terça-feira, outubro 31, 2017

Rendez-vous, de André Techiné ***1/2

Os filmes do diretor André Techiné geralmente parecem se configurar como sóbrios contos morais. A grande questão, entretanto, é que essa moral obedece a uma lógica ambígua e particular. “Rendez-vous” (1985) é um exemplar enfático dessa tendência do cineasta francês. Como principal mote aparente de sua trama, desenvolve-se um conturbado triângulo amoroso em meio ao cenário artístico parisiense. Só que um dos vértices de tal relacionamento é de um atormentado ator que morre logo no terço inicial do filme. Nesse sentido, a narrativa concebida por Techiné vai se equilibrando numa tênue linha entre uma ambientação naturalista e uma atmosfera fantástica, como se a convivência entre esses dois planos beirasse o prosaico. Por trás da estranheza dessa história há ainda um subtexto sutil sobre a natureza da arte – a forma com que a protagonista Nina (Juliett Binoche) amadurece entre os descaminhos de sua vida amorosa também serve como substrato da autodescoberta de suas potencialidades como atriz. As evidentes implicações psicológicas e simbólicas do roteiro recebem um tratamento formal misto de rigor e fluidez por parte de Techiné, centrando grande força no vigor de sua encenação e na estética precisa da fotografia e edição.

segunda-feira, outubro 30, 2017

O formidável, de Michel Hazanavicius ***

Em um primeiro momento, a primeira coisa que salta aos olhos ao assistir a “O formidável” (2017) são algumas brincadeiras e referências estéticas concebidas pelo diretor Michel Hazanavicius que perpassam a narrativa que evocam sequências memoráveis de produções marcantes dirigidas por Jean-Luc Godard, o protagonista da trama do filme baseada em fatos reais. Por vezes tais truques são pertinentes e engraçados, em outros momentos são apenas pueris. Também é de se destacar que a produção se estrutura quase como se fosse uma comédia romântica, com um roteiro que enfatiza situações e soluções típicas do gênero. Tais detalhes temáticos e narrativos, entretanto, representam uma superfície enganadora sobre as reais intenções da obra, pois a efetiva força de “O formidável” está no contundente subtexto do seu roteiro e no vigor de sua encenação, fatores esses ainda reforçados pele interpretação sanguínea de Louis Garrel no papel de Godard. Em meio aos desacertos, contradições e dilemas do personagem principal com as causas e consequências do maio de 1968 em Paris está uma arguta observação sobre o papel de um artista perante a sociedade em que está inserido. No meio de cobranças para se mostrar acessível para os seus admiradores, em cumprir expectativas advindas da condição de ser um gênio cinematográfico “consagrado” e também em se enquadrar nos padrões de comportamento “civilizado” de uma sociedade pequeno-burguesa, o que fica realmente estabelecido como o grande mote da trama é a necessidade de reinvenção e apreensão da realidade por parte do artista diante de um evento histórico tão complexo e perturbador quanto as revoltas estudantis da época. Nesse aspecto, o filme de Hazanavicius não facilita as coisas – Godard quase sempre é visto pelo olhar da jovem e algo ingênua esposa Anne Wiazemsky (Stacy Martin), sugerindo-se uma personalidade irascível, geniosa e arrogante por parte do cineasta, mas que sutilmente esconde um sentimento de inconformismo e da busca de preservar o seu senso humanista perante hipócritas cobranças e acusações daqueles que o cercam. A melancólica conclusão de “O formidável” sublinha com notável coerência e precisão as verdadeiras ambições artísticas e existenciais do longa-metragem de Hazanavicius.

