terça-feira, setembro 30, 2014

Sin City: A dama fatal, de Robert Rodriguez e Frank Miller **1/2


O resultado final de “Sin City: A dama fatal” (2014) como obra cinematográfica parece refletir os atuais rumos criativos de Frank Miller nos quadrinhos (vide os medíocres “Grandes Astros: Batman e Robin” e “Terror sagrado”) e faz pensar que não há mais o que extrair de efetivamente relevante da franquia. Os pontos positivos do filme se concentram no segmento que alude ao seu título e que se baseia num dos melhores arcos da série original dos comics criada por Miller, ainda que não tenha a mesma dinâmica narrativa ágil de “Sin City: A cidade do pecado” (2005). Já as demais histórias mostradas nessa continuação foram especialmente escritas para o filme e formam uma reciclagem pálida de ideias que já foram melhores trabalhadas em obras anteriores (tanto nos quadrinhos como no primeiro filme). Nessas tramas restantes, há uma evidente indefinição de abordagem, em que o excesso de um dramatismo arrastado não se encaixa bem com o grafismo cartunesco e caricatural da estética da produção. Falta aquele senso de humor sacana e doentio que a tônica dominante do filme anterior e também de boa parte do melhor que Miller já fez nos quadrinhos. Essa falta de rumo na perspectiva artística do filme se reflete no incômodo tom canastrão das interpretações do elenco. Já para Robert Rodriguez, “Sin City: A dama fatal” até representa um certo alento, depois do horroroso “Machete” (2010), mas a verdade é que o cara não entrega uma obra satisfatória desde “Planeta Terror” (2007).

segunda-feira, setembro 29, 2014

Mesmo se nada der certo, de John Carney ***


A relação do cineasta irlandês John Carney é intensa. As tramas dos seus filmes se prendem a estruturas clássicas e pré-definidas, mas o forte está no subtexto delas, que servem como uma espécie de reflexão sobre o papel das canções populares no mundo contemporâneo. Se no melodrama “Apenas uma vez” (2006) a música servia como uma espécie de redenção pessoal para os seus personagens levemente desajustados, na comédia romântica “Mesmo se nada der certo” (2014) se pode dizer que o olhar é um pouco mais aprofundado dentro dessa temática. Como narrativa, essa produção mais recente recicla as ideias formais básicas do primeiro filme: atmosfera agridoce, estética de visual mais cru e granulado, números musicais pontuando a trama, personagens simpáticos e melancólicos. As soluções temáticas são previsíveis e por vezes tem até um viés um tanto conservador. Por outro lado, o filme traz uma perspectiva até bem realista e lúcida sobre a indústria musical, evidenciando que aquela antiga estrutura do artista que vê na grande gravadora a solução para todas as suas preces está em franca decadência diante de inovações tecnológicas e comportamentais que mudaram radicalmente a forma com que as pessoas se relacionam com a música. Mesmo o conceito de um álbum se tornou nebuloso... Assim, “Mesmo se nada der cento” acaba ganhando uma forte carga emblemática ao se impor como obra que capta o espírito de uma época. E de bônus, ainda traz uma ótima interpretação de Mark Ruffalo (e que compensa a atuação afetada e careteira de Keira Knightley).

sexta-feira, setembro 26, 2014

Livrai-nos do mal, de Scott Derrickson **1/2


O cineasta norte-americano Scott Derrickson tem firmado o seu nome dentro do meio dos grandes estúdios como diretor vinculado a um gênero específico, no caso o horror, situação essa que nos dias de hoje não chega a ser algo exatamente corriqueiro. Isso não quer dizer necessariamente que ele tenha uma marca autoral, pois até o momento sua cinematografia e um tanto irregular e genérica. Assim como ele é o responsável pelo medíocre “O exorcismo de Emily Rose” (2005), o cara também foi capaz de dirigir “A entidade” (2012), obra efetivamente assustadora. “Livrai-nos do mal” (2014) se mostra como um meio-termo entre as citadas produções anteriores de Derrickson. Não tem aquela cara de telefilme morno de “Emily Rose”, mas também não há aquela pegada sinistra e perturbadora de “A entidade”. O filme chega a apresentar algumas boas soluções visuais e narrativas, além da dupla de protagonistas ter carisma em suas sombrias caracterizações, mas a combinação entre policial e horror não chega a ter um caráter orgânico satisfatório – ainda que as cenas de ação sejam boas e convincentes, quando a trama envereda para o horror soa esquemática e previsível demais, o que fica evidente na seqüência final de exorcismo, cuja encenação genérica é destituída de vigor e criatividade.

