sexta-feira, abril 28, 2017

Paterson, de Jim Jarmusch ***1/2

O cinema autoral do diretor norte-americano Jim Jarmusch parte, pelo menos, de dois preceitos – um temático, em que as suas tramas giram em torno de personagens outsiders, que parece trafegar em um universo fora do tempo e do espaço; e outro estético, em que a narrativa se baseia em recursos minimalistas, valorizando silêncios expressivos e atmosferas de certa distância emocional e ironia amarga. “Paterson” (2016) é um exemplar enfático do modus operandi de Jarmusch, ainda que revele em determinadas passagens uma queda por um certo convencionalismo. A poesia baseada no cotidiano é o grande tema da trama, e o estilo peculiar e rigoroso do cineasta cai como uma luva dentro dessa concepção de conteúdo. A grande fonte de inspiração do protagonista Paterson (Adam Driver), poeta e motorista de ônibus, vem da discreta e acurada observação que faz dos pequenos gestos e dramas que ocorrem à sua volta na sua rotina profissional e pessoal, com direito, por vezes, ao que o inesperado e o insólito entrem em cena. Roteiro e encenação demonstram uma bela síntese de sensibilidade e precisão na maneira como delineiam as nuances de seus desdobramentos – vários detalhes da vida de Paterson são apenas sugeridos, principalmente no que diz respeito ao seu passado e às suas motivações, e a grande sacada para a forte empatia do personagem e do próprio filme está justamente nessas “pontas soltas” da trama. O segredo da perenidade da filmografia de Jarmusch está justamente nessa estranha e encantadora combinação entre o banal e o misterioso.

quinta-feira, abril 27, 2017

Joaquim, de Marcelo Gomes **1/2

A sequência de abertura de “Joaquim” (2017) entrega logo de cara aqueles que são os principais problemas do filme do diretor Marcelo Gomes: um roteiro repleto de excessos textuais e pouco sutil que atravanca a narrativa. Em termos de teoria do que era para ser a sua concepção estética-temática, a produção era até bem promissora – sob uma perspectiva naturalista e vigorosa, seria recriada a história do herói nacional Tiradentes antes da sua definitiva tomada de consciência sócio-política em relação às mazelas existenciais do Brasil colônia. Em certas sequências, pode-se até perceber que tais intenções conseguem ser colocadas em prática, principalmente pela encenação por vezes de forte dinâmica, pela ótima direção de arte e pela intensidade da atuação de Júlio Machado no papel do protagonista. Ocorre, entretanto, que Gomes permite que paire por diversos momentos no filme uma certa atmosfera solene e artificial, como se “Joaquim” tivesse um caráter institucional destinado a exibição em escolas e afins, tamanha a prolixidade desnecessária de alguns diálogos e a caracterização caricata de algumas situações da trama. O subtexto é jogado na cara do espectador sem muita cerimônia, quando o mais acertado seria valorizar o aspecto imagético para realçar a visão de mundo da trama. Ou seja, chega a parecer em algumas sequências que se está assistindo a alguma minissérie de fundo histórico da Globo. Tais equívocos da produção chegam a ser surpreendentes, pois Gomes já tinha mostrado em trabalhos anteriores um domínio de linguagem cinematográfica baseada em fascinantes nuances, vide filmes memoráveis como “Cinema, aspirinas e urubus” (2004), “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (2009) e “Era uma vez eu, Verônica” (2012).

terça-feira, abril 25, 2017

As falsas confidências, de Luc Bondy **

Adaptação para o cinema de uma peça teatral, “As falsas confidências” (2016) não resolve de maneira satisfatória a conexão entre os dois meios de expressão artística. As intenções estéticas do diretor Luc Bondy até são ousadas, principalmente por apostar numa encenação e numa atmosfera que busca um caráter mais libertário e que se afaste do mero realismo, dando para a produção um interessante elemento fora do tempo e do espaço. Além disso, o elenco conta com algumas atuações expressivas e carismáticas. Falta para o filme, entretanto, um maior rigor na sua condução narrativa no sentido de conseguir gerar alguma tensão e interesse para o espectador. Os fatos se sucedem na tela dentro de uma síntese formal-temática amorfa e banal, impressão essa acentuada por um roteiro excessivamente frívolo e previsível.

