sexta-feira, dezembro 29, 2017

Top 25 2017

1)      Twin Peaks, de David Lynch
2)      Silêncio, de Martin Scorsese
3)      Z, a cidade perdida, de James Gray
4)      De canção em canção, de Terence Mallick
5)      Martírio, de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida
6)      Na praia à noite sozinha, de Hong Sang-soo
7)      No intenso agora, de João Moreira Salles
8)      Em ritmo de fuga, de Edgar Wright
9)      A criada, de Chan-Wook Park
10)   Melhores amigos, de Ira Sachs
11)   Personal shopper, de Olivier Assayas
12)   Filha de ninguém, de Hong Sang-soo
13)   A qualquer custo, de David Mackenzie
14)   Eu, Daniel Blake, de Ken Loach
15)   Jackie, de Pablo Larrain
16)   O filho de Joseph, de Eugène Green
17)   Corpo elétrico, de Marcelo Caetano
18)   Na vertical, de Alain Guiraudie
19)   Manchester à beira-mar, de Kenneth Lonergan
20)   Mãe!, de Darren Aronofsky
21)   O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues
22)   A morte de Luís XIV, de Albert Serra
23)   Paterson, de Jim Jarmusch
24)   Corra!, de Jordan Peele
25)   Logan, de James Mangold

quinta-feira, dezembro 28, 2017

Lucky, de John Carroll Lynch ***1/2

Um filme que lide com temas tabus como a morte e a velhice navega em águas perigosas. Dependendo da forma com que aborde tais assuntos, poderá cair no sentimentalismo fácil e no medíocre formato “obra edificante de lição de vida”. “Lucky” (2017) envereda por essa temática sem cair em tais armadilhas. Boa parte dos méritos está em algumas sábias escolhas criativas do diretor John Carroll Lynch. Sua narrativa é seca e objetiva, com econômicos toques oníricos, mas que se permite a algumas sequências pungentes. A cronologia dos fatos que se sucedem no roteiro obedece a uma lógica humanista e de complexidade psicológica, sem esquecer, entretanto, uma atmosfera que sintetiza ironia e um imaginário icônico. As situações da trama inicialmente evocam um teor realista, quase documental, ao evidenciar alguns sistemáticos atos do cotidiano do protagonista Lucky (Harry Dean Stanton). Aos poucos, entretanto, tais episódios vão adquirindo uma forte conotação simbólica, assim como as sutis variações dessa rotina do personagem, a ilustrar uma melancólica e lúcida reflexão sobre a decadência física e a finitude, sem cair necessariamente para a afetação. A caracterização de Stanton no papel título também é fundamental para a contundente concepção artística de Carroll Lynch –  Lucky varia com naturalidade e coerência entre a rudeza sincera e uma fragilidade comovente.

quarta-feira, dezembro 27, 2017

Jovem mulher, de Léonor Serraille ***

Em uma das tomadas iniciais de “Jovem mulher” (2017), há um plano-sequência fixo onde a protagonista Paula (Laetitia Dosch) dispara um quase monólogo confuso e raivoso, fazendo lembrar uma cena parecida do antológico “A mãe a e a puta” (1973). O filme de estreia da diretora Léonor Serraille não tem a excelência artística da aludida obra-prima de Jean Eustache, mas a sequência mencionada com a personagem principal consegue traduzir de maneira notável o espírito inquieto do trabalho de Serraille em termos formais e existenciais. A abordagem estética da obra se vincula a uma tradicional escola realista. A forma com que a cineasta conduz a narrativa, entretanto, traz uma fluidez admirável no conjunto encenação e montagem, contando ainda com um roteiro de forte subtexto irônico e contestador e com a atuação repleta de expressivas nuances dramáticas de Dosch. A conturbada trajetória de Paula após ser expulsa de casa pelo companheiro, marcada por explorações econômicas e abandonos morais, corresponde a uma espécie de viagem sensorial da personagem dentro do âmago de uma hipócrita sociedade patriarcal e excludente, ainda que embalada como exemplo de civilidade ocidental. Apesar de marcada por um certo teor panfletário sincero e contundente, é notável a coerência artística com que a trama se desenvolve, principalmente pelo fato de que a redenção de Paula venha através da aproximação com figuras outsiders, além da conclusão do filme apresentar uma carga libertária comovente e desafiadora.

