quarta-feira, agosto 31, 2016

Café Society, de Woody Allen ***1/2

O cinema de Woody Allen representa uma constante reciclagem, não só de referências alheias como também da própria filmografia do veterano cineasta nova-iorquino. “Café Society” (2016), numa primeira visão sobre a sua trama, logo de cara faz pensar em “Tiros na Broadway” (1994), em que o ambiente boêmio e festivo de artistas se relacionava com naturalidade com o universo do banditismo de gangsteres. Mas a obra mais recente de Allen vai muito mais além no seu revisionismo, mostrando que tal aspecto é inerente ao próprio traço autoral do diretor, ampliando o seu espectro artístico e existencial. O ótimo roteiro conjuga habilmente elementos de gêneros diversos do cinema clássico norte-americano, aliando diálogos cômicos espirituosos na linha irmãos Marx, drama elegante e melancólico na linha “Casablanca”, belos números musicais, tudo isso embalado por uma encenação primorosa, ágil edição, elenco inspirado e a direção de fotografia monumental de Vittorio Storaro. E mesmo as sequências que se voltam para o cinema policial surpreendem pela notável síntese de violência e humor negro, lembrando alguns dos melhores trabalhos nessa linha de Martin Scorsese (seria uma homenagem ao colega?). Nesse elemento de obra policial, há um profundo subtexto sócio-político – a de que a prosperidade econômica nos Estados Unidos é fortemente ligada a iniciativas empreendedoras de criminosos e contraventores. E vale ainda mencionar que dos filmes mais recentes de Allen, talvez “Café Society” seja aquele em que a sua relação de amor com a cidade de Nova Iorque fica mais em evidência – a trajetória do protagonista nova-iorquino Bobby Dorfman (Jesse Eisenberg) que volta para a sua cidade depois de se desiludir em Los Angeles e acaba se tornando bem sucedido profissionalmente em meio a festas e tiros parece guardar ressonância com a do próprio Allen que nos últimos tempos andava ambientando suas tramas em outras cidades, inclusive europeias, e agora volta a filmar em sua terra natal, retratando-a com notável paixão.

terça-feira, agosto 30, 2016

Pets - A vida secreta dos bichos, de Yarrow Cheney e Chris Renaud ***1/2

As duas melhores animações norte-americanas de 2016 têm pelo menos algo em comum: suas tramas giram em torno de animais, com a personalidade de suas principais figuras se relacionando com as características dos bichos que a inspiraram. Mas se “Zootopia” é uma fantasia com animais antropomorfizados evocando também personalidades humanas e temática pertinente e mais complexa, em “Pets – A vida secreta dos bichos” as criaturas são e agem como animais de estimação (é claro que com a licença poética de que conversam entre eles) e a história apresenta uma premissa mais simples, a de que cães, gatos e outros seres afins fariam em casa enquanto seus donos vão trabalhar, acrescentando ainda na trama uma dose de aventura com seus protagonistas percorrendo um grande e agitado centro urbano (no caso, Nova Iorque). A partir desses elementos básicos, os diretores Yarrow Cheney e Chris Renaud conseguem criar uma obra divertida e emocionante, e que se permite ainda algumas ousadias. Para começar, a dimensão psicológica dos personagens é convincente e variada, combinando emoções e índoles diversas (fidelidade, ciúme, ressentimento, melancolia) e com o aspecto fantástico delineado com criatividade (o cachorro de raça que ouve heavy metal quando o dono está fora de casa, o passarinho que gosta de jogar vídeo game, o coelho alucinado que lidera uma rebelião de rejeitados), criando uma forte empatia com o espectador (principalmente com aqueles que tem animais de estimação, obviamente). As nuances emocionais do roteiro interagem de maneira natural e coesa com os momentos de ação frenética. Aliás, nesse último quesito, também é de se destacar o belo trabalho gráfico de “Pets”, tanto pela beleza do traço quanto no detalhismo da ambientação da história (é de se reparar, por exemplo, o visual assustador dos esgotos da cidade). E por falar em ambientação, é interessante como Nova Iorque se torna uma personagem com vida própria no filme, pois se num primeiro momento o registro visual da metrópole dá a impressão de um grande cartão-postal, com o desenvolvimento da trama a cidade vai ganhando um caráter mais obscuro e misterioso na caracterização e tipos e situações, fazendo lembrar “Depois de horas” (1985), a clássica comédia de humor negro de Martin Scorsese que mostra o “wild side” da Grande Maçã.

