sexta-feira, setembro 29, 2017

Bellini e o demônio, de Marcelo Galvão *

É de se elogiar a pretensão do diretor Marcelo Galvão pela concepção do que deveria ter sido “Bellini e o demônio” (2008), algo como uma releitura abrasileirada do misto de cinema noir e horror sobrenatural do clássico “Coração satânico” (1987), com direito ainda a toques da estética metafísica-delirante de David Lynch. As bem sacadas referências da obra, entretanto, não encontram uma execução à altura de suas intenções artísticas. O filme padece de uma narrativa trôpega e encenação vacilante, além da canastrice irremediável do elenco e do roteiro estapafúrdio. Diante de tais equívocos formais e temáticos, o resultado final é de uma ruindade constrangedora que por vezes acaba caindo na comicidade involuntária – no final das contas, isso até faz com que assistir ao filme de Galvão até seja uma experiência divertida!

quinta-feira, setembro 28, 2017

Joe, de David Gordon Green ***

No melhor de sua filmografia, o diretor norte-americano David Gordon Green se mostrou um inspirado reciclador de preceitos narrativos clássicos de gêneros como o melodrama (“Prova de amor”), policial (“Contra corrente”) e comédia (“Segurando as pontas”). “Joe” (2013) não está no mesmo nível artístico das obras mencionadas, mas ainda assim é uma obra eficiente como drama no estilo realista. O roteiro cai em alguns recursos óbvios em termos de estruturação de situações e personagens, o que é compensado pelo vigor da encenação concebida por Green. Além disso, há alguns detalhes que dão um realce diferenciado para a produção, como a sombria trilha sonora e as sóbrias composições dramáticas do elenco – nesse último quesito, Nicolas Cage surpreende por sair daqueles registros entre a preguiça e o exagero de boa parte de suas recentes atuações.

quarta-feira, setembro 27, 2017

Zoolander 2, de Ben Stiller **1/2

Pode-se dizer que a trajetória de Ben Stiller como cineasta é bem mais interessante do que na função de ator. Se interpretando ele se mantém dentro de uma linha linear entre dramas realistas e previsíveis comédias “família”, com algumas exceções, quando assume a direção os rumos artísticos que toma são mais ousados, vide o humor delirante de obras memoráveis como “Zoolander” (2001) e “Trovão tropical” (2008). Dentro desse contexto, “Zoolander 2” (2016) acaba parecendo bem frustrante em seu resultado final. Stiller requenta piadas e maneirismos do primeiro filme, por vezes até acaba obtendo algumas sequências memoráveis em termos de comicidade nonsense, mas está bem longe daquela antológica atmosfera alucinada de seus melhores longas. 

terça-feira, setembro 26, 2017

Mãe!, de Darren Aronofsky ***1/2

Quem for assistir a “Mãe!” (2017) achando que se trata de um filme de terror tradicional vai dar com os burros n’água. O filme do diretor Darren Aronofsky está mais para uma equação bizarra: imagine alguma obra típica de Lars Von Trier, como “Anticristo” (2009) ou “Melancolia” (2011), refilmada por James Cameron. O resultado dessa combinação aparentemente improvável pode não ser exatamente uma obra-prima, mas ainda assim é um trabalho perturbador e fascinante em seus exageros de encenação e na sua intrincada simbologia. Ao contrário de “O lutador” (2008) e “Cisne negro” (2010), longas anteriores de Aronofsky marcados por uma narrativa mais equilibrada e concepção estética mais sutil, “Mãe!” se aproxima dos delírios barrocos e do ritmo narrativo irregular de “Fonte da vida” (2006). Tal opção artística do cineasta não é gratuita ou acidental, pois o que o diretor faz é jogar o espectador direto na mente caótica e fervilhante de ideias e concepções megalomaníacas de um escritor (Javier Barden) para fazer um cortante retrato existencial sobre o patriarcalismo e opressão religiosa na sociedade ocidental. O contraponto que se estabelece entre o protagonista e sua esposa (Jennifer Lawrence) se manifesta num primeiro momento como de caráter intimista e aos poucos vai ganhando contornos cada vez mais épicos e complexos, com o roteiro recheando várias sequências com metáforas visuais e mesmo textuais desconcertantes que transformam “Mãe!” em uma sombria parábola moral que se conecta com uma linhagem recente de filmes como “A bruxa” (2015) e “O ornitólogo” (2016) que questionam de maneira ácida a pérfida e indissociável relação entre obscurantismo religioso e os mecanismos de dominação político-social.