sexta-feira, outubro 27, 2017

Mishima - Uma vida em quatro capítulos, de Paul Schrader ****

Daquela geração/cena de cineastas e roteiristas que despontaram no final dos anos 60 e se consagraram de vez na década de 1970, a chamada “Nova Hollywood”, Paul Schrader é o que teve trajetória e estilo mais singulares. Enquanto seus colegas se dedicaram a estética e narrativa que sintetizavam a linguagem clássica do cinema norte-americano da primeira metade do século XX e as inovações artísticas das correntes europeias mais prementes da época, principalmente a Nouvelle Vague, Schrader enveredou para uma releitura bastante particular do cerebralismo do Robert Bresson e do minimalismo expressivo de Yasujiro Ozu. “Mishima – Uma vida em quatro capítulos” (1985) é um exemplar enfático de tal tendência artística de Schrader. Ao invés de optar pela convencional cinebiografia estilo “resumão”, o diretor preferiu fazer um verdadeiro tratado artístico-existencial sobre o polêmico escritor japonês Yukio Mishima, relacionando alguns eventos marcantes de sua vida com trechos de suas principais obras, sugerindo uma bela e estranha simbiose entre a “realidade” do criador e o universo ficcional que criou. O resultado final é desconcertante, com Schrader conciliando com naturalidade e bizarra coerência um plano narrativo de seco corte naturalista com sequencias de tinturas entre o onírico e o alegórico, além de preservar com sensibilidade uma temática complexa em que homossexualidade, culto ao apolíneo e nacionalismo convivem em uma harmonia perturbadora.

quinta-feira, outubro 26, 2017

Quatro amigas e um casamento, de Leslye Headland **

As comédias norte-americanas contemporâneas que enveredam para a temática do retrato comportamental de gerações diversas (jovens, adultos e afins) parecem sempre andar no fio da navalha. Por vezes, aparecem algumas produções que realmente trazem uma visão lúcida sobre contradições e dilemas típicos dos tempos que vivemos, em meio aos habituais episódios de piadas grosseiras e escatológicas, tendo um resultado final artístico bem memorável – nessa linha, daria para citar alguns trabalhos mais recentes dos irmãos Farrelly. E também há o caso de um número considerável de filmes que caem na mais pura irrelevância. “Quatro amigas e um casamento” (2012) fica no meio caminho. Na primeira metade do longa, a narrativa até insinua uma visão sarcástica, por vezes até amarga, sobre os desencontros sentimentais e alguns padrões morais hipócritas da sociedade ocidental, com algumas cenas interessantes em termos de encenação e boas situações cômicas. Na parte final do roteiro, entretanto, tudo se formata em soluções convencionais e mesmo moralistas, em meio a um formalismo derivativo, frustrando as expectativas promissoras iniciais.

quarta-feira, outubro 25, 2017

Bom comportamento, de Ben e Joshua Safdie ***1/2

Por vezes, principalmente em seu terço inicial, a estrutura narrativa e a trama de “Bom comportamento” (2017) sugerem um derivado do gênero suspense-policial naquela linha de uma história envolvendo um grande plano de roubo ou golpe semelhante. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, a verdadeira natureza do filme dirigido por Bem e Joshua Safdie vai se manifestando de maneira contundente e perturbadora. A trajetória do assaltante Connie (Robert Pattinson) para tentar libertar o irmão Nick (Ben Safdie) após este ter sido preso durante a fuga de um roubo à banco frustrado mais tem a ver com uma crônica sardônica sobre desajustados do que propriamente com um thriller de ação. Ainda assim, a forma com que os Safdie conduzem a produção privilegia a tensão e a encenação frenética. A uma certa altura da trama, fica evidente que as escolhas de Connie na busca do seu objetivo obedecem a uma lógica aleatória e equivocada, típica de um habitual perdedor. Quando entra em cena o esquisito marginal Ray (Buddy Durress), o roteiro e atmosfera de “Bom comportamento” ficam ainda mais configurados dentro de uma síntese que oscila entre o melancólico e o delirante – não à toa, Connie e Ray embalam suas correrias e mancadas com doses generosas de álcool e LSD, fazendo com que o espectador embarque em um amargo e longo pesadelo com direito a desconcertantes toques cômicos. O formalismo articulado pelos diretores acentua com precisão essa ambientação marcada pela crueza e por um sutil humor negro – há uma clareza imagética que realça cada gesto e expressão dos personagens, amplificando tanto a assustadora brutalidade gráfica de algumas cenas quanto a densidade psicológica e a frieza emocional de outras sequências. Além disso, conta-se com alguns detalhes cênicos que revelam notável sintonia com o espírito da obra, como as vigorosas interpretações de Pattinson e Duress e a trilha sonora que combina timbres oitentistas e nuances eletrônicas.