segunda-feira, agosto 29, 2016

Na ventania, de Martti Helde ***

O grande atrativo da produção estoniana “Na ventania” (2014) este no recurso estético da combinação de uma encenação “estática” por parte de atores e uma direção de fotografia que se desenvolve em longos planos-sequência, dando a impressão ao espectador de estar assistindo a uma narrativa formada por um encadeamento de “quadros vivos” com sutis variações de movimento. Tal formalismo revela um grau forte de ousadia e por vezes seduz pela beleza plástica de algumas tomadas. É de se considerar que esse estilo adotado pelo cineasta Martti Helde não se resume somente ao exercício de experimentação de linguagem, guardando uma sintonia existencial com a própria temática da obra. A trama conta a história real de uma mulher que vê sua família se desintegrar ao serem mandados pela União Soviética para campos de trabalhos forçados na Sibéria e lá ela passa por uma série de privações. A sacada narrativa é de que o imobilismo cênico dos personagens estaria ligado ao sentimento de impotência do indivíduo diante da fúria opressiva do Estado. Ocorre, entretanto, que a aposta contínua em tal fórmula artística por vezes também é capaz de causar um certo enfado pela repetição, além do fato do roteiro apostar num convencionalismo melodramático excessivo em algumas passagens.

sexta-feira, agosto 26, 2016

Dias de trovão, de Tony Scott ***1/2

Durante boa parte de sua carreira, o diretor britânico Tony Scott foi acusado de vídeo-clipeiro, cineasta comercial ou de mero profissional tarefeiro de Hollywood. O passar dos anos, entretanto, permitiu uma revisão mais sensata por parte de público e crítica e se pode constatar que ele foi um dos grandes profissionais do gênero cinema de ação das últimas décadas. Claro que não era sempre que ele acertava a mão, mas quando tudo dava certo saíam algumas obras antológicas: “Fome de viver” (1983), “O último boy scout” (1991), “Amor à queima-roupa” (1993), “Chamas da vingança” (2004), “Deja vu” (2006). Na linha de filmes memoráveis também dá para colocar “Dias de trovão” (1990). A partir de um roteiro simples envolvendo pilotos de stock car e de alguns clichês narrativos, Scott se esbalda em algumas ótimas cenas de corridas, além de construir uma convincente atmosfera casca-grossa a exaltar a virilidade e coragem dos corredores. É interessante observar que alguns elementos formais contextualizam bem a época em que a produção foi realizada – nas sequências de provas de stock car não se recorrem a truques digitais, a fotografia estilizada remete ao realismo “neon” típico dos anos 80. Tais truques estéticos podem parecer datados, mas também é inegável que ainda guardam uma parte considerável de seu charme e impacto sensorial.

quinta-feira, agosto 25, 2016

Julien Donkey-Boy, de Harmony Korine ***1/2

Como já foi dito num post anterior, pode-se dizer que o diretor norte-americano Harmony Korine é uma espécie de cronista de uma juventude perdida. Mas não se trata apenas de uma garotada chafurdando em questionamentos existenciais ou à procura de um lugar na sociedade. As jovens criaturas que vagam nas histórias de Korine são reflexos distorcidos (ou reais?) dos modelos comportamentais mais caros da sociedade ocidental, localizados entre uma síntese de hedonismo desesperado e embrutecimento cultural. Em “Julien Donkey-Boy” (1999), o protagonista do título (Ewen Bremner) é um pobre diabo esquizofrênico envolto em um cotidiano perturbador e algo delirante, em que incesto e loucura estão presentes quase como se fossem algo banal. Ainda que não atinja o mesmo pico criativo de “Gummo” (1997), obra de temática parecida, Korine constrói uma narrativa fragmentada e inquietante, em que mais importante do que mostrar um roteiro linear é o fato de se criar uma atmosfera que se alterna de maneira contundente entre o realismo áspero e o surrealismo sinistro.