quinta-feira, setembro 25, 2014

Hércules, de Brett Ratner **1/2


Brett Ratner está longe de ser o mais brilhante dos diretores norte-americanos da atualidade, mas pelo menos tem a honestidade de não querer parecer um “visionário”. Sua produção mais recente, “Hércules” (2014), é um exemplo até contundente disso. O filme é derivativo de uma série de tendências que grassam no atual panorama do cinema de aventura de cunho fantástico: uma pretensa abordagem naturalista de velhos mitos, o gosto por cenários exóticos e grandiosos (há grandes tomadas panorâmicas que parecem terem sido decalcadas direto da franquia de “O senhor dos anéis”), uma violência mais explícita a ressaltar um possível tom sombrio na narrativa. No final das contas, entretanto, o pastiche de Ratner acaba se revelando bem digerível. Para começar, ele não é da nefasta escola Zack Snyder na direção de sequências de ação – filma com clareza e fluidez razoáveis cenas de pancadaria explícita. Além disso, por mais óbvio e estereotipado que seja o roteiro, é inegável que há personagens marcantes e a trama seja bem delineada no seu desenvolvimento. Ou seja, “Hércules” está longe de ser uma produção inesquecível aos moldes, por exemplo, de um “Guardiões da Galáxia”, mas pelo menos é uma diversão escapista eficiente. E dentro daquilo que se tem feito em boa parte de trabalhos do gênero, isso não deixa de ser um mérito considerável.

quarta-feira, setembro 24, 2014

Amorosa Soledad, de Martin e Victoria Galardi *


Nos créditos de “Amorosa Soledad” (2008), consta que o ator Ricardo Darin teria um papel coadjuvante no filme em questão. Na verdade, o papel dele é muito mais minúsculo, o cara não fica nem dois minutos em cena e sua participação não acrescenta nada à trama. A inutilidade narrativa de tal elemento, que parece estar ali apenas como um potencial chamariz comercial, é reflexo da própria esterilidade criativa dessa produção argentina. A narrativa espartana não vem de um rigor estético dos diretores Martin Carranza e Victoria Galardi, mas sim de uma concepção estética pobre e um roteiro que fica apenas chafurdando na banalidade. As agruras da protagonista Soledad (Inês Efron) envolvendo desilusões amorosas e hipocondrias diversas são expostas de forma mecânica e estereotipada, sem que a personagem consiga uma efetiva empatia com a plateia e nem que sua vida e comportamento sirvam como espelho de uma determinada geração, impressão essa que a apressada e esquemática conclusão acentua ainda mais.

