terça-feira, fevereiro 27, 2018

Lady Bird - A hora de voar, de Greta Gerwig **1/2


Em um primeiro momento, é fácil simpatizar com “Lady Bird – A hora de voar” (2017). A trama do filme se estrutura como um “romance de formação”, mostrando fatos da adolescência da rebelde Christine McPherson (Saoirse Ronan) que acabam criando algum vínculo de empatia com a plateia no sentido de identificação. Alguns desses episódios de equívocos e revoltas juvenis são engraçados, levantando um certo tom de contestação sócio-cultural por parte da protagonista diante do caretismo de sua escola católica e dos costumes provincianos da cidadezinha interiorana onde vive. Além disso, o elenco apresenta algumas atuações carismáticas, principalmente por parte da ala feminina. Assim como é fácil de assistir ao filme da diretora Greta Gerwig, entretanto, também é fácil de esquecê-lo. Parece que a preocupação no registro das banalidades do cotidiano acabou contaminando a abordagem narrativa e formal da obra – é tudo tão quadradinho e esquemático na forma com que as coisas se desenrolam na tela que por vezes a produção cai no enfadonho. A impressão constante é de que já vimos esse filme várias vezes, e que em algumas outras oportunidades ele era bem melhor. E mesmo o roteiro, que talvez devesse ser o principal trunfo de “Lady Bird”, vai se revelando ao longo da narrativa cada vez mais previsível e conservador, vide a conclusão moralista que exalta os valores familiares e católicos que marcaram a juventude da personagem principal, os mesmos que a reprimiram por boa parte nessa etapa de sua vida.

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

Trama fantasma, de Paul Thomas Anderson ****


A música composta por Jonny Greenwood para a trilha sonora de “Trama fantasma” (2017) é o perfeito reflexo do que é a própria concepção estética-existencial do filme dirigido por Paul Thomas Anderson – nos primeiros momentos da narrativa, os temas incidentais são solenes, requintados, de doces melodias que evocam algo de tradicional. Aos poucos e de maneira sutil, a música vai ganhando uma conotação mais dissonante, por vezes estridente, quase maníaca. Pois o filme de Anderson é justamente isso. Se em seus momentos iniciais a obra sugere algo de um convencional drama de época, de requintado acabamento formal, aos poucos essa impressão vai se dissipando e a narrativa se converte em um conto gótico repleto de insólito humor negro e uma perturbadora carga de simbologia psicanalítica dotada de perversidade e toques incestuosos. A precisa encenação, a edição que alterna de maneira desconcertante tanto planos temporais quanto de realidade e a direção de fotografia de pictórica textura de imagens e enquadramentos repletos de nuances imagéticas não se configuram apenas em meros detalhes de virtuosismo técnico, mas também dão um vigoroso sentido de atmosfera dramática e ambientação algo delirante para o complexo roteiro que alterna irônicos exageros românticos, metáforas edipianas e uma delicada construção psicológica de personagens. Nesse último aspecto, dá para dizer que Daniel Day-Lewis capta o espírito da obra com perfeição no papel do protagonista Reynolds Woodcock, oscilando com naturalidade perturbadora um lado sedutor e sofisticado e outro marcado por um comportamento patético beirando o francamente ridículo. E a composição dramática de Vicky Krieps é um notável achado, em uma caracterização que vai do inocente e etéreo até o deliciosamente maquiavélico.

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Gatinhas e gatões, de John Hughes ****