terça-feira, outubro 24, 2017

Cacaso na corda bamba, de José Joaquim Salles e PH Souza **1/2

Os mais ranhetas podem implicar com a prolífica relação que se estabeleceu no cinema nacional nos últimos anos entre o gênero documentário e a temática relacionada à história da música brasileira, principalmente pelo fato de que boa parte das produções que se originaram de tal relação não é marcada por grandes ousadias formais e narrativas. O que ocorre é que o universo do cancioneiro nacional é tão amplo que se torna um assunto praticamente inesgotável pela riqueza de artistas de relevo com quem o país conta ou já contou, tanto em nomes conhecidos e consagrados quanto daqueles mais obscuros. Nessa última vertente, enquadra-se Antônio Carlos Brito, o biografado de “Cacaso na corda bamba” (2016). Em um primeiro momento, confesso que a figura desse poeta e letrista me soava desconhecida. Ao assistir ao filme dos diretores José Joaquim Salles e PH Souza, entretanto, constatei que lá para o meu imaginário cultural particular ele era alguém próximo, sendo coautor de canções ao lado Edu Lobo e Francis Himes que estavam lá coladas na minha memória. O formato narrativo do documentário é aquele mesmo que se está acostumado, com entrevistas e imagens de arquivos se entrelaçando de maneira correta e nada mais, mas o teor de tal material é tão interessante e de forte caráter humanista que o espectador acaba se envolvendo com a história contada e por vezes mesmo encantado com o singular talento de Cacaso, além de também ficar comovido com o fato de sua morte precoce. Essa gama de sensações já torna “Cacaso na corda bomba” uma experiência mais que válida.

segunda-feira, outubro 23, 2017

Logan Lucky - Roubo em família, de Steven Soderbergh ***

Parece que aquela síntese entre os gêneros policial e ação envolvendo uma trama relacionada a grandes roubos e falcatruas afins é a praia favorita do diretor norte-americano Steven Soderbergh. “Logan Lucky – Roubo em família” (2017) é a sua mais nova incursão a esse estilo de filme, com uma estrutura narrativa que remete diretamente à franquia de “Onze homens e um segredo”, só que com adicional de cenários e personagens remeterem ao universo de caipiras sulistas. Se os filmes anteriores tinham uma atmosfera irônica e sequências de caráter cômico, “Logan Lucky” acentua ainda mais o caráter jocoso, com momentos que beiram a paródia. O roteiro é bem menos lapidado e a condução da narrativa em certo momentos evidencia uma certa frouxidão. Dá a impressão de que Soderbergh e elenco estavam mais a afim de se divertir fazendo o filme do que propriamente interessados em uma produção bem-acabada. Esse desleixo fica evidente na meia-hora inicial do longa, que cai com frequência na indulgência e na pura chatice. Mas é quando a trama começa a esboçar os preparativos para o grande assalto que é o mote principal do roteiro que a obra diz a que veio. Daí sim podemos sentir a habitual habilidade narrativa de Soderbergh de transformar clichês formais e temáticos em algo envolvente para o espectador. A encenação fica bem mais precisa, a montagem apresenta uma dinâmica sedutora, as atuações do elenco se configuram com mais nuances dramáticas e cômicas. De bônus, há uma interessante abordagem mista de sacanagem e carinho com os valores sulistas e uma sensacional trilha sonora cancioneira. Ou seja, no final das contas Soderbergh não entrega uma obra-prima na linha de “Irresistível paixão” (1998), mas ainda se mostra capaz de gerar um trabalho bastante divertido e memorável.