segunda-feira, abril 24, 2017

John From, de João Nicolau ***1/2

A analogia pode soar forçada e simplista para alguns, mas a produção portuguesa “John From” (2015) faz pensar na hipótese bastante imaginária de que alguma produção clássica oitentista dirigida por John Hughes fosse refilmada sob a batuta surrealista de Luis Buñuel. Em um primeiro momento, a concepção estética-temática dessa produção do cineasta João Nicolau se vincula a um estilo realista, ao retratar o cotidiano da adolescente Rita (Júlia Palha) marcado pelos dilemas e delícias inerentes à sua idade. A partir do momento em que a personagem se descobre apaixonada pelo vizinho mais velho, de forma progressiva elementos de cinema fantástico vão se inserindo de maneira sutil na narrativa. É como se o imaginário da garota se tornasse a principal perspectiva daquilo ao que o espectador assiste. Nesse sentido, signos do mundo contemporâneo se misturam a referências passadistas com uma naturalidade insólita e encantadora, além de nuances do roteiro que poderiam soar estapafúrdias acabam adquirindo uma estranha e coerente lógica. Nesse sentido, a obsessão com fatos históricos e povos exóticos que permeiam a trama aludem ao conturbado passado colonialista de Portugal. Dentro desse particular ideário artístico-existencial, é um dado fundamental de “John From” a ambígua encenação encadeada por Nicolau, que se vale de uma fascinante síntese entre o libertário e o solene.

quinta-feira, abril 20, 2017

Martírio, de Vincent Carelli ****

Se em “Corumbiara” (2009), obra anterior do diretor Vincent Carelli, a narrativa convencional e apenas correta não acompanhava a contundência de sua temática, em “Martírio” (2016) esse descompasso desaparece, tendo por resultado uma obra inquietante e muito bem resolvida em termos estéticos e existenciais. E isso fica evidente logo nas primeiras sequências do filme, em que o brilhante jogo de edição contrapõe o discurso preconceituoso de políticos e da mídia oficial em relação à questão indígena com a realidade desoladora dos nativos. Tal engenhoso recurso narrativo também serve para estabelecer como o trabalho de Carelli transcende a simples reportagem informativa, deixando claro que o gênero do documentário cinematográfico tem como uma de suas funções principais oferecer uma perspectiva humanista e artística que vai além da abordagem jornalística “imparcial” da grande imprensa. Para o diretor, não basta que a sua obra se limite a uma descrição cronológica e minuciosa de fatos – na verdade, o que ele se propõe é jogar o espectador dentro de uma perturbadora jornada histórica e sensorial sobre a trajetória de sistemática dizimação física e cultural de povos indígenas no Brasil a partir do relato das experiências traumáticas sofridas pelo grupo Guarani Kaiowá. Para isso, Carelli constrói uma narrativa que se vale de recursos variados (relato histórico, registro etnográfico, depoimentos, filmagens amadoras, farto material de arquivo audiovisual, perspectiva emocional e intimista) e lhes dá uma unidade artística admirável e também desconcertante, pois se há momentos de intensa melancolia, principalmente nas entrevistas com os indígenas a descreverem seus calvários, e até mesmo assustadores (com destaque para as falas hipócritas de latifundiários e políticos), há também sequências em “Martírio” que trazem um comovente encanto pelo dimensão cultural de rezas e danças nos rituais indígenas.

quarta-feira, abril 19, 2017

Virei um gato, de Barry Sonnelfeld **

O cineasta norte-americano Barry Sonnelfed nunca chegou a ser propriamente um diretor de traço autoral próprio, mas dentro do seu padrão convencional e comercial foi responsável por algumas produções memoráveis e divertidas como “A família Addams 2” (1993) e “O nome do jogo” (1995). Dessa forma, “Virei um gato” (2016) traz uma certa impressão de decepção. Não que a sua premissa de roteiro seja especialmente promissora ou original, mas o tratamento formal e a narrativa concebidos por Sonnelfed são tão genéricos e destituídos de vigor criativo que mais faz pensar de que se trata de uma obra de um tarefeiro qualquer de Hollywood do que o trabalho de um profissional veterano e com algum talento. Por vezes, dá até para dar umas risadas com a cretinice de algumas situações da trama, mas a impressão final é de que se trata de muito pouco para alguém como Sonnelfeld.