sexta-feira, setembro 22, 2017

It - A coisa, de Andy Muschietti ***

A figura do escritor Stephen King não se restringe apenas ao âmbito literário. O alcance de sua obra se estendeu a outras mídias, fazendo com que o autor se configurasse numa espécie de universo cultural próprio, tornando-se uma referência no imaginário popular ocidental, principalmente no que diz respeito na caracterização das referências estéticas e temáticas dos anos 80, época em que alguns dos seus principais livros e filmes baseados em seus originais foram lançados. Nesse sentido, a nova versão cinematográfica de “It – A coisa” (2017), um de seus livros mais conhecidos, é um exemplar expressivo dessa síntese entre King e anos 80. O filme do diretor Andy Muschietti evoca na sua estrutura narrativa e no seu roteiro uma combinação da exaltação da amizade na adolescência de “Conta comigo” (1986), da aventura juvenil escapista de “Goonies” (1985) e do terror sobrenatural explícito da franquia oitentista “A hora do pesadelo”. Ou seja, pura nostalgia divertida reciclada com os efeitos especiais contemporâneos. Dentro de tal concepção, é uma obra que até surpreende por doses de violência gráfica maiores que o habitual nesse tipo de produção, por vezes beirando até o escatológico. A trama evoca em determinadas passagens questões espinhosas como racismo, pedofilia, incesto e opressão religiosa, mas sempre de forma mais sutil, com a narrativa privilegiando a ação e o grafismo sangrento. Tal direcionamento acaba fazendo com que “It” resvale por vezes no convencionalismo excessivo, quando justamente as melhores passagens da obra estão naquelas sequências que valorizam um horror mais atmosférico e perturbador que se relaciona com os segredos e medos obscuros de uma cidadezinha interiorana típica do “american way of life”.

quinta-feira, setembro 21, 2017

Feito na América, de Doug Liman ***

Pelo menos em termos da concepção e realização de seus filmes, dá para dizer que o diretor Doug Liman é um grande admirador da obra de Martin Scorsese. “Swingers” (1996), um de seus primeiros longas e talvez o seu melhor trabalho como cineasta, fazia uma explícita homenagem à “Os bons companheiros” (1990), uma das mais expressivas obras-primas de Scorsese, na sequência em que um grupo de amigos atravessava as portas de serviços de um restaurante para demonstrar o seu poder de influência. Em “Feito na América” (2017), recente produção dirigida por Liman, essa aproximação com a aludida influência se mostra novamente evidente. Roteiro e estrutura narrativa remetem diretamente a filmes como “Os bons companheiros” e “O lobo de Wall Street” (2013) – tramas baseadas em histórias reais mostrando as conturbadas trajetórias pessoais de protagonistas que atingiram grandes picos de riqueza econômica ao transitarem em um tênue limite entre a livre-iniciativa e a franca bandidagem, em abordagens que trazem em seu subtexto uma visão crítica e irônica sobre a relação intrínseca entre capitalismo e ilicitudes. No caso da obra de Liman, a biografia do piloto de avião Barry Seal (Tom Cruise), misto de agente da CIA e traficante de drogas, também traz à tona segredos obscuros da política internacional dos Estados Unidos na era Reagan. Liman não tem o mesmo nível artístico de Scorsese, que transformou seus citados filmes em vertiginosas viagens sensoriais sobre a ambição humana e degradação ética – Liman é mais tradicionalista e previsível na condução de sua narrativa. Ainda assim, “Feito na América” tem momentos memoráveis, principalmente nas sequências de ação e na boa caracterização de Cruise no papel principal. Aliás, em termos de ação cinematográfica, não há como não fazer uma outra associação com Scorsese na obra em questão nas divertidas cenas em que Seal aterrissa seu avião no meio de uma cidadezinha do interior, evocando uma cena parecida em “O aviador” (2004).