quinta-feira, outubro 19, 2017

Detroit em rebelião, de Kathryn Bigelow ***

A combinação parecia infalível: a diretora de “Guerra ao terror” (2008) e “A hora mais escura” (2012), obras antológicas na síntese de cinema de ação e realismo dramático, filmando uma revoltante história real envolvendo brutalidade policial durante conflitos raciais na Detroit de 1967. O resultado final de “Detroit em rebelião” (2017), entretanto, fica aquém das altas expectativas. A junção de elementos dos gêneros de thriller e drama de tribunal com alguns elementos de técnicas documentais, além da inserção de registros de arquivos da época, não soa tão orgânica. A diretora Kathryn Bigelow cai em alguns momentos numa encenação de tendências excessivamente melodramáticas e convencionais e mesmo a direção de arte soa um artificialismo estilizado incômodo. Tais ressalvas, entretanto, não implicam necessariamente em um mau filme. Pelo contrário – em suas quase duas horas e meia de duração, a produção consegue apresentar uma narrativa envolvente, ainda que sem maiores arroubos criativos. As longas sequências em que um grupo de policiais sádicos tortura psicológica e fisicamente um grupo de jovens negros num hotel apresentam uma tensão dramática quase palpável em seu detalhismo cênico, na sua atmosfera fatalista e na sua brutalidade gráfica explícita. Vale mencionar ainda a coerência sombria e melancólica da forma com que o roteiro se desenvolve, em que ao invés de se buscar conclusões moralizantes ou conciliadoras, evidencia-se uma visão crua e pessimista sobre a possibilidade de uma convivência racial pacífica nos Estados Unidos.

quarta-feira, outubro 18, 2017

Especialista em crise, de David Gordon Green **

O diretor norte-americano David Gordon Green não é exatamente um grande inovador em termos de linguagem cinematográfica. No melhor de sua filmografia, entretanto, mostrou-se como um cineasta de talhe clássico na elaboração de narrativas sóbrias, no formalismo preciso e em roteiros bem delineados. Assim, uma obra tão genérica e sem inspiração como “Especialista em crise” (2014) causa frustração. Em um primeiro momento, o longa-metragem em questão até parece promissor ao evidenciar uma trama que sugere uma crítica às hipocrisias do marketing político típico da sociedade ocidental, ao mostrar um duelo de dois consultores políticos dos Estados Unidos numa eleição de um país latino-americano fictício. Os desdobramentos do roteiro vão desbotando essa boa impressão ao apresentarem caracterizações simplórias e ingênuas de situações e personagens, sempre embalado por estética e narrativa preguiçosas e sem graça. Tal resultado final frustrante faz pensar que Gordon Green aceitou meio de má vontade um projeto de encomenda...

terça-feira, outubro 17, 2017

Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve **1/2

Se a continuação de um filme marcante só aparece 35 anos após o lançamento da obra original é de se presumir que tal “demora” seja justificada por um tremendo cuidado artístico em sua concepção e realização. Assistindo-se a “Blade Runner 2049” (2017), entretanto, não é essa a impressão que salta aos olhos. Há elementos na produção que realçam algo de diferente – a bela trilha sonora que sintetiza com bizarra harmonia melodias e dissonâncias, a direção de arte que concilia estilização e realismo sórdido, a fotografia de requintada sobriedade imagética e mesmo a composição dramática precisa de Ryan Gosling no papel do protagonista K/Joe. O problema é que a junção dessas partes não resulta em um todo convincente, principalmente pela narrativa irregular e por um roteiro que resvala por várias vezes no simplório. Se a obra-prima de 1982 dirigida por Ridley Scott foi um verdadeiro marco da ficção científica, ao juntar aspectos fundamentais e singulares do gênero mencionado com preceitos de cinema noir e influenciando uma série de filmes na linha futurista distópica ou apocalíptica, essa continuação dirigida por Denis Villeneuve mais parece um pálido derivativo dessas obras herdeiras do longa-metragem original. Não há aquela atmosfera enigmática, a ambientação algo imprecisa, os personagens ambíguos, a sensualidade insólita, as econômicas e antológicas sequências de brutalidade. O que fica em “Blade Runner 2049” é a necessidade contemporânea de amarrar todas as pontas da trama para deixar tudo mastigado para o espectador, as cenas de ação marcadas pelo banal tom apoteótico, os clichês mal ajambrados do roteiro, o tedioso tom solene da narrativa. Isso sem falar que a atuação de Harrison Ford mais faz lembrar um Han Solo aposentado e canastrão do que um Rick Deckard amadurecido e amargo.