quarta-feira, agosto 24, 2016

Francofonia, de Alexander Sokurov ****

A linha narrativa de “Francofonia – Louvre sob ocupação” (2015) parece obedecer a uma lógica estética e existencial bastante particular – é como se o espectador fosse jogado dentro de um fluxo de consciência do diretor russo Alexander Sokurov. Tal descrição pode sugerir que o filme em questão esteja ligado a uma mera egotrip artística, mas na verdade a obra de Sokurov vai muito mais além disso. Trata-se de uma reflexão fílmica sobre a guerra, a arte e os valores ocidentais em que o cineasta se vale de recursos e referências diversos para engedrar um estilo único, algo que ele já tinha delineado em “A arca russa” (2002) e que nesse trabalho mais recente se consolida de forma ainda mais radical. Nessa peculiar e desconcertante concepção formal, recriação dramática, linguagem documental, ensaio filosófico e digressões pessoais se combinam com uma naturalidade impressionante, causando um efeito por vezes hipnotizante na sua síntese narrativa que casa registro histórico e encenação entre o realismo e o sutil delírio onírico. Sokurov se vale de tais recursos não apenas como um exercício de virtuosismo e experimentação da linguagem, mas também para aprofundar a dimensão humanista que oferece ao retratar o período em que o museu do Louvre ficou sob o domínio nazista durante a ocupação alemã na França durante a 2ª Guerra Mundial. O diretor rompe com os preceitos típicos do gênero do cinema de época: mais importante que a pretensa fidelidade histórica relativa à recriação física do ambiente e dos indivíduos, é primordial o resgate de uma atmosfera cultural e social da época e que se estende para a ligação intrínseca entre caracterização psicológica de determinadas pessoas e o contexto político que as cerca. Se num primeiro momento “Francofonia” se apresenta como um insólito exercício de revisionismo histórico, com o seu desenrolar as soluções criativas de Sokurov configuram uma obra que também procura e sugere respostas que para o nosso conturbado presente.

terça-feira, agosto 23, 2016

Um belo verão, de Catherine Corsini **1/2

Obras recentes como “Azul é a cor mais quente” (2013), “Boi Neon” (2015) e “Mãe só há uma” (2016) sugerem uma abordagem estética-existencial renovada dentro do panorama cinematográfico para a questão da sexualidade, em um sentido em que rótulos e preconceitos a determinadas posturas comportamentais que fogem da ortodoxia se tornam cada vez mais obtusos perante uma dinâmica intensa e libertária de parte considerável da sociedade. Dentro de um contexto de produções questionadoras e inquietantes como essa, o estilo convencional e passadista de “Um belo verão” (2015) acaba soando um tanto defasado. O filme da diretora francesa Catherine Corsini até apresenta alguns pontos sedutores: a fotografia é bonita nos registros campestres e mesmo de uma Paris de ambiência nostálgica, as cenas de sexo entre as protagonistas Carole (Cécile de France) e Delphine (Izïa Higelin) têm uma intensidade memorável, algumas sequências apresentam uma composição cênica eficaz em termos de desenvoltura. Ocorre que tais aspectos positivos esbarram numa narrativa mofada e que se prende a um roteiro recheado de dilemas previsíveis e melodramáticos em excesso, beirando o novelesco. A maioria das soluções formais e temáticas encontradas por Corsini consiste em truques baratos e caretas, vide o uso abusivo de uma trilha sonora sentimental e solene e de uma direção de arte artificiosa na sua recriação da atmosfera setentista. Ao invés de se contentar com tal visão asséptica, seria mais interessante que a obra de Corsini se deixasse contaminar pelo espírito desafiador do período focalizado e entregasse um resultado final mais espontâneo e contundente.

segunda-feira, agosto 22, 2016

São Paulo em Hi-Fi, de Lufe Steffen **

O grande problema do documentário “São Paulo em Hi-Fi” (2013) não é muito difícil de resumir: a sua estrutura narrativa convencional e excessivamente mecânica não se encontra em sintonia com a sua temática complexa e irreverente. O diretor Lufe Stefren tinha uma matéria prima bastante rica para construir uma obra memorável ao mostrar a trajetória das casas noturnas gays da noite da capital paulista nas décadas de 60, 70 e 80 – depoimentos reveladores e emocionados de entrevistados que vivenciaram o período em questão, imagens de arquivo em profusão, temática bastante interessante. Ocorre que o espírito libertário do assunto que aborda não contaminou sua concepção formal excessivamente burocrática. A narrativa não consegue ter uma desenvoltura efetivamente capaz de prender a atenção do espectador. O padrão de encadeamento das cenas é cumprido com uma previsibilidade entediante: é sempre depoimento seguido de filmagens de apresentações na época, por vezes entremeado com algumas fotografias. Não há aquela narrativa dinâmica e ambientação apaixonada de “Geraldinos” (2015) ou aquele lirismo libertário à flor-da-pele de “Yorimatã” (2014). Faltou uma montagem mais criativa que combinasse todos esses elementos de uma maneira ágil e ousada, em que a estética complementasse a atmosfera mista de alegria, sordidez e nostalgia que emana da história contada. É claro que para efeitos históricos “São Paulo em Hi-Fi” é até uma experiência válida por retratar fatos um tanto obscuros para a grande maioria das pessoas. Como experiência cinematográfica, entretanto, é frustrante por suas escolhas artísticas bem comportadas.