terça-feira, abril 18, 2017

Cães selvagens, de Paul Schrader ***1/2

Não é muito frequente que um filme de Paul Schrader apareça nos cinemas brasileiros. E dá para entender o motivo – sua carreira como diretor é errática e imprevisível, ainda que tenha uma quantidade considerável de obras memoráveis. “Cães selvagens” (2016) é uma demonstração enfática do caráter conturbado da arte de Schrader. Ao invés das rigorosas narrativas bressorianas de “O gigolô americano” (1980) e “O acompanhante” (2007), nessa produção mais recente o cineasta envereda por uma concepção mais anárquica e delirante, como se quisesse evocar uma longa trip alucinada movida a cocaína e crack. Ainda assim, seu direcionamento estético nunca perde a coerência existencial e um forte traço autoral – ainda que se abuse de truques gráficos e de uma direção de fotografia de cores estouradas, além de uma barulhenta trilha sonora baseada em temas rock e eletrônico, paira sobre a narrativa e a atmosfera do filme um certo classicismo que impede que tudo caia na mera estilização estéril. Mesmo o tom over das atuações do elenco, com destaque para a interpretação extraordinária de Willem Dafoe, consegue se enquadrar de maneira precisa dentro do conceito ambíguo da obra. As escolhas formais de Schrader acentuam com sensibilidade e humor o tom misto de melancolia e sordidez do roteiro, que faz um retrato vigoroso e irônico da rotina de marginais e perdedores. Nesse sentido, as sequências finais de “Cães selvagens” são exemplares na forma com que sintetizam o particular ideário-artístico e temático arquitetado pelo diretor e também por evidenciarem a moral difusa e hipócrita do “american way of life”.

segunda-feira, abril 17, 2017

Souvenir, de Bavo Defume ***

Por debaixo das aparentes frivolidades e breguices de “Souvenir” (2016) há um interessante exercício de estética e ironia por parte do diretor Bavo Defume. A produção recicla clichês de melodramas e musicais, com direito a citações e referências diretas a clássicos do gênero, e os recria num contexto artístico de certa originalidade. Direção de arte e fotografia evocam uma insólita atmosfera entre o realista e o camp, fazendo lembrar algumas obras marcantes de Jacques Demy, principalmente “Os guarda-chuvas do amor” (1964). A própria atuação de Isabelle Huppert no papel da protagonista Liliane, alternando sobriedade e exagero nas doses certas, se mostra em sintonia com essa proposta estética e formal de Defume.

quinta-feira, abril 13, 2017

Paraíso, de Andrei Konchalovsky **1/2

O diretor russo Andrei Konchalovsky tem uma filmografia marcada por um rigoroso academicismo narrativo. Dentro dessa opção artística, sua carreira não apresenta grandes arroubos criativos, ainda que seja um competente artesão cinematográfico e por vezes tenha apresentado algumas obras memoráveis como “Os amantes de Maria” (1984) e “Gente diferente” (1987). Sua produção mais recente, “Paraíso” (2016), versa sobre a perseguição a judeus na 2ª Guerra Mundial e, em um primeiro momento, até sugere algumas ousadias estéticas, principalmente nas sequências em que evoca técnicas documentais, onde os principais personagens falam diretamente com a câmera. Tais recursos, entretanto, aos poucos vão se esvaindo na sua capacidade de gerar efetiva tensão dramática e mesmo uma convincente densidade psicológica para os personagens. Ainda que detalhes formais como fotografia e direção de arte revelem forte cuidado em suas respectivas concepções, narrativa e atmosfera se mostram excessivamente solenes e previsíveis, fazendo com que “Paraíso” se configure como um trabalho derivativo dentro do gênero ao qual pertence.