segunda-feira, outubro 16, 2017

Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder ****

Assim como vários outros clássicos norte-americanos da época do Star System dos grandes estúdios, “Quanto mais quente melhor” (1959) foi realizado com a intenção primeira de divertir as platéias, mais até do que se tornar uma obra de grande expressão cultural. Só que a genialidade do diretor Billy Wilder na concepção e execução da narrativa do filme teve também como resultado final um longa-metragem que pode ser considerado grande arte. Isso fica evidente em expressivos detalhes como um elegante formalismo baseado em sutis nuances imagéticas, encenação perfeitamente coreografada que sintetiza precisão e desenvoltura alucinada, roteiro engenhoso no desenvolvimento de hilários quiproquós e na elaboração dos sagazes diálogos e direção de atores que extrai atuações inesquecíveis de todo o elenco principal e de boa parte dos coadjuvantes. 

sexta-feira, outubro 13, 2017

Cícero Dias, o compadre de Picasso, de Vladimir Carvalho ***

Na filmografia de documentários do cineasta Vladimir Carvalho se pode perceber a busca por uma síntese narrativa-existencial a traçar a particular trajetória histórica-cultural do Brasil na exposição de eventos marcantes ou de figuras de relevo na história do país. Em seu longa-metragem mais recente, “Cícero Dias, o compadre de Picasso” (2016), o diretor mantém a sua habitual abordagem artística ao contar a história do pintor Cícero Dias. A obra não mostra maiores arroubos criativos e dramáticos, estando longe da força estética e temática de trabalhos antológicos como “Conterrâneos velhos de guerra” (1990) e “Rock Brasília – A era de ouro” (2011). Ainda assim, é um documentário acima da média na maneira envolvente e didática com que consegue conciliar os aspectos intimistas da vida do biografado com o contexto sócio-político-cultural que o cercava. Em tempos que a iniciativa de reacionários e fascistas em determinar o fechamento de exposições que desafiam o moralismo hipócrita e oportunista é vista como algo normal e louvável, é saudável assistir a uma obra que exalta a sensibilidade e a ousadia de um artista que buscou em sua atividade criativa transcender o óbvio e as concepções repressoras daquilo que é considerado “belo”.

segunda-feira, outubro 09, 2017

Polícia em poder da máfia, de John Hillcoat ***

Em alguns de seus filmes anteriores, o diretor australiano John Hillcoat se mostrou um criativo recriador do cinema de gênero, enveredando com resultados extraordinários pelo faroeste (“A proposta”), pela ficção científica (“A estrada”) e pelo policial de época na linha gangster (“Os infratores”). Assim, ao se saber que o seu projeto seguinte, “Polícia em poder da máfia” (2016), trilharia o gênero policial contemporâneo, as expectativas só poderiam ser altíssimas. O resultado, entretanto, ainda que competente, acaba soando frustrante. O elenco é carismático (ainda que Kate Winslet abuse da canastrice), algumas sequencias de ação são bem executadas e a narrativa é até envolvente, mas o filme está longe da marcante fúria sensorial e da estética mista de crueza casca grossa e requinte visual dos celebrados trabalhos pregressos de Hillcoat. Parece mais uma eficiente produção genérica de um diretor tarefeiro de Hollywood do que a obra de um cineasta de talento singular.