terça-feira, setembro 23, 2014

De menor, de Caru Alves de Souza ***


Com boa parte de sua trama se desenvolvendo dentro do ambiente de uma vara judiciária dedicada a ações envolvendo menores delinqüentes, seria fácil classificar “De menor” (2013) como um mero filme dedicado a fazer alguma denúncia social. Seria também, entretanto, equivocado, pois a amplitude temática e estética da obra vai bem mais além. A diretora Caru Alves de Souza opta por uma moldura formal espartana e elegante, valendo-se de longos planos-sequência, edição de cortes discretos e um roteiro de poucos personagens e variações quase mínimas. Nessas soluções estéticas, sua obra acaba construindo uma narrativa que oscila entre a fábula moral e o pesadelo simbolista. Mais do que ser um libelo contra a punição jurídica exacerbada para adolescentes, “De menor” se configura como o retrato da alienação da sociedade e da nulidade dos ritos jurídicos perante questões e comportamentos que fogem do espectro daquilo que seria uma “boa conduta”. Por várias vezes, a trama confronta o discurso legal e dito racional da protagonista Helena (Rita Batata), uma defensora pública, com as atitudes impulsivas e desconexas de seu irmão adolescente Caio (Giovanni Gallo). Do resultado de tal contraponto existencial resta a perplexidade progressiva de Helena com a vida dupla do irmão bem como o vazio moral da retórica arrogante e burocrata de um aparelho de justiça (defensores, juízes e promotores) que cada vez perde mais o sentido diante o seu alheamento da realidade social que o cerca.

segunda-feira, setembro 22, 2014

O último amor de Mr. Morgan, de Sandra Nettelbeck **


O que incomoda em “O último amor de Mr. Morgan” (2013) não é a previsibilidade de seu roteiro ou o convencionalismo de sua narrativa. O grande problema do filme está na abordagem formal que a diretora Sandra Nettelbeck dá para o seu material. Num filme cuja trama mostra eutanásia, um idoso suicida, personagens desajustados e uma família disfuncional, acaba sendo destoante e covarde o tratamento “fofinho” oferecido pela obra em questão. A cada cinco minutos os personagens proferem alguma frase de efeito ou uma lição de vida, ou seja, não há um encadeamento orgânico na interação entre personagens e as situações do roteiro. E também de forma periódica, em cenas que eram para serem cruciais, irrompe uma terna e melosa trilha sonora, que pontua uma falsa delicadeza que se impõe de forma nada sutil e busca uma relação emocional forçada com a plateia. Pode até ser que tenham algumas moçoilas ou senhoras que chorem um pouco, mas também é evidente que o artificialismo e o tom manipulador de tais expedientes retiram muito da força dramática que o filme poderia oferecer. É claro que alguma coisa se destaca, principalmente na boa interpretação de Michael Caine e na graciosidade carismática da bela Clémence Poésy. O que predomina mesmo em “O último amor de Mr Morgan”, entretanto, é uma narrativa amorfa e a insipidez de sua estética.

sexta-feira, setembro 19, 2014

Os mercernários 3, de Patrick Hughes *1/2


Talvez o grande problema da franquia “Os mercenários” é que sempre haverá uma certa expectativa para que os filmes da série reeditem aquelas produções de aventura casca-grossa e sangrentas dos anos 80. Ocorre que os tempos são outros e um padrão asséptico e politicamente correto é necessário para que um filme não ganhe uma censura etária muito elevada e assim não afete os seus possíveis lucros. Assim, não adianta juntar vários atores emblemáticos do gênero ação e um monte de explosões e tiros se não há uma narrativa capaz de extrair alguma tensão ou interesse pelos personagens e mesmo cenas que tragam algum impacto visual (afinal, a ausência de sangue e qualquer tipo de escatologia faz com que tudo seja limpinho e nada chocante). E, pior, com uma profusão de marmanjos fazendo um monte de piadinhas metidas à besta. Dentro de tal equação, é provável que “Os mercenários 3” (2014) até ganhe uns trocados nas bilheterias, mas também é praticamente certo que seja incapaz de se fixar no imaginário daqueles que apreciam uma boa obra na linha “porrradaria”.