quarta-feira, abril 12, 2017

O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues ***1/2

Uma intrigante simbologia permeia toda a narrativa de “O ornitólogo” (2016). Nas sequências iniciais, em que o protagonista Fernando (Paul Hamy) estabelece uma rotina de silenciosa e rigorosa observação de pássaros no meio de uma floresta, o diretor João Pedro Rodrigues utiliza um registro audiovisual típico do estilo naturalista – fotografia e edição evocam trejeitos de cinema documental, encenação remete à escola realista, há um certo distanciamento emocional na abordagem temática, trilha sonora musicada praticamente ausente. Tais opções de linguagem cinematográfica revelam sutilmente um universo marcado pelo predomínio da ciência e da razão. Quando Fernando acidentalmente se perde na floresta, ambientação e atmosfera existencial da obra se transformam radicalmente, como se o personagem tivesse ultrapassado para uma dimensão paralela. Nesse novo contexto de teor fantástico e delirante, surgem figuras e situações estranhas e perturbadoras, como as amigas chinesas adeptas de um catolicismo obtuso, um grupo de nativos que celebram rituais pagãos, amazonas fora do tempo e do espaço, um pastor de ovelhas mudo e gay, até mesmo um pombo branco que parece configurar uma espécie de espírito da floresta. A conexão entre “O ornitólogo” e os conflitos e dilemas do mundo contemporâneo é claro, ainda que tal ligação se estabeleça por caminhos insólitos – quanto mais Fernando, agnóstico e homossexual, se embrenha na floresta, mais ele se confronta com o atavismo e a tradição opressores de um lugar marcado pelo misticismo obscurantista. Ao avançar por trilhas e matos, sua individualidade e sua psique vão se dissolvendo aos poucos num assustador processo de “sublimação”. Ou seja, a metáfora exata a retratar a retomada de uma sufocante religiosidade no mundo contemporâneo. Nesse sentido, “O ornitólogo” se irmana com outra extraordinária obra de temática semelhante, “A bruxa” (2015), em que truques e efeitos habituais do gênero horror são transformados em valiosos recursos na composição de narrativas de forte caráter libertário.

terça-feira, abril 11, 2017

O mundo fora do lugar, de Margarethe Von Trotta **1/2

Há pelo menos um mérito considerável por parte da diretora alemã Margarethe Von Trotta na realização de “O mundo fora do lugar” (2015) – diante de uma trama genérica típica do gênero melodrama, a abordagem da cineasta é marcada pela sobriedade emocional e pela elegância formal. Mas também nada que vá além disso, pois apesar da narrativa se desenvolver de maneira agradável e sem maiores sobressaltos, falta algum elemento artístico que dê alguma transcendência à obra. Ou seja, é um filme fácil de ver, mas também fácil de esquecer. E o que no caso de Von Trotta acaba sendo algo frustrante, principalmente se lembrarmos da contundência estética e temática de sua produção anterior, “Hannah Arendt” (2012), um dos melhores trabalhos cinematográficos recentes a discorrer sobre a 2ª Guerra Mundial.

segunda-feira, abril 10, 2017

Para sempre, de Juan Zapata 1/2 (meia estrela)