sexta-feira, agosto 19, 2016

Mister Lonely, de Harmony Korine ***

O diretor Harmony Korine é uma espécie de cronista da podridão da sociedade norte-americana. Seus filmes representam crônicas distorcida do american way of life. Dentro de uma estética que privilegia o estranho e o mau gosto, mas que esconde uma abordagem formal sofisticada e um subtexto entre o poético e o libertário, destacam-se em sua filmografia pelo menos duas obras extraordinárias: “Gummo” (1997) e “Spring Breakers” (2012). “Mister Lonely” (2007) não atinge o mesmo grau de impacto artístico das produções mencionadas, mas ainda assim é capaz de impressionar em algumas sequências pela esquisitice de sua trama e força das imagens, mostrando que Korine tem uma forte coerência autoral na forma com que expõe suas obsessões existenciais e estéticas. Numa sociedade como a norte-americana/ocidental que tem uma certa obsessão mórbida com celebridades mortas e/ou trágicas, faz todo sentido Korine mostrar uma história composta basicamente por indivíduos que vivem de imitar tais celebridades. A simbologia presente no roteiro é intrincada, e dentro de uma narrativa fragmentada, parecem compor um painel onírico entre o desconcertante e o desengonçado. Ainda que irregular como resultado final, “Mister Lonely” é a prova de que Korine mesmo em seus momentos menos inspirados é um diretor sempre capaz de surpreender, encantar e/ou perturbar sua plateia.

quinta-feira, agosto 18, 2016

Esquadrão Suicida, de David Ayer *

Lá pela primeira metade da década de 90, foi publicada no Brasil a revista da Liga da Justiça que em seu mix apresentava a fase mais marcante do Esquadrão Suicida, grupo de supervilões que trabalhavam para o governo norte-americano em troca de abrandamento de suas penas. Nesse período, as histórias eram escritas por John Ostrander e desenhadas por Luke McDowell, mostrando uma ótima síntese entre ação empolgante e convincente caracterização psicológica de personagens e situações. As principais figuras do grupo tinham uma dimensão humana bem desenvolvida em suas complexidades, as tramas fugiam de obviedades e se podia perceber uma atmosfera constante de sordidez e amargura na narrativa gráfica. No filme “Esquadrão Suicida” (2016) se pode perceber referências a essa fase áurea do grupo nas HQs, trazendo até em determinado momento uma homenagem explícita para Ostrander, que tem o seu nome impresso nas telas intitulando um edifício. Isso, entretanto, não consegue fazer com que a obra dirigida por David Ayer seja uma produção digna de nota. Por vezes, até dá para sentir que dentro de algumas concepções havia alguma ideia interessante, principalmente no que diz respeito à ambiguidade do mote principal do roteiro (vilões que devem agir como heróis) e no desenvolvimento de alguns personagens. Tudo isso acaba enterrado em nome de hipócritas regras de mercado que servem para amenizar o teor adulto e violento do conceito original e deixá-lo mais palatável em termos comerciais para o grande público composto de geeks, nerds e simples mortais. Não há uma efetiva tensão que envolva o espectador, a narrativa é picotada, os personagens são rasos e desinteressantes, o roteiro é superficial e não desenvolve à contento os personagens e situações, as sequências de ação são burocráticas. Num contexto geral, é como se Ayer e seus assessores tivessem incorporado tudo aquilo que deu certo em outros filmes de super-heróis (a trilha sonora rock and roll/pop de “Guardiões da Galáxia”, a violência e escrotidão de “Deadpool”, as piadinhas bestas de “Homem de Ferro”, a ambientação sombria de “Batman – O cavaleiro das trevas”) e misturasse tudo sem muitos critérios estéticos e temáticos como se isso por si só fosse garantia de sucesso. É claro que apesar de todos esses equívocos “Esquadrão Suicida” fará muito dinheiro, afinal, conta com uma invejável aparelhagem marqueteira. E pelo menos saia algo de bom disso – talvez alguma editora brasileira se disponha a lançar um encadernado com a já mencionada fase de ouro do Esquadrão Suicida da dobradinha Ostrander/McDowell. Mas no geral, o que prevalece é a decepcionante sensação de picaretagem gananciosa de outras adaptações cinematográficas recentes do universo da DC Comics (“Superman – O Homem de aço” e “Batman versus Superman).