quinta-feira, setembro 18, 2014

O vício, de Abel Ferrara ***1/2


O diretor norte-americano Abel Ferrara concilia de forma insólita duas temáticas distintas em “O vício” (1995): filosofia e vampirismo. A trama do filme conta a história de uma doutoranda em Filosofia (Lily Taylor) que durante o processo de elaboração de sua tese de conclusão de curso acaba sendo mordida por uma vampira. Assim, suas considerações e divagações sobre ética e a maldade humana encontram ressonância no seu novo quotidiano de criatura da noite que se alimenta de sangue humano tendo como cenário uma Nova York sórdida e decadente. É claro que há um forte elemento irônico em tal roteiro, mas o que predomina na produção é uma carrega atmosfera de pessimismo e desencanto, com a fotografia em preto e branco tornando o clima de desesperança ainda maior. A forma com que a protagonista lida com o seu recém adquirido vício traz uma acentuada conotação simbólica que se expande para mais de uma interpretação, indo da metáfora sobre o uso de drogas até uma relação com a disseminação da AIDS, doença essa que sempre esteve vinculada a uma imagem de castigo divino contra comportamentos fora dos padrões de “normalidade” (e em se tratando de Ferrara, católico obsessivo, tal leitura não seria tão surpreendente). Diante de tais soluções estéticas, fica difícil enquadrar “O vício” como filme de gênero tradicional, pois o foco da sua narrativa não está exatamente no desenvolvimento de uma história, mas sim na combinação de uma verborragia filosófica e moral desconcertante e encenação bastante estilizada de violentos ataques sanguinolentos. Ainda assim, é uma produção capaz de incitar na plateia um horror obscuro e o sentimento de desconforto diante às complexidades do mundo moderno.

quarta-feira, setembro 17, 2014

A batalha de Solferino, de Justine Triet ***1/2

A proposta formal e estética de “A batalha de Solferino” (2013) é bastante ousada: a combinação de uma trama ficcional de teor intimista com tomadas reais nas ruas de Paris no dia da eleição presidencial na França em 2012. A intenção dessa conjunção é óbvia – traçar um paralelo entre os violentos conflitos verbais e físicos entre um casal divorciado e a atribulada convivência política entre esquerda socialista e direita neoliberal em um país em plena crise econômica e social. A diretora Justine Triet é bem sucedida ao traçar essa sintonia existencial entre esses dois universos que não estão tão paralelos assim, sendo que a produção em questão acaba se tornando uma contundente obra a retratar o espírito de uma época. Para isso, a cineasta se vale de uma virulenta encenação naturalista na porção ficção do filme, em que uma dramaticidade de crueza desconcertante por vezes se permite a bem vindos toques irônicos. A produção fica ainda mais impressionante quando praticamente todos os personagens principais vão para as ruas, com os atores interagindo em conturbados registros documentais, a um ponto em que ficção e realidade se unem em uma coisa só.

terça-feira, setembro 16, 2014

Era uma vez em Nova York, de James Gray ****



O que determina o padrão autoral do diretor norte-americano James Gray não é um gênero específico a qual se vincule, mas sim a forma como modela o gênero em questão de acordo com a sua linha estética. Foi assim no policial “Os donos da noite” (2007) e no drama romântico “Os amantes” (2008). No drama de época “Era uma vez em Nova York” (2013), Gray continua a exercitar a sua forma particular de fazer cinema. A estrutura clássica da narrativa pode sugerir uma produção acadêmica qualquer, mas tal impressão é enganadora. É nas nuances que o filme se sobressai – a extraordinária direção de fotografia de tons marrons que sugere uma atmosfera de pesadelo, a abordagem emocional sóbria, o delicado trabalho de direção de atores que resulta em interpretações intensas e antológicas de Joaquin Phoenix e Marion Cotillard. O resultado das escolhas artísticas de Gray é uma obra de um sensorialismo elegante e sombrio, que se insinua no imaginário como um perturbador conto moral, em que a difusa natureza das relações de dominação entre os personagens apresenta um contundente subtexto sobre a própria formação moral e existencial de uma nação.