terça-feira, setembro 19, 2017

Cauby - Começaria tudo outra vez, de Nelson Hoineff ***

A partir do surgimento da bossa nova no final dos anos 50, a música brasileira sofreu um processo de polarização que perdura até hoje, em que em uma visão simplificadora e reducionista, e por isso mesmo equivocada, foi estabelecida uma divisão entre aquilo que é considerado “de qualidade” e outro que é determinado como “brega”. O cantor Cauby Peixoto, que surgiu alguns anos antes da bossa nova, foi um artista que, diante de tal concepção restritiva, encontrou dificuldades em ser catalogado. Dessa forma, sua importância e talento, localizados numa insólita área entre o popular e o sofisticado, nunca tiveram um reconhecimento mais amplo por público e crítica. Esse dilema existencial-artístico é captado com notável sensibilidade e perspicácia pelo diretor Nelson Hoineff no documentário “Cauby – Começaria tudo outra vez” (2013). Na concepção narrativa do longa, a vida pessoal e a trajetória profissional do biografado se entrelaçam de maneira indissolúvel como uma coisa só – o estilo misto de técnica impecável e exageros maneiristas de Cauby se relaciona com sua personalidade sedutoramente ambígua. O roteiro passeia com naturalidade e conhecimento de causa tanto pelos “causos” e fofocas que marcaram a biografia de Cauby, sem parecer apelativo ou gratuito, como pela sua evolução como intérprete. Nesse último aspecto, sintetiza exemplarmente detalhes e singularidades de seus principais discos e canções, realçando a beleza atemporal da arte do cantor para admiradores de primeira hora e neófitos.


No conjunto geral, a visão do documentário sobre o seu protagonista traz em seu subtexto uma espécie de radiografia da alma popular do brasileiro, com todas as suas grandezas e contradições, coisa que Hoineff já havia feito também com muitos acertos em “Alô, alô, Terezinha!” (2009).

segunda-feira, setembro 18, 2017

As duas Irenes, de Fábio Meira ***

Os dois longas-metragens que mais ganharam prêmios e chamaram à atenção na edição de 2017 do Festival de Gramado, “Como nossos pais” e “As duas Irenes”, têm em comum o fato de que as premissas básicas de sua trama versam sobre a oprimida condição feminina perante uma sociedade patriarcal, além dos seus respectivos subtextos também indicarem possibilidades de reação diante desse quadro. Se no primeiro filme há elementos temáticos de modernidade que acabam se perdendo por vezes em uma narrativa que caem em alguns apelativos truques melodramáticos, na obra dirigida por Fábio Meira a abordagem artística-existencial se mostra mais sóbria e universal. O acabamento formal da produção é tradicional e não mostra grandes arroubos estéticos, mas a edição e fotografia formam um conjunto narrativo de ritmo sereno, quase contemplativo, que se mostra em perfeita sintonia com o espírito de sutil e ácida contestação presente no roteiro. A encenação valoriza a síntese de vigor e delicadeza nas composições dramáticas das duas garotas protagonistas, além de realçar os aspectos contraditórios da figura paterna dominadora e carismática de Tonico (Marco Ricca). Em alguns momentos, Meira até brinca com alguns clichês narrativos, como se insinuasse um caminho mais previsível e conciliador para a trama do filme. Em seu terço final, entretanto, “As duas Irenes” se direciona para caminhos mais libertários e questionadores, com uma conclusão que evoca um desconcertante misto de desafio e ironia.

sexta-feira, setembro 15, 2017

Billi Pig, de José Eduardo Belmonte *

A intenção do diretor José Eduardo Belmonte é até louvável em “Billi Pig” (2011) – reciclar o gênero comédia na linha pastelão/chanchada sob uma perspectiva autoral e com forte viés sócio-cultural. De certa forma, é o que ele fez posteriormente dentro do gênero policial com o sofrível “Alemão” (2013), logrando resultado artístico semelhante. Falta para o filme uma maior convicção na execução de sua proposta. A encenação não tem fluência, o elenco se perde em desempenhos caricaturais e o roteiro trabalha clichês sem maiores inspirações. No conjunto geral, trata-se de uma obra bem distante dos melhores momentos de Belmonte como cineasta, vide trabalhos memoráveis como “A concepção” (2005) e “Se nada mais der certo” (2008).