sexta-feira, outubro 06, 2017

De volta ao jogo, de David Leitch e Chad Stahlski ***1/2

Pelo menos em termos de blockbusters, o gênero do cinema de ação contemporâneo, com algumas honrosas exceções, dá a impressão que se converteu em um grande vídeo game genérico. Coreografias de lutas e perseguições dependem de recursos óbvios de efeitos digitais e câmeras lentas que por vezes beiram o estático, por outras se aproximam de vídeos publicitários. O resultado final de tais obras acaba sendo enfadonho, ainda que o espectador não consiga dormir devido à barulheira excessiva que predomina em tais narrativas. “De volta ao jogo” (2014) é uma obra que se coloca na contramão de tal tendência. Os diretores David Leitch e Chad Stahelski conseguem para o filme uma convincente síntese entre violência cartunesca e uma certa densidade dramática, sabendo dosar com precisão sequências brutais e cenas que valorizam diálogos e uma tensa interação psicológica entre os personagens. Com essa abordagem artística, de certa forma, até fazem lembrar alguns trabalhos clássicos do cineasta francês Jean Pierre Melville. A encenação é outro dos grandes trunfos de “De volta ao jogo” – pode-se perceber tantos nas sequências mais frenéticas quanto naquelas de caráter reflexivo uma atenção acurada em nuances imagéticas e na fluidez do movimento cênico. Nesse sentido, até dá para dizer que há algo de nostálgico nessa visão sobre o cinema de ação, fazendo lembrar alguns longas marcantes dos anos 80, mas sempre conseguindo evidenciar também um traço contemporâneo na concepção estético-temática da obra. E é claro que há o mérito inquestionável de conseguir extrair de um notório canastrão como Keanu Reeves uma forte e carismática atuação.

quinta-feira, outubro 05, 2017

Lamparina da aurora, de Frederico Machado **

Parece ser uma tendência no cinema contemporâneo filmes que procuram uma síntese entre o horror e o alegórico carregado de simbolismos, procurando subverter alguns dos principais preceitos do cinema de gênero. Nessa perspectiva, destacam-se obras memoráveis como “Quando eu era vivo” (2014), “A bruxa” (2015) e “Mãe” (2017). A produção brasileira “Lamparina da aurora” (2017) trilha por caminhos artísticos parecido, mas seu resultado final é bem frustrante. Roteiro e composição imagética até revelam ousadia na forma com que buscam uma narrativa atmosférica baseada em metáforas visuais e temáticas. Falta para tal narrativa, entretanto, ritmo e consistência para envolver o espectador no que deveria ser uma espécie de vórtice sensorial perturbador e desconcertante. Do jeito que ficou, o filme mais induz ao sono do que a uma tensão consistente.

quarta-feira, outubro 04, 2017

Kingsman: O círculo dourado, de Matthew Vaughn **

O escritor escocês Mark Millar é um nome fundamental para se entender não só o cenário dos quadrinhos contemporâneos como também a cada vez mais intensa relação que se estabelece entre as indústrias das HQs e do cinema. Millar é o roteirista de algumas das principais obras dos comics nos últimos 25 anos, além do fato de que boa parte dos títulos que fazem parte do seu selo Millarworld já recebeu versões para a tela grande – sem contar que os filmes dos Vingadores se baseiam em conceitos que Millar desenvolveu na série “Os supremos” (no caso, os Vingadores do alternativo universo Ultimate da Marvel). A franquia cinematográfica “Kingsman” é originária de uma minissérie da MIllarworld, com um detalhe a mais: esse “Kingsman: O círculo dourado” (2017) é uma continuação para os cinemas, mas que ainda nem se efetivou nos quadrinhos! A curiosidade de tais dados estatísticos e comerciais exemplificam como os quadrinhos se tornaram uma inesgotável fonte de estratégias de marketing e lucro para as grandes corporações midiáticas, mas, no final das contas, não são garantia de que o filme em questão será relevante como narrativa cinematográfica. E nesse último quesito, o longa-metragem dirigido por Matthew Vaughn deixa bastante a desejar. Para começar, os principais motes dramáticos da trama da obra original de Millar são explorados de maneira superficial. Se na minissérie havia uma certa ambiguidade na atmosfera e uma visão crítica sobre o dilema político do conflito segurança versus liberdade, tema esse recorrente nos quadrinhos de Millar, em “O círculo dourado” praticamente tais características se perdem em meio a uma concepção estética e textual bastante esquemática e superficial, com um roteiro que escancara um discurso sócio-político maniqueísta e conservador. Mesmo no quesito de aventura escapista o filme de Vaughn é frustrante, perdendo-se numa encenação e ritmo narrativo que mais remetem a um vídeo game genérico. Vaughn até procura dar uma certa credibilidade para a obra ao inserir algumas referências à cultura pop e um tom galhofeiro em algumas sequências, mas tudo isso acaba soando estéril ou forçado diante do convencionalismo inexpressivo das suas escolhas formais e do desenvolvimento do roteiro. E a sensação de decepção fica ainda mais reforçada quando vem à lembrança de que se trata do mesmo cineasta de trabalhos memoráveis como “Nem tudo é o que parece” (2004), “Kick ass” (2010) e “X-Men: Primeira classe” (2011).