segunda-feira, setembro 15, 2014

Se eu ficar, de R.J. Cutler *


Ok, admito que a parte musical de “Se eu ficar” (2014) pareceu muito simpática para mim. Boa parte da trilha sonora é tomada por canções de punk rock e do circuito underground/alternativo norte-americano. Dá vontade realmente de comprar a trilha sonora. Além disso, a música tem um papel importante na narrativa, tanto no desenvolvimento de situações e personagens quanto nas referências e citações de diálogos e mesmo detalhes da direção de arte. Por outro lado, vejamos dois detalhes da trama: Denny (Joshua Leonard), pai da protagonista Mia (Cloë Grace Moretz), era baterista de uma banda punk rock local e largou o grupo para poder cuidar melhor da família. Já Adam (Jamie Blackley), namorado da garota, dá a entender no final do filme que desistirá dos planos de sua banda em ascensão no circuito independente para acompanhar Mia em Nova York, onde ela estudará violoncelo clássico. A simbologia é bem clara: o rock, por melhor que seja, sempre acaba se submetendo aos ditames conservadores das vidas dos personagens. Na realidade, o detalhe música em “Se eu ficar” acaba se configurando apenas como um adereço a dar um certo e pretenso verniz de autenticidade a uma produção rotineira e água com açúcar destinada a levar às lágrimas uma plateia de garotas românticas e pouco exigentes. A patética atuação de Cloë Grace Moretz é que acaba sendo a síntese mais precisa do espírito da obra – artificiosa, formulaica e destituída de qualquer espécie de vigor. Agora se o teu negócio é ver alguma produção que tenha o rock visceral como pano de fundo e que traga estética e temática que estejam em sintonia existencial com tal trilha sonora, veja correndo a obra-prima “Scott Pilgrim contra o mundo” (2010). Tem muito mais sangue nas veias do que esse bundinha “Se eu ficar”.

sexta-feira, setembro 12, 2014

Hélio Oiticica, de César Oiticica Filho ***1/2


A grande sacada do diretor César Oiticica Filho na concepção e realização de “Hélio Oiticica” (2012), documentário sobre o notável artista plástico e também seu tio, foi ter formatado o filme em perfeita sintonia artística e existencial com a própria obra do biografado. Aliás, até o conceito de cinebiografia acaba um tanto difuso aqui. A produção de Cesar está muito mais para uma espécie de síntese poética e delirante do pensamento vivo de Hélio do que para o simples resumo dos fatos que marcaram a vida do seu protagonista. A força motriz da produção está no belo trabalho de montagem – praticamente não há cenas filmadas pelo diretor, com a narrativa se desenvolvendo a partir da combinação de trechos de depoimentos em fitas cassestes com a voz do artista (espécie de correspondências “faladas” para amigos) com trechos de filmes diversos. É como se o documentário se aproveitasse da técnica de rearranjar material antigo para obter um resultado novo e único, emulando, dessa forma, o mesmo princípio de concepção artística de Hélio, que costumava usar restos e itens de segunda mão para dar vida aos seus revolucionários parangolés e outras peças criativas. A impressão sensorial que se tem é a do espectador que é jogado diretamente no meio da mente de Hélio, vislumbrando tanto suas principais obras como também suas digressões sobre política, sexo, drogas e arte, entremeadas com intervenções (imagens, músicas, discursos) de alguns dos mais destacados integrantes da cultura brasileira de vanguarda ou destoantes dos padrões oficiais (Glauber Rocha, Haroldo de Campos, Jards Macalé, Jorge Mautner Torquato Neto, Ligia Clark, entre outros). O resultado final dessa profusão de imagens e palavras é o perturbador e inquietante retrato não só de um artista desafinando o coro dos contentes como também de parte de um país que resiste em não se render a um conservador e sufocante senso comum estético e comportamental.