quarta-feira, agosto 17, 2016

Nahid - Amor e liberdade, de Ida Panahandeh ***

O formalismo adotado pela diretora Ida Panahandeh em “Nahid – Amor e liberdade” (2014) é marcado pela sobriedade e simplicidade, não havendo as inquietações estéticas de outros nomes do cinema iraniano Abbas Kiarostami e Jafar Panahi. Por outro lado, essa abordagem da cineasta acaba se revelando bastante adequada para a história narrada. Focando-se em um drama familiar que se estende por questões sociais e religiosas inerentes ao Irã da atualidade, o filme apresenta uma encenação precisa que dispensa truques melodramáticos, fazendo com que a caraterização de situações e personagens tragam crueza e complexidade necessárias para que a narrativa se torne envolvente para o espectador. As questões intimistas e mesmo as típicas do cotidiano ganham uma dimensão humana contundente, não caindo no banal. A forma com que Pananhandeh conduz a narrativa dá à sua obra um alcance universal ao evidenciar os absurdos e hipocrisias de uma sociedade patriarcal moralista e preconceituosa que não é “privilégio” somente de países influenciados pela religião muçulmana.

terça-feira, agosto 16, 2016

Amor & amizade, de Whit Stillman **

Fazer um filme de época baseado em original literário de Jane Austen não implica necessariamente numa obra mofada e careta. A versão de “Orgulho e Preconceito” (2005) dirigida por Joe Wright, por exemplo, é um exemplar expressivo de como traduzir um clássico literário para uma linguagem cinematográfica moderna e que também preserva a essência do livro original. E “Amor e amizade” é o caso típico em que essa transposição se torna frustrante. A direção de Whit Stillman é desprovida de vida e criatividade – tudo soa tão mecânico e artificial que o texto de Austen parece desprovido de sua habitual argúcia e ironia. A própria atuação de Kate Beckinsale no papel da protagonista Lady Susan Wernon é reflexo das equivocadas concepções artísticas da produção, com a atriz limitando a sua interpretação a um eterno ar blasé que não traz qualquer alteração de nuance dramática (demais membros do elenco se contentam em ficar com uma expressão abobalhada durante toda a projeção). “Amor & amizade” não chega a ser um desastre total e frustrante devido à qualidade da história e dos diálogos originários do livro de Austen. Mesmo assim, dificilmente o filme de Stillman consegue se prende ao imaginário do espectador.

segunda-feira, agosto 15, 2016

De longe te observo, de Lorenzo Vigas Castes ***

O fato de ser uma produção venezuelana contemporânea não passa em branco na concepção artística e temática de “De longe te observo” (2015) – sua rigorosa e elegante estrutura narrativa é uma moldura adequada para uma visão amarga sobre o conflito de classes dentro de uma sociedade conturbada. A relação que se estabelece entre o protético homossexual de uma burguesia endinheirada Armando (Alfredo Castro) e o jovem pobre e marginal Elder (Luis Silva) é repleta de nuances e tem uma carga simbólica de uma interação que envolve exploração, intolerância, revolta e indiferença. A abordagem emocional e estética do diretor Lorenzo Vigas Castes não se rende a facilidades melodramáticas, captando com expressiva fidelidade a complexidade da relação entre os dois personagens principais. Além disso, sua encenação é elaborada com precisão tanto na valorização de silêncios e gestuais quanto no vigor contundente de algumas cenas (as sequências da festa de 15 anos e de sexo entre os dois protagonistas são exemplares dessa característica). “De longe te observo” só não atinge uma transcendência artística maior pela insistência, por vezes, numa ultrapassada atmosfera dramática de culpa na forma com que retrata a questão da homossexualidade de Armando, em que esse aspecto sempre é relacionado a traumas não bem explicados em sua biografia pessoal. Nesse sentido, por exemplo, falta um senso de autoironia que tornavam obras-primas como “Morte em Veneza”(1971)  e “Festa em família” (1998), obras que também traziam tal matéria em suas tramas, filmes melhores resolvidos em termos existenciais.