terça-feira, outubro 03, 2017

Filha de ninguém, de Hong Sang-soo ***1/2

Há um detalhe narrativo em “Filha de ninguém” (2013) que sintetiza de maneira contundente as particulares concepções artísticas do diretor sul-coreano Hong Sang-soo – em algumas cenas do filme, o personagem do professor (Lee Sun-kyun) com o qual a protagonista Haewon (Jeong Eun-Chae) tem um caso fica ouvindo uma canção instrumental em um pequeno aparelho eletrônico, com tal áudio sendo reproduzido diretamente em cena, sem truques de edição de som. O que poderia parecer um recurso que beira o amadorismo na verdade tem um efeito estético e dramático bastante desconcertante. Por toda a narrativa do longa predomina essa noção de desconstrução formal que oscila entre o estranhamento e o encantador que se mostra em notável sintonia com o roteiro que evidencia um universo que abarca com naturalidade a realidade, o onírico, banalidades do cotidiano e noções de parábola moral. Nesse sentido, para Hong Sang-soo não parece haver muitas diferenciações entre as caracterizações de uma abordagem naturalista e de uma estilização que evoque o delirante, com tais planos de realidade se misturando como se fosse um registro único entre o documental e o caseiro. Dentro dessa singular linguagem cinematográfica também entra uma encenação marcada pela fluidez e por insólitas nuances cômicas (a sequência em que Haewon e seu referido amante encontram por acaso seus colegas de faculdade em um restaurante, por exemplo, é antológica em sua dinâmica e ironia). Assim, ao invés de apelar para óbvios arroubos de virtuosismo técnico ou de grandes viradas dramáticas em sua trama, “Filha de ninguém” conquista pela lenta e hipnótica sedução do espectador ao propor um despojado e original conjunto existencial-formal.

segunda-feira, outubro 02, 2017

Psiconautas - As crianças esquecidas, de Pedro Rivero e Alverto Vásquez ****

Na animação “A crise carnívora” (2007), o diretor espanhol Pedro Rivero investia numa equação narrativa insólita baseada em grafismo sujo, humor negro, violência, escatologia e alegoria política. Voltando ao gênero animação em “Psiconautas – As crianças esquecidas” (2015), Rivero, junto ao quadrinista Alberto Vásquez, refina a estética e a temática de seu trabalho anterior e entrega uma obra memorável. O roteiro combina de maneira natural e poética aventura pós apocalíptica, uma visão sombria sobre a dependência química e simbolismos diversos, sempre sob uma perspectiva humanista e complexa. No desenvolvimento e resolução da trama, não há espaço para o simples maniqueísmo ou moralismo fáceis, havendo uma exposição crua e amarga das hipocrisias e preconceitos típicos da sociedade ocidental contemporânea. Rivero e Vásquez investem num formalismo personalíssimo – ao invés da perfeição realista ou da estilização padrão de boa parte das animações dos grandes estúdios, há a valorização de um traço de bizarra beleza pictórica, repleta de nuances imagéticas plenas de lirismo e sagacidade. Repare-se, por exemplo, na figura do protagonista Birdboy, cuja caracterização visual remete a uma estranha síntese de pássaro e criatura gótica. Aliás, a própria concepção dos personagens do filme reflete as ideias desconcertantes de “Psiconautas”, em que aparentemente “fofinhos” seres antropomorfizados são inseridos em situações e cenários desoladores e sórdidos. No conjunto geral das escolhas artísticas da produção, fica a impressão de um contundente trabalho a evidenciar um mundo se desagregando em meio a um cenário de obscurantismo místico e exploração econômica, reflexo não muito distante de nossa realidade.