quinta-feira, setembro 11, 2014

Anjos da lei 2, de Phil Lord e Christopher Miller **1/2


Quando o Federico Fellini estava numa fase de indefinições criativas sobre o seu próximo filme, ele resolveu transformar essa crise criativa em matéria-prima para a produção em questão. Nesse contexto, acabou lançando uma de suas maiores obras-primas, “Oito e meio” (1963). Guardada as devidas proporções, os diretores Phil Lord e Christopher Miller parecem ter sofrido de dilemas e soluções parecidos para “Anjos da lei 2” (2014). Em toda a sua metragem, criadores e personagens dão a impressão de ter a autoconsciência que essa continuação do filme de 2012, que já era a recriação de um seriado televisivo dos anos 80, dificilmente teria algo de diferente para mostrar na comparação com a primeira parte e que tudo soaria como um prato requentado. Dessa forma, a segunda parte acaba mostrando piadas constantes com a repetição de idéias e soluções formais e temáticas, além de um senso de humor mais escrachado (as ironias de insinuações homoeróticas entre a parceria dos protagonistas policiais passam muito longe da sutileza). Lord e Miller não se constrangem nenhum pouco em regurgitar uma grande parte dos clichês de produções policiais genéricas e nem com os furos ostensivos do roteiro – afinal, eles têm a boa desculpa de que tudo nessa continuação é uma picaretagem assumida. Nem sempre essa opção voluntária pelo grotesco funciona a contento, mas em alguns momentos “Anjos da Lei 2” encanta por um clima demente que beira o surreal e pelas atuações desencanadas de Jonah Hill e Channing Tatum. E na maior cara-de-pau, prepara o terreno para mais uma continuação...

quarta-feira, setembro 10, 2014

Basket Case 3, de Frank Henenlotter ***


Quando esteve em Porto Alegre como diretor homenageado na edição 2014 do FANTASPOA, Frank Henenlotter comentou em uma sessão que “Basket Case 3” (1992) teve uma realização tão difícil devido à pressão de produtores que fez com que o cineasta não se motivasse a fazer um novo longa por mais de uma década. Tais problemas de bastidores realmente transparecem ao se assistir à obra em questão. Nesse novo capítulo da saga do monstro Belial e seu apatetado gêmeo “humano”, a narrativa não tem aquela pegada demencial e perturbadora da produção original de 1982. Ainda assim, está longe de ser um trabalho desprezível de Henenlotter. O diretor investe numa linha mais cartunesca e escrachada – por vezes, o filme parece uma esquisita mistura entre Muppets e “Gremlins” (1984). E mesmo o gore, ainda que mais atenuado em relação às partes anteriores, rende alguns sequências antológicas de escatologia e sardônica violência gráfica. Com todas as limitações criativas que Henenlotter afirma ter sofrido, “Basket Case 3” é uma produção bem acima da média e mais ousada do que aquilo que se tem feito no horror cinematográfico nos últimos tempos, gênero esse que vem sendo tomado por uma assepsia irritante.

terça-feira, setembro 09, 2014

Bem-vindo a Nova York, de Abel Ferrara ****


Nos letreiros iniciais de “Bem-vindo a Nova York” (2014), há o aviso de que o filme se baseia livremente no caso real do estupro de uma camareira de hotel envolvendo o então diretor-presidente do FMI, Dominique Strauss-Khan, ocorrido em 2011. Além disso, há uma entrevista (falsa ou verdadeira?) com o ator Gerard Depardieu discorrendo sobre a sua predileção por interpretar pessoas as quais não aprecia. Nesse “discurso sobre o método”, o diretor Abel Ferrara já deixa claro que o que importa para ele é muito mais a simbologia desses fatos do que a recriação fidedigna deles. Dessa forma, acaba criando uma espécie de parábola moral para os tempos modernos. A intensa encenação concebida pelo cineasta é excessiva na sua profusão de devassidão e cinismo, mas esse exagero não é gratuito – o vórtice de hedonismo sem fim em que o protagonista Devereaux (Depardieu) se insere possui um caráter metafórico contundente. As longas seqüências de sexo não possuem um caráter erótico. Na visão do filme, as travessuras sexuais de seu personagem principal refletem uma carga de dominação econômica e social de Devereaux sobre aqueles que o cercam, fazendo lembrar a perturbadora conjunção sexo-dominação-morte de “Saló – Os 120 dias de Sodoma” (1975) de Pasolini. Tal submissão se manifesta no sexo pago com prostitutas, nos atos forçados com a camareira e uma jornalista e até mesmo na entrega voluntária de uma jovem e bela estudante de Direito encantada pela aura de poder de Devereaux. Mas aqui não há a solução fácil de uma expiação de pecados a redimir os personagens: mesmo quando preso, Devereaux não demonstra quaisquer traços de arrependimento, e pouco depois seu poder econômico e social sufoca as possibilidades de punição para os seus atos brutais. No fundo, ele sabe que sua conduta é legitimada por uma sociedade que o vê como vencedor.