sexta-feira, agosto 12, 2016

O jogador, de Robert Altman ****

O diretor norte-americano Robert Altman foi responsável pela realização de um número expressivo de títulos importantes na cinematografia de seu país (“Mash”, “Quando os homens são homens”, “Nashville”, “Cerimônia de casamento”, “Short Cuts”, entre outros). Apesar disso, seu relacionamento com produtores e estúdios sempre foi conturbado, principalmente pelo fato de seu gênio artístico nunca ter se adequado às exigências comerciais da indústria de cinema de Hollywood. “O jogador” (1992) tem uma forte carga amorosa em relação ao cinema como meio de expressão cultural, com direito a citações e referências a clássicos (a sensacional abertura em plano-sequência, por exemplo, é homenagem direta a recurso semelhante utilizado na obra-prima “A marca da maldade”). Mas o que realmente prevalece é uma atmosfera cáustica de farsa a satirizar a vulgaridade e o arrivismo de Hollywood. Nessa diatribe particular de Altman, seu habitual e criativo senso narrativo está em ponto de bala, com o cineasta construindo um painel formal e temático desconcertante, em que metalinguagem irônica, paródia de cinema noir e sutil comicidade se entrelaçam com uma naturalidade impressionante. Como cereja do bolo, no papel do protagonista Griffin Mill, um produtor escroque e almofadinha, Tim Robbins tem a interpretação de sua vida, combinando histeria e maquiavelismo nas medidas exatas.

quinta-feira, agosto 11, 2016

The Beach Boys - Uma história de sucesso, de Bill Pohland ***1/2

O título “The Beach Boys – Uma história de sucesso” (2014) é enganador em relação àquilo que representa o filme em questão. Não se trata de uma obra que focaliza toda a trajetória dos Beach Boys – a trama se concentra basicamente em dois momentos fundamentais da carreira do principal compositor da banda, Brian Wilson. Na segunda metade dos anos 60, quando Wilson (Paul Dano) se dedicou a compor, arranjar e gravar os mais complexos e influentes discos da banda (os álbuns “Pet Sounds” e “Smile” e o single “Good Vibration”), e nesse processo acabou entrando num progressivo processo de desintegração mental; e em meados dos anos 80 quando ele (John Cusack) se encontrava sob os cuidados e vigilância do tirânico psiquiatra Eugene Landy (Paul Giamatti). A narrativa é convencional, por vezes beirando até o melodrama tradicional, mas o fato do roteiro se concentrar em épocas bastante específicas permite uma caracterização de personagens e situações muito mais rica em termos de profundidade psicológica e densidade dramática. A parte musical é bastante valorizada, sendo que os detalhes de gravações dos mencionados discos dos Beach Boys são repletos de nuances musicais e detalhes informativos que são um prato cheio para fãs das antigas e neófitos.

quarta-feira, agosto 10, 2016

Fome, de Cristiano Burlan ***1/2

Pode parecer em um primeiro momento que entre a rusticidade formal do documentário “Mataram meu irmão” (2013) e a narrativa mais estilizada do ficcional “Fome” (2014) haja uma grande distância. Em ambas as obras do diretor Cristiano Burlan, entretanto, prevalece o mesmo sentido existencial e estético, a da sensação de incômodo e contestação tanto em relação aos ditames bem comportados do cinema comercial convencional quanto com as hipócritas regras sociais e culturais do status quo político. Nessa obra mais recente, uma maior sofisticação em termos de fotografia e edição não representa apenas um refinamento visual – na verdade, amplia ainda mais o significado das concepções artísticas e visão de mundo particulares de Burlan. É de se reparar, por exemplo, em uma das primeiras sequências de “Fome” quando o protagonista mendigo (Jean-Claude Bernardet) se espreguiça ao sol da manhã tendo ao fundo uma majestosa igreja católica. É como se tal cena sugerisse um certo tom solene e religioso, quando na verdade o que fica evidente é a indiferença da religião instituída perante os reais desvalidos. O discurso da obra é de desconstrução dos valores pequeno-burgueses e místicos da sociedade contemporânea ao mostrar a trajetória do personagem principal que vagueia por uma metrópole opressiva e nada acolhedora. Por mais que boa parte dos moradores de rua mostrem alguma crença divina na sua recuperação ou redenção espiritual e moral, o cruel desnudar dos mecanismos de preconceito e seleção da sociedade mostra que não há possibilidade de qualquer mudança ou transformação. Nesse discreto épico entre o intimista e o universal carregado de pessimismo e desilusão, Burlan sempre deixa como marca indelével um humanismo contundente em que não há espaço para maniqueísmos ou simplificações banais, compondo um mosaico de referências diversas (citações culturais, toques oníricos, elementos documentais, encenação naturalista e espontânea) que ganham coerência e unicidade impressionantes com a sensibilidade e senso narrativo acurados do cineasta.