“Curtindo a vida adoidado” (1986) pode ser o mais famoso e “O clube dos cinco” (1985) tem uma maior densidade dramática, mas “Gatinhas e gatões” (1984) é o filme que representa a quintessência do particular estilo de filmar do cineasta norte-americano John Hughes. Nessa obra de estreia como diretor, pode-se perceber uma certa crueza formal típica de um filme de início de carreira e é justamente aí que reside um dos grandes charmes artísticos da produção. Hughes sempre preserva no filme um forte e compacto senso de narrativa, em que nenhuma cena ou diálogo se revelam supérfluos. Há um forte aspecto na obra do gênero comédia física, vide as sequências antológicas de festinhas juvenis de arromba ou as engraçadas e histriônicas cenas com o nerd metido a conquistador interpretado por Anthony Michael Hall. Nesse tipo de abordagem, o filme faz lembrar uma de suas prováveis grandes fontes de inspiração, a obra-prima “O clube dos cafajestes” (1978). Esse lado de comédia de pastelão convive em notável harmonia com um dos traços mais característicos da filmografia de Hughes que é aquela síntese narrativa-existencial de afiados diálogos bem-humorados, atmosfera de sóbrio romantismo e subtexto de sutil teor de análise comportamental de uma juventude entre a ingenuidade e a malícia. O diretor recorre a pequenos truques estéticos e temáticos que podem até soar baratos em um primeiro momento, mas que dentro de uma encenação tão enxuta e fluente se revelam genialmente eficazes. Nesse contexto, Hughes consegue extrair de maneira natural interpretações memoráveis mesmo do exagerado Hall e do canastrão Michael Schoeffling, além de fazer de Molly Ringwald uma protagonista de magnética presença cênica. Mais que mero exercício de nostalgia oitentista, assistir à “Gatinhas e gatões” é uma verdadeira aula de narrativa e linguagem cinematográficas.

quinta-feira, fevereiro 22, 2018

Simon assassino, de Antonio Campos ***


No gênero suspense, a força narrativa capaz de intrigar e envolver o espectador está justamente naquilo que não se mostra em cena e que nunca está suficiente claro na trama. Esse princípio é seguido de maneira bastante eficaz pelo diretor Antonio Campos em “Simon assassino” (2018). Durante todo o filme as motivações e intenções do protagonista Simon (Brady Corbet) são marcadas por um caráter difuso. Pelo roteiro, são jogados alguns poucos elementos de certeza sobre o personagem – sabe-se que é um jovem norte-americano recém-saído da faculdade que foi passar um tempo em Paris, com a ajuda financeira da mãe e que teve um final de relacionamento bastante conturbado com uma ex-namorada. E se tem conhecimento também que o sujeito é um tremendo mentiroso. A partir disso, os fatos se sucedem dentro de uma atmosfera de forte tensão e de uma encenação repleta de expressivas nuances dramáticas, em que a mitomania do personagem principal vai criando situações sem saída tanto para ele quando para outros indivíduos que aparecem pelo seu caminho. A narrativa varia com naturalidade entre ambientações que vão do sensual ao sórdido. Nesse sentido, a Paris noturna é o cenário ideal para essa história marcada por golpes, sexo e violência, indo de sequências de luminosidade ofuscante até outras marcadas por um tom sombrio decadente.

quarta-feira, fevereiro 21, 2018

Pantera Negra, de Ryan Coogler ***


Os méritos de “Pantera Negra” (2018) vão muito além do meramente politicamente correto. As nuances culturais e existenciais de fazer grande parte da ação se situar em um fictício país africano não se limitam ao simples exotismo, com o roteiro sabendo explorar com sensibilidade alguns dilemas e contradições inerentes a esse contexto local e histórico e os inserir com razoável coerência dentro da ambientação típica de uma produção de aventura. Mais que isso: o discurso conciliatório que fica claro no subtexto da trama se mostra em sintonia com a visão política-existencial sugerida em grande parte das obras que saíram dos estúdios Marvel, ou seja, a de que por mais injusto ou mesmo corrupto que seja o status quo ocidental, o primordial é sempre manter a ordem ao invés de recorrer a radicalismos ou a ações criminosas. Em termos estéticos e narrativo, a produção dirigida por Ryan Coogler também não foge do padrão estabelecido nos demais filmes dos estúdios Marvel, sendo que por vezes algumas sequências de ação parecem reciclar tomadas parecidas de outras obras “marvetes”. Ainda que tal recriação seja feita com competência, causa uma certa frustração que “Pantera Negra” não apresente os mesmos graus de ousadia e criatividade artísticas que foram a tônica em “Thor: Ragnarok” (2017). Ainda assim, é um trabalho bem divertido e envolvente em termos de dinâmica narrativa, tem seus momentos memoráveis e o elenco evidencia algumas composições dramáticas carismáticas (o vilão interpretado por Michael B. Jordan, especialmente, é um dos melhores dentro desse universo cinematográfico da Marvel). Para aqueles que ainda podem achar pouco tudo isso, é bom lembrar que “Pantera Negra” é léguas de distância melhor que porcarias como “Esquadrão Suicida” (2016), “Batman vs. Superman: A origem da justiça” (2016) e “Liga da Justiça” (2017) oriundas da parceria DC/Warner.