quinta-feira, setembro 14, 2017

Como nossos pais, de Laís Bodanzky **1/2

De todos os meios de expressão artístico-cultural, a música popular é aquele formato que melhor traduziu as alegrias, mazelas, dilemas e contradições da nação brasileira, ou seja, a alma de um povo. Há um infindável número de artistas expressivos e canções antológicas que formaram esse rico panorama histórico e existencial. Dentro desse contexto, dois nomes que certamente se destacam é Belchior e Jorge Mautner. O primeiro na articulação de um cancioneiro marcado pela rebeldia estética-comportamental em boa parte de seus temas, o segundo pela configuração de uma síntese de musicalidade e poesia que une filosofia libertária, lirismo desconcertante e a fusão insólita entre o erudito e o popular. Assim, a presença de Belchior e Mautner dentro da concepção do longa “Como nossos pais” (2017) não é gratuita. É como se a diretora Laís Bodanzky quisesse transpor o ideário artístico de tais figuras para o subtexto de seu filme. Para isso, há uma premissa básica até bastante engenhosa na sua trama: ao anunciar para a filha Rosa (Maria Ribeiro) que essa na verdade é filha de outro homem e de que também estaria com câncer terminal, a personagem Clarice (Clarisse Abumjara) pretende detonar um processo de mudança na vida de Rosa para que ela saia de um limbo marcado pelo marasmo profissional e pessoal. Ocorre, entretanto, que iniciado tal processo, ele foge do controle dos padrões desejados por Clarice – Maria passa a questionar todos os aspectos que regem a sua vida, principalmente no que diz respeito aos seus relacionamentos pessoais. O que era para ser um pequeno ajuste dentro de um ordenamento pequeno-burguês, acaba caindo num mergulho no caos. Se tal pretensão temática pode até soar radical, na prática as coisas não são bem assim. O maior equívoco de Bodansky é que por vezes a produção cai numa formatação narrativa previsível e formulaica, quase como se fosse um manual dos sofrimentos da mulher moderna. Em termos sociológicos, isso pode até funcionar, no sentido de fazer com que a plateia masculina crie uma empatia com o universo feminino (ainda que restrito dentro de um padrão classe média). Como cinema, entretanto, o resultado final é falho porque o formalismo da obra se mostra conservador diante da proposta libertária do seu subtexto. A presença xamânica de Mautner no elenco é prova desse problema de abordagem estética de “Como nossos pais” – sempre que está em cena, ele rouba atenção justamente porque sua composição dramática foge do previsível e do linear. Aliás, em termos de atuações, justiça seja feita, a interpretação de Maria Ribeiro também é de se destacar pela fúria e vigor que expressa. No mais, “Como nossos pais”, a canção de Belchior evocada pelo título do filme, é um tema que versa sobre amargura e irresignação diante da capitulação final perante a ordem pequeno-burguesa, e não uma ode ao conformismo geracional conforme sugere a sequência em que a música é tocada ao piano. Mas ainda que o longa de Bodansky seja equivocado em boa parte de suas soluções narrativas, é de se louvar a inquietude criativa de suas intenções, o que fica bem evidente na contundência das suas sequências finais.

quarta-feira, setembro 13, 2017

O reencontro, de Martin Provost **1/2

Se em “Violette” (2013) o diretor francês Martin Provost conseguiu estabelecer uma narrativa marcada pelo classicismo sóbrio para contar uma história real que refletia de forma vigorosa alguns dos principais dilemas e conflitos artísticos-existenciais do século XX, em “O reencontro” (2017) ele envereda pelo gênero do melodrama de maneira bem menos contundente. A trama de caráter intimista até evoca um certo viés sócio-político no retrato de uma sociedade europeia cada vez mais desumanizada e vinculada a um regime sócio-econômico excludente e individualista. Por outro lado, Provost se rende a truques sentimentais um tanto apelativos e a soluções narrativas bastante formulaicas, ainda que a sua encenação guarde uma interessante síntese entre rigor e naturalidade. Além disso, há boas atuações em seu elenco, principalmente no trio protagonista vivido por Catherine Deneuve, Catherine Frot e Olivier Gourmet. Mas faltou para o filme aquela crueza formal cortante e o humanismo sem concessões que tornam as produções dos irmãos Dardenne, por exemplo, tão memoráveis dentro dessa linhagem de obras sócio-intimistas.

terça-feira, setembro 12, 2017

Uma mulher fantástica, de Sebastián Lelio ***

O diretor chileno Sebastián Lelio já havia demonstrado competente domínio narrativo para o drama intimista em “Gloria” (2013). Em “Uma mulher fantástica” (2017), ele até amplia o seu direcionamento artístico, combinando uma temática repleta de questões tabus e uma abordagem estética que transita com notável desenvoltura entre o realismo sóbrio e sutis elementos fantásticos. Dentro de tal abordagem, sequências que tinham tudo para cair no sentimentalismo excessivo ou mesmo na polêmica gratuita acabam demonstrando uma densidade dramática perturbadora, além de revelarem uma forte riqueza simbólica na caracterização de personagens e situações. Lelio sempre contrapõe no roteiro do filme uma delicada visão de mundo libertária e humanista a uma postura repressora e hipócrita de manutenção de valores patriarcais – nesse processo, por vezes sua obra cai em um certo maniqueísmo, principalmente no que diz respeito a uma encenação que remete ao caricatural quando entra em cena aqueles personagens de índole preconceituosa. Ainda assim, pode-se dizer que geralmente as ações moralistas na vida real têm uma carga de ridículo e caricatural (vide a patética e reacionária postura de direitistas fascistas no recente fechamento de uma exposição de temática “queer” no Santander Cultural em Porto Alegre). Nesse contexto, “Uma mulher fantástica” ganha ainda mais ressonância artística e existencial diante os conflitos sócio-políticos-culturais típicos da sociedade contemporânea.