Ainda que marcada por uma narrativa irregular, “Simone” (2013) demonstrava evolução dentro da filmografia do diretor Juan Zapata. Podia-se perceber na produção mencionada algumas inquietações estéticas e mesmo uma certa ambiguidade na abordagem emocional de sua temática. Em “Para sempre” (2016), o cineasta parece voltar à estaca zero ao se limitar a revolver de maneira nada inspirada clichês narrativos de melodrama barato. Nos dez minutos iniciais do filme ele já delimita, e esgota, todo o seu arcabouço formal e textual – em uma trama envolvendo perda e trauma, haverá uma variação nos planos temporais (presente e passado) a indicar um processo de aceitação e aprendizado de uma viúva (Daniela Escobar). Nada contra a opção por usar elementos convencionais na narrativa. O grande problema é que truques e recursos estéticos são jogados na tela de maneira mecânica e sem criatividade. E a noção de construção de uma jornada existencial é bastante rasteira, pois “Para sempre” emula uma síntese de literatura de autoajuda e ficção romântica banal. Pode-se até perceber uma intenção de sofisticação visual, principalmente pela trama se situar em algumas fotogênicas cidades europeias. Acaba ficando só na tentativa mesmo, pois o registro de Zapata nesses cenários fica limitado a uma concepção imagética de cartão postal. Esse aspecto, inclusive, é emblemático do grande equívoco artístico-existencial de “Para sempre”, em que Zapata parece se deslumbrar com alguns signos de pretensos requinte e profundidade psicológica e se adequa a um comodismo de retratar de forma asséptica e sem vigor a “alma” de uma típica dondoca pequeno-burguesa, impressão reforçada pela interpretação canastrona de Daniela Escobar. Nesse sentido, a obra de Zapata parece uma derivação da franquia “50 tons de cinza” no uso de um formalismo “publicitário” e na caracterização sentimental estilo “romances Sabrina” atualizado.

terça-feira, abril 04, 2017

Fátima, de Philippe Faucon ***

A concepção narrativa e a temática de “Fátima” (2015) remetem o filme para um viés melodramático. Em termos formais a obra é convencional e a sua trama é uma conjunção de elementos marcados pela previsibilidade. Ainda assim, a produção francesa dirigida por Philippe Faucon consegue ser envolvente e plena de tensão dramática devido à sua abordagem emocional sóbria, ao rigor da encenação e a um roteiro que sabe ressaltar com sensibilidade e lucidez perturbadoras as complexidades e sutilezas da questão da vida dos imigrantes na França. O filme dispensa maniqueísmos e soluções fáceis – assim como disseca de maneira crítica a exploração e o preconceito sofridos por imigrantes e descendentes em seu dia-a-dia, também mostra um olhar de contestação sobre os valores culturais ditos “tradicionais” propagados pela religião muçulmana que na prática tem uma função primordial de opressão moral e de incentivar o obscurantismo. Nesse sentido, o subtexto da obra tem um caráter até libertário ao sugerir uma possibilidade de mudança e transcendência pela educação e pela arte. A contundência desse conteúdo é amplificada pelas interpretações vigorosas do elenco, principalmente das garotas que atuam nos papéis das irmãs Nesrine e Souad.

segunda-feira, abril 03, 2017

Era o Hotel Cambridge, de Eliana Caffé ***

É claro que um filme como “Era o hotel Cambridge” (2016) ganha uma ressonância diferenciada diante de uma conjuntura sócio-política nacional e mundial tão conturbada quanto a do presente, principalmente devido à sua temática. Dentro da questão da invasão e ocupação de imóveis abandonados por movimentos sociais, a diretora Eliana Caffé também não se furta em deixar claro de que lado está. O que se tem aqui é um cinema político e mesmo panfletário em sua essência. A cineasta, entretanto, não se prescinde de desenvolver com sensibilidade o aspecto intimista da trama do filme. Nesse viés, a encenação e a interação entre personagens fictícios e pessoas “reais” são repletas de fortes nuances dramáticas e mesmo um insólito aspecto de comicidade, o que amplia de maneira profunda e comovente o teor humanista da produção. “Era o Hotel Cambridge” também se mostra capaz em ousar dentro da sua parte estética. Nesse último caso, há uma simbiose contundente entre conteúdo de discurso e a síntese narrativa-formal da obra – a opção de fazer um entrelaçamento entre ficção e documentário configura um método artístico ousado e de caráter guerrilheiro, o que se pode verificar nas melhores sequências do filme que são aquelas que mostram o processo de ocupação de um imóvel e o conflito no final contra a polícia numa ação de reintegração de posse. Mais importante para a diretora do que fechar pontas do roteiro ou deixar “redonda” a narrativa é evidenciar uma atmosfera de angústia e incerteza diante de uma sociedade que legitima a opressão e o preconceito contra os deserdados e os “diferentes”.