terça-feira, agosto 09, 2016

O caminho para Berlin, de Sergei Popov **

A trama do drama de guerra “O caminho para Berlin” (2015) faz lembrar bastante o argumento do clássico de mesmo gênero “A glória de um covarde” (1951). O foco principal dos roteiros de ambas as obras está na trajetória de redenção de militares que diante de uma batalha se acovardam e depois em outras oportunidades de combate acabam se redimindo perante os companheiros e sua própria consciência. A perspectiva existencial dos dois filmes é semelhante, buscando mais o viés humanista de questionamento dos ideais de coragem e patriotismo do que exaltar o heroísmo e o nacionalismo. Em seus resultados finais, entretanto, as produções se mostram bem destoantes. Enquanto a obra-prima de John Huston era uma narrativa compacta, de caracterização psicológica complexa e com memoráveis sequências de ação, o filme mais recente do russo Sergei Popov traz uma concepção melodramática e convencional em excesso, em que mesmo as cenas de violência trazem uma execução sem maiores ousadias e brilho.

segunda-feira, agosto 08, 2016

Mostre a língua, moça, de Axelle Ropert ***

Em um primeiro plano narrativo, “Mostre a língua, moça” (2012) aparenta ser um melodrama convencional, com uma trama centrada em um triângulo amoroso envolvendo dois irmãos médicos e uma bela mãe solteira com uma filha diabética. O que faz a real diferença nessa produção francesa dirigida por Axelle Ropert para que ela se torne uma experiência cinematográfica memorável é um formalismo atípico, num misto de rigor emocional na caracterização psicológica de situações e personagens e encenação que evoca uma estranha solenidade, quase como se fosse um filme de época. Alguns momentos do roteiro e uma certa fluência da narrativa sugerem uma atmosfera de ironia, ainda que um tanto amarga. Na tradição de uma linhagem do cinema francês, não é um filme que invista num arrebatamento sensorial, mas sim numa contida e coerente construção de suas figuras em cena, numa ambientação que sugere algo como um velho conto de costumes e em uma particular e cerebral estética.

sexta-feira, agosto 05, 2016

A lenda de Tarzan, de David Yates ***

A essa altura do campeonato, talvez mais um filme trazendo a figura de Tarzan como protagonista poderia parecer um tanto anacrônico. Diante de algumas circunstâncias culturais e sociais contemporâneas, entretanto, esse “A lenda de Tarzan” (2016) acaba ganhando inesperadas ressonâncias. O fato do diretor David Yates ser o responsável por esse novo capítulo da saga do antigo herói pulp é bem sintomático, pois o cineasta foi o realizador de alguns episódios da franquia “Harry Potter” e nessa nova produção com Tarzan dá para perceber que houve uma espécie de readequação do personagem dentro dos preceitos formais e narrativos típicos das produções de aventura fantástica desse século, tanto no uso expansivo de efeitos digitais quanto na profusão de sequências alucinadas de ação. É claro que pelo uso de tais recursos por vezes o filme soe um pouco derivativo (em alguns momentos, há a impressão de que Tarzan está fazendo parte do cinematográfico universo Marvel), mas também é fato que Yates apresenta uma direção segura no sentido de conseguir manter uma tensão dramática efetiva, um cuidado visual expressivo e uma atmosfera de violência e exotismo que garante interesse para o espectador. Também é curioso como o subtexto político do roteiro, mostrando as desumanas práticas colonialistas de países europeus no continente africano em séculos passados, ganha uma sintonia contundente com o presente conturbado cenário sócio-político mundial envolvendo terrorismo, racismo e xenofobia.