segunda-feira, setembro 11, 2017

A minha grande noite, de Álex de la Iglesia ***

O diretor espanhol Álex de la Iglesia conseguiu atingir um feito para o cinema contemporâneo que é de estabelecer um estilo artístico indelével, algo como se fosse uma síntese improvável entre aquelas atmosferas bagaceiras e sórdidas típicas das primeiras produções de Pedro Almodovar com o barroquismo distorcido que remete a algumas das obras mais delirantes de Fellini. Nesse sentido, os primeiros momentos de “A minha grande noite” (2015) são bastante promissores, em que as habituais brutalidade cartunesca e comicidade escrota embalam um roteiro que versa sobre a vulgaridade e hipocrisia da mídia e o caos social-econômico da sociedade ocidental contemporânea. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, as boas expectativas não se cumprem em sua totalidade, principalmente pelo fato que não fica aquela impressão de que Iglesia tenha levado tudo às últimas consequências, coisa que ele já tinha realizado com propriedade em intensas obras como “O dia da besta” (1995), “Muertos de risa” (1999) e “Balada do amor e do ódio” (2010). Por vezes, o longa se entrega a algumas facilidades formais e temáticas, sugerindo quase uma amena comédia romântica. É claro que há bons momentos, principalmente pelo humor beirando o surrealismo de algumas sequências e pelas grotescas caracterizações dos personagens, além das ótimas cenas envolvendo alucinadas e perturbadoras batalhas campais entre policiais e manifestantes desempregados. Ainda assim, na conclusão de “A minha grande noite” fica a constatação que Iglesia perdeu a chance de entregar um trabalho antológico e contundente sobre os conturbados tempos que vivemos.

sexta-feira, setembro 08, 2017

O novato,de Roger Donaldson **1/2

Não dá para chegar ao exagero de dizer que o australiano Roger Donaldson seja um diretor que deixe marcante um traço autoral em seus trabalhos. Ele está mais para um competente “tarefeiro” dos grandes estúdios de Hollywood que de vez em quando acaba apresentando obras acima da média (“Sem saída”, “13 dias que abalaram o mundo”, “Efeito dominó”). “O novato” (2003) não se enquadra entre os momentos de maior brilho artístico de Donaldson. Sua narrativa e formalismo até fazem com que o espectador acompanhe o longa com algum interesse, mas a obviedade das soluções do roteiro, a canastrice preguiçosa do elenco e a falta de uma tensão dramática mais convincente configuram um filme que é fácil de ver e também de esquecer.

quarta-feira, setembro 06, 2017

Atômica, de David Leitch ***1/2

O diretor David Leitch é uma avis rara no panorama cinematográfico contemporâneo – é um cineasta que conseguiu imprimir um traço autoral trabalhando dentro do gênero do cinema de ação. Os longas “De volta ao jogo” (2014) e “John Wick – Um novo dia para matar” (2017) estabeleceram um estilo personalíssimo baseado em uma narrativa estilizada, roteiro baseado numa insólita síntese entre tensão dramática e brutalidade cartunesca e sequências de ação coreografadas com requinte e fluência em tiroteios, perseguições automobilísticas e inúmeros confrontos físicos. Tal abordagem artística é retomada na obra mais recente de Leitch, “Atômica” (2017), com um resultado final notável. O fato da trama se desenvolver na Berlin do final dos anos 80, nos últimos dias do famigerado muro que separava os lados oriental e ocidental, faz com que o diretor se sinta à vontade em colocar em prática as suas obsessões estéticas. O trabalho de composição imagética e de reconstituição de época formam um conjunto audiovisual que mais se vincula a recriação de um imaginário do que à reconstituição realista. Os anos 80 representaram o período final da paranoia nuclear estimulada pela Guerra Fria, e um dos grandes méritos de “Atômica” é justamente realçar com sutileza e criatividade esse clima de suspense e fragilidade existencial de um mundo que sempre parece no limite de uma queda inexorável. Essa ambientação sombria e sórdida se mostra em perfeita sintonia com uma trama repleta de reviravoltas e personagens ambíguos. Os elementos típicos da época são inseridos com naturalidade e sensibilidade, o que se verifica no trabalho de direção de arte que alterna sobriedade e delírio e na forma com que clássicas canções rockers e eletrônicas da época se inserem na narrativa. A conclusão do filme, muito inclinada para clichês habituais e forçados de filme de espionagem, até acaba soando um tanto frustrante. Ainda assim, “Atômica” consegue se manter como um trabalho memorável e reforça o nome de Leitch como um dos grandes nomes do cinema dessa década.