No registro da perversa saga de Devereaux, Ferrara adota um formalismo admirável no seu rigor e elegância narrativa e que entra em contraste genial com a linha temática da trajetória de excessos do personagem. O cineasta constrói uma estranha e sombria atmosfera que varia entre luxuosos ambientes a meia-luz e a luminosidade asséptica de aeroportos e prisões que parecem refletir tanto o universo à parte de orgias ilimitadas do protagonista quanto o seu inferno pessoal ao sofrer um esboço de alguma punição. E fundamental também nas intenções artísticas da obra é a caracterização monumental de Depardieu. Sua interpretação traz nuances variadas, indo desde o naturalismo tradicional até a toques metalingüísticos com o ator conversando diretamente com o espectador. Seu trabalho corporal e expressivo é impressionante – Devereaux pode ser repugnante nos seus grunhidos animalescos, mas também encantador no seu carisma diabólico. Até a pança proeminente dele acaba funcionando como um recurso dramático marcante!

segunda-feira, setembro 08, 2014

Antes do inverno, de Phillipe Claudel ***


Mesmo obedecendo a uma ordem narrativa típica do cinema francês “de qualidade”, “Antes do inverno” (2013) consegue se sobressair por algumas interessantes nuances. A trama em um primeiro momento foca suas atenções no drama corriqueiro de um casal de meia-idade em crise sentimental. Aos poucos, o roteiro evolui para algo mais profundo e inquietante, ao mostrar o protagonista Paul (Daniel Auteuil), um bem sucedido neurocirurgião, tornar-se obcecado por uma misteriosa e instável jovem (Leila Bekthi) que se prostitui nas horas vagas. Mais do que uma simples aventura sentimental, a obsessão do personagem corresponde também a uma viagem por um mundo desconhecido que se contrapõe ao conforto asséptico de sua vida pequeno-burguesa. A atmosfera do filme é de uma tensão difusa, em que as intenções e desejos dos indivíduos nunca ficam claros. A descida de Paul a um submundo que não compreende e o confunde faz lembrar as aventuras eróticas e existenciais daquele protagonista de “De olhos bem fechados” (1999). O diretor Philippe Claudel pode não ter o mesmo preciosismo formal de Kubrick, mas consegue algumas soluções estéticas e temáticas eficientes em “Antes do inverno”, principalmente no expressivo contraponto que faz entre um estilo “clean” de filmar e editar com o teor obscuro de sua trama. A perturbadora conclusão do filme é uma contundente síntese dessa abordagem artística de Claudel.