terça-feira, fevereiro 20, 2018

Três anúncios para um crime, de Martin McDonagh ***


Uma coisa fica muito evidente ao se assistir a “Três anúncios para um crime” (2017) – o diretor Martin McDonagh deve gostar muito da filmografia dos irmãos Coen. Seu filme junta dois aspectos recorrentes na obra dos Coen: o gosto pela recriação dos preceitos narrativos de faroestes clássicos (“Onde os fracos não têm vez”, “Bravura indômita”) e roteiro repleto de elementos de humor negro (“Fargo”, “Queime depois de ler”). A presença como protagonista de Frances McDormand, atriz que já colaborou diversas vezes com os Coen, acentua essa impressão. O problema é que a sombra dessa influência escancarada por vezes acaba atrapalhando pela questão de comparações inevitáveis que acabam aparecendo. Nessa perspectiva, a produção dirigida por McDonagh está bem longe da classe estética e das tramas bem lapidadas do melhor que os célebres irmãos já fizeram em sua carreira. Ainda assim, “Três anúncios para um crime” é uma obra que tem os seus méritos. Sua narrativa tem um ritmo envolvente, além da encenação conciliar por vezes com bastante eficácia tragédia e comédia, resultando em algumas sequências efetivamente muito engraçadas. A direção de fotografia tem um talhe clássico, fazendo com que algumas cenas a mostrar cenários pitorescos de cidadezinhas interioranas, bares de beira-de-estrada e ambientações rurais de grandes campos abertos evoquem uma homenagem estilizada a alguns dos principais filmes de John Ford e de outros mestres do western. McDormand e Woody Harrelson apresentam seguras composições dramáticas, e mesmo a atuação caricatural de Sam Rockwell revela algumas nuances inspiradas. O roteiro cai em algumas simplificações e incongruências excessivas, mas tem o seu lado instigante ao evidenciar um caráter fortemente simbólicos das contradições e dilemas sócio-políticos que marcam o panorama contemporâneo da sociedade norte-americana, principalmente no que diz respeito ao questionamento de opressivos valores patriarcais e preconceito raciais.

segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Antes do fim, de Cristiano Burlan ***1/2


Se em “Fome” (2015), o anterior longa-metragem da parceria entre o diretor Cristiano Burlan e o crítico/roteirista/ator Jean- Claude Bernardet, evidenciava uma intrigante síntese entre ficção e elementos “reais”, em “Antes do fim” (2017) a particular concepção artística engendrada pela dupla se torna ainda mais ampla e complexa. Há algo que se pode definir como um fio de história, em que um homem idoso (Bernardet) procura convencer sua parceira (Helena Ignez) a praticar um suicídio duplo. A partir dessa trama, Burlan articula uma narrativa que joga na tela uma série de obsessões estéticas e existenciais tanto suas quanto de Bernardet e Ignez. E o que no início aparenta um certo tom aleatório e instintivo na forma com que as cenas se sucedem e encaixam, aos poucos vai revelando um insólito rigor conceitual e formal. Técnicas documentais são incorporadas no ficcional, formando uma narrativa híbrida de desconcertante coerência. Na narrativa, há trechos fílmicos de uma Helena no auge da juventude e beleza em plena ação dentro do cinema underground, passagens de marcação teatral, monólogos de Bernardet filosofando ou interpretando (ou as duas coisas ao mesmo tempo) com sedutora naturalidade, conversas entre o casual e o estilizado de forte teor humanista e libertário entre o casal protagonista, algumas sequências de balé de delicada desenvoltura, carinhosos exercícios de estilos cinematográficos remetendo ao cinema mudo, além de um notável senso plástico da direção de fotografia. No conjunto geral, uma memorável viagem sensorial.