quinta-feira, agosto 04, 2016

Tudo sobre Vincent, de Thomas Salvador ***

A máxima do Homem-Aranha/Peter Parker, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, na verdade é uma espécie de preceito existencial para a grande maioria dos super-heróis ocidentais e que traz dentro de si a função desse tipo de figura – a de contribuir para manter um status quo sócio-político-econômico. Assim, quadrinhos e filmes no gênero vão trazer um modelo padrão de trama e narrativa (origem em que o protagonista adquire seus poderes e habilidades, tomada de consciência de seu papel na sociedade e ação efetiva contra criminosos e outros tipos de transgressores). Dentro dessa lógica, a produção francesa “Tudo sobre Vincent” (2014) representa uma saudável e desconcertante exceção. No filme do diretor Thomas Salvador, o protagonista Vincent (também interpretado por Salvador) é um pacato zé-ninguém que vive de pequenos bicos no interior da França. Ao descobrir que adquire poderes de superforça quando está molhado, simplesmente decide usar tais dons para facilitar alguns trabalhos braçais e se divertir nadando sozinho em lagos e rios, tendo o cuidado para que outras pessoas não saibam desse fato insólito (com exceção da namorada). Não há desejos megalomaníacos de ser adorado ou dominar o mundo, não existem supervilões ou grandes dilemas dramáticos que o atormentem. Vincent quer apenas ter uma vida tranquila e sem preocupações. A abordagem formal de “Tudo sobre Vincent” se mostra em sintonia com o espírito franciscano do protagonista, prevalecendo uma concepção estética e nuances emocionais sóbrias, não descambando para excessos épicos. Mesmo no terço final, quando Vincent acaba involuntariamente expondo seus poderes e passa a ser perseguido pelas autoridades, com direito inclusive a discretas cenas de ação, esse estilo contido de narrativa é preservado, o que reforça ainda mais o caráter humanista e desafiante da obra de Salvador.

quarta-feira, agosto 03, 2016

O bom gigante amigo, de Steven Spielberg ***1/2

Em um primeiro momento, pode-se pensar que “O bom gigante amigo” (2016) represente uma espécie de volta para uma zona de conforto criativa por parte de Steven Spielberg. Afinal, está dentro daquele gênero no qual ele teve um reconhecimento artístico e comercial mais amplo, o da aventura fantástica com toques sentimentais. Ainda assim, essa sua obra mais recente mostra que o diretor é ainda capaz de surpreender sua plateia. O grafismo expressivo e requintado dos efeitos digitais convivem de maneira harmoniosa com um senso narrativo preciso, típico das melhores produções dirigidas por Spielberg. Por vezes, o uso de tais trucagens é tão intenso que se tem a impressão de se assistir a uma animação digital, mas o que vale mesmo é aquilo que fica registrado no nosso imaginário, e nesse sentido “O bom gigante amigo” traz algumas sequências antológicas, principalmente aquelas em que o protagonista (Mark Rylance) corre entre o mundo real e àquele ao qual pertence. Spielberg consegue extrair também uma interação cativante entre o personagem principal e a garotinha Sophie (Ruby Barnhill), atingindo em determinados momentos uma carga dramática convincente e encantadora. A caracterização dos gigantes oponente de BGA é outro ponto forte da obra, conseguindo-se uma bela síntese entre o assustador e o engraçado. Num contexto geral, é um filme que valoriza a construção de uma atmosfera original e inquietante entre a fábula moral e a galhofa grotesca que valoriza o roteiro de tons infantis, mostrando que Spielberg está bem longe de apenas requentar clichês narrativos e temáticos.

segunda-feira, agosto 01, 2016

Geraldinos, de Pedro Asbeg e Renato Martins ***

O documentário “Geraldinos” (2015), em termos existenciais, faz lembrar a produção norte-americana “A grande aposta” (2015) na leitura do subtexto de suas respectivas tramas, no sentido de que ambas trazem à tona a seguinte indagação: o que realmente move a sociedade contemporânea? A comparação pode soar um tanto esdruxula, no sentido de que o filme brasileiro tem como tema a paixão pelo futebol enquanto o trabalho dirigido por Adam McKay foca o ambiente da especulação financeira e imobiliária. Mas na conclusão das duas obras fica evidenciado que a verdadeira religião no mundo atual é o capitalismo, pois é ele que motiva tanto que uma ala popular (e barata) do Maracanã que abarcava milhares de torcedores humildes fosse destruída em nome do lucro de algumas poucas corporações como a derrocada econômica de milhões de trabalhadores para que alguns especuladores e rentistas faturassem alguns milhões de dólares a mais. Esse discurso melancólico e raivoso de “Geraldinos” é embalado por uma eficiente síntese formal que preserva a forte emotividade inerente ao assunto e lhe dá uma dinâmica narrativa envolvente na sua combinação de depoimentos (de torcedores, jornalistas, políticos e tecnocratas), imagens de arquivos antológicas e mesmo uma “encenação” espontânea e vibrante da rotina de personagens anônimos e folclóricos do mundo do futebol brasileiro, com direito, inclusive, a uma sequência particularmente memorável: aquela que mostra o ritual de preparação, de ida para o estádio e do ato de torcer de torcedores “geraldinos” do Fluminense e do Flamengo no dia do último Fla-Flu disputado no Maracanã antes da demolição da geral, tudo isso ao som de afro-funk endiabrado do grupo Bixiga 70.