sexta-feira, setembro 05, 2014

Magia ao luar, de Woody Allen **1/2


É recorrente em críticas e comentários realizados sobre alguns filmes de Woody Allen a percepção de que o diretor estaria se repetindo e instalado numa espécie de zona de conforto artística. Essa aparente preguiça criativa, entretanto, pode ser em ilusória. Allen é um dos poucos cineastas atividades que traz em cada um dos seus filmes uma particular visão de mundo. As tramas escritas por ele representam uma espécie de compêndio de suas neuroses e obsessões temáticas. Assim, nada mais natural que assuntos e situações volta e meia tornem a aparecer em suas produções. Mesmo o seu habitual padrão formal representa uma espécie de depuração de um estilo de filmar. Dentro dessa linha de pensamento, por várias vezes alguns de seus filmes foram criticados na época de lançamento e com o passar do tempo foram reavaliados de forma positiva tanto por receberem um olhar mais cuidadoso por parte de crítica e público quanto pelo fato da maneira como se contextualizaram dentro de sua filmografia. Dito tudo isso, dá para dizer com tranquilidade que “Magia ao luar” (2014) é um dos piores trabalhos de Woody Allen. E não pela geralmente alegada sensação de deja vu, mas simplesmente pelo fato de uma execução por vezes equivocada e insossa. Estão ausentes do roteiro aqueles típicos tons de sutileza do cineasta – todo o subtexto da trama é dito expressamente nos diálogos. Por falar neles, as falas não tem a graça e sagacidade que o espectador tem o costume de ver numa obra de Allen: a excessiva verborragia é cheia de obviedades e até induz ao sono em alguns momentos. E isso se agrava pelas interpretações caricatas e superficiais em demasia de Colin Firth e Emma Stone, a dupla de protagonistas. Esse conjunto de deslizes resulta numa narrativa cansada e que em determinadas sequências faz com que o filme pareça uma comédia romântica qualquer e não uma obra de Woody Allen. O que faz com que “Magia ao luar” não seja um total desperdício artístico é que em algumas tomadas fica visível uma elegância no filmar, principalmente nas cenas iniciais que se passam em Berlin, em que belos planos-seqüência e a estilizada direção de arte oferecem um refinado encanto visual. Mas em se tratando do diretor em questão, isso acaba sendo muito pouco...

quinta-feira, setembro 04, 2014

Lucy, de Luc Besson **


Não dá para dizer que o diretor francês Luc Besson não buscou algum traço de ousadia em “Lucy” (2014). A partir de uma premissa simples, a da garota que ganha superpoderes a partir da ingestão involuntária de drogas desconhecidas, ele poderia ter enveredado para uma rotineira produção de aventura de super-heróis. Ao invés disso, concebeu uma estranha obra envolvendo ação frenética e divagações filosóficas/existenciais. E vindo do mesmo cineasta responsável pelo clássico policial “O profissional” (1994), é claro que a expectativa pode ser grande. Apesar das ideias interessantes de Besson, todavia, a execução formal é bastante truncada. O entrelaçamento entre seqüências de pancadaria e tiroteio com momentos contemplativos não apresenta fluência narrativa, fazendo com que o filme por vezes fique enfadonho. Para piorar, a edição é cheia de “espertezas”, com um excesso de cortes que faz “Lucy” ter um ar videoclipeiro datado. Mesmo as cenas de ação têm uma concepção pouco imaginativa e de pouco impacto, com Besson regurgitando clichês estéticos de forma preguiçosa. É claro que algumas trucagens apresentam certa criatividade e encanto visual. No seu resultado final, entretanto, “Lucy” faz pensar numa esdrúxula e indigesta equação: a do publicitário fã de “Matrix” (1999) e Tarantino que resolve fazer a sua versão de “2001: Uma odisséia no espaço” (1968). E pode crer que isso não é um elogio...

quarta-feira, setembro 03, 2014

Basket Case 2, de Frank Henenlotter ***



A conjunção cinema e horror típica do diretor norte-americano Frank Henenlotter permanece presente em “Basket Case 2” (1990). Nessa continuação da obra original de 1982, as condições de produção são bem mais profissionais, o que fica evidente nos efeitos especiais e maquiagem, fundamentais na esquisita caracterização de monstros e freaks que surgem aos borbotões ao longo da narrativa. A melhora no orçamento, entretanto, rouba bastante da atmosfera demente do primeiro filme, não havendo tanto daqueles climas perturbadores em que o riso e o susto se entrelaçavam de forma natural. Por vezes, o filme chega a ficar agridoce na ênfase em histórias de amor e no tom de denúncia sobre preconceitos. Se não fossem algumas passagens bem sanguinolentas e o visual escatológico de algumas das criaturas, daria até para encarar como uma divertida Sessão da Tarde. Mesmo assim, esse tom mais ameno, provavelmente imposto por produtores, não tira o forte traço autoral de Henenlotter. O terço final de “Basket Case 2”, em especial, revela o corrosivo senso de humor doentio do cineasta, mostrando que ele será um eterno talento outsider.