sexta-feira, fevereiro 16, 2018

Branco como a neve, de Cristophe Blanc **1/2


Nomes atrativos em seu elenco como François Cluzet e Olivier Gourmet podem fazer com que as expectativas em relação ao policial “Branco como a neve” (2010) sejam altas. E mesmo os primeiros movimentos da trama, sugerindo um cruzamento entre irônico comentário sócio-comportamental e suspense, sugerem algo de promissor. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, o que prevalece mesmo no filme do diretor Christophe Blanc é uma pálida reciclagem de produções clássicas norte-americanas no gênero, principalmente de alguns filmes dos irmãos Coen. Não chega a ser exatamente ruim, mas também está bem longe de se poder considerar um trabalho memorável.

quinta-feira, fevereiro 15, 2018

O destino de uma nação, de Joe Wright ***


Gary Oldman se tornou conhecido inicialmente em sua carreira como ator interpretando duas figuras reais em cinebiografias: o mártir do punk rock Sid Vicious em “Sid & Nancy” (1986) e o libertário dramaturgo homossexual Joe Morton em “O amor não tem sexo” (1987). Não deixa de ser curioso, e também bastante sintomático, que agora esteja muito bem cotado para ganhar um Oscar interpretando outro personagem histórico, só que bem mais “respeitável”, o estadista britânico Winston Churchill. Em “O destino de uma nação” (2017), a parte mais significativa da narrativa se concentra justamente na atuação de Oldman. Ainda assim, não dá para dizer que o ator carrega o filme nas costas e nem que essa produção caia na vala comum de obras academicistas a versarem sobre grandes episódios históricos. O diretor Joe Wright consegue impregnar no seu trabalho algum traço artístico mais distinto e mesmo com um certo caráter insólito em sua abordagem estética. A ação se concentra basicamente em austeros espaços fechados – o palácio real, a mansão do protagonista, o parlamento, o bunker onde traça estratégias e decisões relativas à entrada, ou não, da Inglaterra na Segunda Guerra. Assim, predomina no filme uma atmosfera claustrofóbica, opressiva, com uma encenação que por vezes parece remeter ao teatral. Tal opção narrativa de Wright não é gratuita, pois o subtexto do roteiro tem como uma de suas sutis diretrizes a exposição dos mecanismos de poder na política, principalmente no que diz respeito a uma alienação daqueles que detém o poder perante os reais desejos e necessidades daqueles que governam. Desse modo, o filme incorpora os discursos de Churchill na narrativa com naturalidade e coerência, oferecendo uma efetiva ideia do forte conteúdo humanista de tais textos. É claro que por vezes “O destino de uma nação” resvala em um certo ufanismo ingênuo ou na grandiloquência sentimental inerentes a esse tipo de obra. Mesmo assim, não cai no superficialismo vazio de “The post” (2017) e consegue apresentar alguns momentos memoráveis capazes de se fixar no imaginário do espectador.

quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Sem amor, de Andrey Zvyagintsev **1/2


Em “Leviatã” (2014), o diretor russo Andrey Zvyagintsev mostrava a desintegração existencial de seu país através de uma história envolvendo o massacre econômico e moral de um indivíduo promovido por poderosos grupos financeiros em uma aldeia. “Sem amor” (2017), obra mais recente do cineasta, dá prosseguimento nessa dissecação da Mãe Rússia diante da realidade de capitalismo selvagem após o fim da era do socialismo soviético, só que agora tendo como história principal o processo de desagregação de uma família que culmina no desaparecimento do filho adolescente. Na teoria, essa ideia de subtexto em que intimismo e política se confundem é interessante e até bastante pertinente, isso sem contar que a rigorosa abordagem estética habitual de Zvyagintsev impediria que o filme caísse no mero sentimentalismo. Na prática, contudo, as coisas desandam de maneira fragorosa em “Sem amor”. Em sua crítica aos hábitos consumistas e desumanizados da sociedade russa contemporânea, a produção investe em truques narrativos e textuais que cansam pela repetição e obviedade, além de evidenciar um roteiro que peca por uma lógica moralista simplória. É de se reparar, por exemplo, que logo após duas sequências de sexo extraconjugal envolvendo o casal de protagonista, em encenações que beira a estilização, é que ocorre o fato principal da trama, ou seja, o desaparecimento do garoto Alyosha (Matvey Novikov). Não que a elaboração de uma narrativa em formato de conto moral seja um pecado imperdoável – diretores extraordinários como Eric Rohmer e Robert Bresson criaram obras-primas enveredando por esse tipo de narrativa. O problema é que as soluções formais e de roteiros encontradas por Zvyagintsev redundam em um resultado final marcado pelo enfado e pelo banal.