terça-feira, setembro 05, 2017

Sexta-feira em apuros, de F. Gary Gray **

A ascensão artística do diretor Spike Lee nos anos 80 marcou também o renascimento do cinema negro norte-americano. Ao contrário do panorama setentista blaxploitation, mais voltado para uma revisão radical do cinema de gênero, esse novo cenário se concentrou em dramas e comédias de formato mais tradicional que abordavam em suas respectivas temáticas, em maior ou menor grau, questões sociais inerentes à população negra nos Estados Unidos. Foi justamente nesse contexto que apareceu “Sexta-feira em apuros” (1995), produção cômica que trazia em sua narrativa elementos-chaves para aquela cultura: roteiro que apresenta situações cotidianas nos bairros de predominância black, trilha sonora recheada de hip-hop, uma atmosfera lúdica movida a maconha e piadas sexistas. E no meio de tal concepção artística bastante vinculada à diversão escapista, havia rasgos de crítica social sobre criminalidade, preconceito racial e opressão estatal. A junção de todos esses aspectos estéticos e temáticos por vezes soava um tanto forçada, ficando evidente uma encenação ingênua e truncada, além de um roteiro esquemático em demasia. Ainda assim, é uma obra que acaba tendo um inesperado encanto pelo tom nostálgico de ser o retrato de uma época. E é curioso saber que o diretor F. Gary Gray décadas depois foi o responsável pela vigorosa cinebiografia “Straight Outta Compton – A história do N.W.A.” (2015), longa que contou a história da banda do cantor e ator Ice Cube, que interpretou o papel de protagonista em “Sexta-feira em apuros”.

segunda-feira, setembro 04, 2017

Um instante de amor, de Nicole Garcia ***

O título em português e o cartaz de “Um instante de amor” (2016) podem sugerir aqueles rotineiros e mofados melodramas exacerbados típicos de uma certa linguagem previsível de produções francesas de “qualidade”. Na prática, entretanto, ainda que o filme dirigido por Nicole Garcia tenha uma narrativa marcada por um classicismo acentuado, existem determinados fatores artísticos no longa que o afastam do estigma da irrelevância. Por trás de uma trama que valoriza elementos característicos dos melodramas românticos, há também uma arguta e sutil visão crítica sobre como a concepção de amor romântico pode ser opressor e alienante paras os indivíduos. Tal direcionamento existencial se vale de um engenhoso jogo de simbologias, além de uma abordagem emocional bastante sóbria e de uma atmosfera mista de ironia e morbidez. A caracterização de personagens e situações é muito bem delineada – nesse sentido, é fascinante como a construção dos três principais personagens da história se inter-relacionam com notável e fluida coerência, servindo como metáfora precisa do espectro sócio-político-cultural da Europa da primeira metade do século XX. Mesma o aparente tom novelesco do filme guarda em sua essência uma melancólica e resignada constatação sobre as relações humanas dentro de um contexto de hipócrita idealização romântica e preconceito social.

sexta-feira, setembro 01, 2017

Cheech e Chong atacam novamente, de Tommy Chong ***

Não é preciso estar exatamente chapado para apreciar “Cheech e Chong atacam novamente” (1980). É até provável que estando em um estado de consciência alterado algumas pessoas poderão curtir a “viagem” melhor, mas a verdade é que o filme foge dos padrões comportados do que seria considerado “aceitável” em termos de uma comédia norte-americana comercial contemporânea. Dentro da concepção artística da obra, elementos temáticos e estéticos vão sendo jogados na narrativa de uma maneira que beira o aleatório – encenação por vezes beirando o mambembe, paródia de ficção científica, comicidade que sintetiza ingenuidade e escrotidão. Dentro de tal concepção narrativa que simula amadorismo há uma certa coerência artística-existencial que joga o espectador em uma espécie de universo paralelo movido à maconha e a um muito particular senso de humor. No cômputo geral, uma produção deliciosamente anacrônica de estranho encanto.