quinta-feira, fevereiro 08, 2018

Sonata de Tóquio, de Kiyoshi Kurosawa ***1/2


O diretor japonês Kiyoshi Kurosawa é mais conhecido por atuar dentro do gênero fantástico. Dessa forma, pode causar um certo estranhamente ao vê-lo enveredar pelo melodrama familiar em “Sonata de Tóquio” (2008). Com o desenrolar da narrativa do filme, entretanto, pode-se perceber que a sua habitual abordagem artística está ali presente, ainda que em outro contexto. Em uma trama que tem como premissa principal a desagregação psicológica-moral de uma família de classe média a partir da demissão e longo período de desemprego do pai, o cineasta constrói uma obra de sombria atmosfera e de encenação repleta de sóbrias nuances dramáticas. De certa forma, é como se Kurosawa reconstruísse o universo estético e temático das principais produções dirigidas por Yasujiro Ozu, sempre centralizadas em famílias disfuncionais, sob um prisma mais sinistro e pessimista, em que atitudes e gestos dos personagens e a caracterização de situações do roteiro evocassem um caráter insólito e tenebroso. O cineasta deixa claro que a crueldade da realidade sócio-econômica da sociedade capitalista e seu consequente vazio existencial é mais apavorante do que qualquer monstro repulsivo ou outro elemento de terror sobrenatural.

quarta-feira, fevereiro 07, 2018

Inspetor Lavardin, de Claude Chabrol ***

Boa parte de diretores e críticos de cinema franceses sempre dedicou um carinho especial para o mestre do suspense Alfred Hitchcock. Se François Truffaut se notabilizou por incensar o cineasta inglês em artigos e até mesmo em um célebre livro de entrevistas, Claude Chabrol preferiu dedicar uma fatia considerável de sua filmografia a uma recriação muito particular dos maneirismos narrativos e temáticos de Hitchcock. “Inspetor Lavardin” (1986) é um exemplar evidente dessa tendência do diretor francês. A trama do filme se vale de alguns dos truques mais expressivos das principais produções hitchcockianas, além daquela atmosfera que mistura sóbrio suspense e uma certa ironia sardônica. Entretanto, Chabrol consegue inserir algumas inquietações artísticas próprias, principalmente em termos de um sofisticado subtexto histórico-político. No final das contas, “Inspetor Lavardin” não chega a ser um dos trabalhos fundamentais na carreira de Chabrol, mas ainda assim revela uma elegância narrativa e refinado senso de humor que o tornam uma experiência cinematográfica memorável.

terça-feira, fevereiro 06, 2018

Corpo e alma, de Ildikó Enyedi **1/2

Há elementos nas sequências iniciais da produção húngara “Corpo e alma” (2017) que sugerem algo de promissor. A narrativa tem como pano de fundo as rotinas de trabalho e as desagregadas relações humanas em uma indústria de abate e comércio de gado. Assim, o frio e desumano processo de sacrifício de vacas, filmado com realismo perturbador, deveria servir como uma espécie de simbologia dos jogos de domínio social e mesmo sexual no ambiente da empresa. Há um certo rigor estético na forma sóbria com que o diretor Ildikó Enyedi desenvolve a trama do filme, além de uma aparente ousadia em inserir toques oníricos na narrativa. Falta para o filme, entretanto, uma pegada formal mais contundente e uma encenação de maior desenvoltura para que todos esses aspectos insólitos destacados ganhassem uma dimensão artística e humana de real impacto para o espectador. A obra dá a constante impressão de se utilizar de truques dramáticos e recursos narrativos um tanto mofados, que já seriam manjados algumas décadas atrás, parecendo mais um cruzamento incômodo de um pretenso cerebralismo na linha Krzystof Kieslowski com o exotismo visual pueril de Jean-Pierre Jeunet.

segunda-feira, fevereiro 05, 2018

A forma da água, de Guillermo Del Toro ***1/2

O cinema do diretor mexicano Guillermo Del Toro passa por uma espécie de filtro de recriação de preceitos estéticos e temáticos do gênero fantástico em suas diversas vertentes (horror, ficção científica, fantasia), além de trazer em seu subtexto um sutil comentário sócio-político. “A forma da água” (2017) é um exemplar enfático dessa concepção artística do cineasta. Em termos de conceitos visuais e estrutura de narrativa, o filme remete a clássicos do horror cinematográfico, principalmente as produções de monstros da Universal nos anos 30 e 40. Há fortes doses de uma doce fantasia romântica, principalmente no que diz respeito à caracterização da protagonista Eliza (Sally Hawkins) e seu envolvimento amoroso com uma misteriosa criatura marinha (Doug Jones). Além disso, a ambientação em um sombrio centro de pesquisas e o aspecto histórico (início dos anos 60 a marcar o auge da guerra fria) faz lembrar aqueles filmes paranoicos de ficção científica dos anos 50. Tais referências e citações, entretanto, perpassam por uma linguagem cinematográfica e uma visão existencial bastante particulares por parte de Del Toro. Nesse sentido, é de se reparar que violência e erotismo se manifestam de maneira bem mais gráfica, fazendo com que “A forma da água” oscile de maneira notável entre o encantador e o perturbador. Além disso, a carga de simbologia do roteiro talvez seja a mais direta e contundente da filmografia de Del Toro – o que dizer de uma trama em que o vilão representa o arquétipo de idealização da sociedade ocidental patriarcal (homem, branco, herói de guerra e pai de família) e o grupo de “mocinhos” antagonistas é formado por aqueles que a sociedade considera como “minorias” (uma muda, uma negra, um gay, um comunista e até um ser inumano)? Mas o que dá a efetiva liga para a reciclagem de clichês narrativos do fantástico e para esse discurso político é a eficaz conjunção engendrada por Del Toro entre formalismo estilizado e uma encenação de dinâmica admirável, resultando em um criativo conjunto artístico que também sabe valorizar as ótimas interpretações icônicas de seu elenco.

quinta-feira, fevereiro 01, 2018

120 batimentos por minuto, de Robin Campillo ***1/2

Nas várias sequências da produção francesa “120 batimentos por minuto” (2017) que envolvem as reuniões de discussões do grupo ativista Act Up, o tema mais premente é a urgência de soluções, atitudes, combates e posicionamentos relativos à luta contra a proliferação desenfreada da AIDS no início dos anos 90. Esse sentimento de urgência passa também para a própria concepção artística e narrativa do filme dirigido por Robin Campillo. Nesse sentido, encenação e montagem se entrelaçam de maneira contundente e poética – é de se reparar na forma com que o teor fortemente realista da obra, principalmente em termos de roteiro e atmosfera, por vezes cede espaço para delicados toques oníricos e delirantes. As tensas e naturalistas cenas que se desenvolvem nas reuniões do grupo e nas suas ações performáticas de protestos, que sintetizam de maneira equilibrada uma verborragia fascinante com uma eletrizante dinâmica na equação fotografia-montagem, alternam-se com hedonistas e estilizadas tomadas de festas e até insólitas sequências de animação (como a o perturbador “balé” do vírus no organismo afetado). Nessa alternância de abordagens e atmosferas, é fascinante também como os tempos presente e passado se reúnem na mesma dimensão narrativa, vide a passagem em que Sean (Nahuel Pérez Biscayart) se recorda de quando foi contaminado: na mesma cama em que recorda esse fato junto com o seu atual namorado Nathan (Arnaud Valois) aparece o antigo amante que lhe transmitiu a doença, em um recurso em que a passagem de tempo se efetiva sem corte de edição. Por mais que a temática transpareça revolta e amargura diante da inoperância e hipocrisia moral por parte de agências do Estado e da indústria farmacêutica, Campillo não perde o rigor e a serenidade no controle estético e narrativo da sua obra, sabendo ainda realçar outros fundamentais detalhes artísticos como as viscerais composições dramáticas de seu elenco e os pulsantes temas eletrônicos da trilha sonora. E se boa parte das soluções formais de “120 batimentos por minuto” remete a “Entre os muros da escola” (2008), tal lembrança não se configura como mera coincidência quando se fica sabendo que Campillo foi montador e roteirista da obra-prima dirigida por Laurent Cantet.