terça-feira, dezembro 26, 2017

Verão 1993, de Carla Simón ***

Em termos formais, “Verão 1993” (2017) não é uma obra que chega a ser especialmente original. Dentro de um conjunto temático-estético influenciado pela escola realista, entretanto, chama atenção pelo rigor e sensibilidade com que coloca os seus preceitos em prática. Ainda que a sua trama seja marcada por tópicos marcados por uma síntese entre o emotivo e o intimismo, a abordagem da diretora Carla Simón é vigorosa e objetiva, não apelando para sentimentalismos baratos. Pelo contrário – a trajetória de amadurecimento da pequena protagonista Frida (Laia Artigas) é esmiuçada com coerência e detalhismo que beiram o dialético ao expor a complexidade emocional que envolve a situação sócio-cultural da garota. Os principais episódios do roteiro envolvem perversidade infantil, a necessidade de serenidade e racionalismo por parte de adultos diante de situações limites, a influência nociva de uma moral irreal e repressora por parte de uma distorcida educação católica – Simón amarra tais elementos temáticos com precisão dentro de uma história de forte teor simbólico a retratar uma sociedade tão conservadora como a espanhola (e, por tabela, em sintonia com outras do mundo ocidental). O filme abarca tais questões dentro de uma narrativa sóbria repleta de detalhes expressivos como uma direção de fotografia que registra os exuberantes cenários naturais dentro de um olhar que preserva tanto o lado assustador das densas matas quanto o aspecto idílico dessa mesma natureza, as densas atmosferas dramáticas pontuadas por silêncios expressivos e discreto uso de temas musicais e as atuações naturalistas de seu elenco (com destaque evidente para as atrizes mirins Artigas e Paula Robles).

sexta-feira, dezembro 22, 2017

O local do crime, de André Téchiné ***1/2

Uma das obras que melhor capta o particular estilo artístico do diretor francês André Téchiné, “O local do crime” (1986) traz aquela síntese narrativa tão cara ao cineasta, em que texturas dos gêneros melodrama e policial se fundem com uma naturalidade desconcertante. O roteiro é preciso na maneira com que arroubos de romantismo e teor realista se relacionam, trazendo um sutil subtexto de crítica sócio-familiar bastante contundente. A encenação proposta por Téchiné se desenvolve com fluência admirável, indo de secas e vigorosas sequências de suspense e ação e passando por atmosferas intimistas repletas de densas nuances psicológicas. Dentro dessa rigorosa concepção estética-temática, mostra-se fundamental o trabalho de direção de atores, com Téchiné extraindo algumas intepretações memoráveis de seu elenco, com grande destaque para Catherine Deneuve, em um dos seus papeis que melhor soube conciliar a sua beleza glacial com uma caracterização sóbria e complexa.

quarta-feira, dezembro 20, 2017

Éden, de Bruno Safadi **

A ficha técnica e a sinopse de “Éden” (2013) indicavam uma produção bastante promissora – uma trama tendo como subtexto a influência das igrejas evangélicas nas humildes periferias urbanas e elenco contando com nomes expressivos do cinema brasileiro contemporâneo como Leandra Leal, João Miguel e Júlio Andrade. O resultado final, entretanto, acaba sendo bem frustrante. Culpa de uma narrativa frouxa que se mostra indecisa entre um sensorialismo rarefeito e a encenação realista exagerada. Há de se considerar uma visão crítica consistente do roteiro na forma com que expõe o caráter oportunista e obscurantista de cultos religiosos perante a sociedade contemporânea, mas isso acaba perdendo parte de sua força diante da árida concepção artística do diretor Bruno Safadi.

terça-feira, dezembro 19, 2017

Star Wars: Os últimos Jedi, de Rian Johnson **

Há de se concordar com pelo menos uma coisa em relação à mais recente trilogia “Star Wars” – há uma certa coerência artística e existencial entre os dois primeiros capítulos. Isso porque “Os últimos Jedi” (2017) desperta a mesma impressão que “O despertar da força” (2015): são filmes que mais parecem uma reciclagem oportunista e sem inspiração das produções clássicas do que obras que acrescentam algo de novo à mitologia original criada por George Lucas ou mesmo emulem uma continuação natural da saga de ficção científica mais famosa da história do cinema moderno. Nesse longa mais recente, até há alguns pontos positivos, como a bela direção de fotografia, algumas sequências de ação que remetem a uma escola clássica de cinema de aventura e mesmo e, por vezes, a caracterização de Mark Hammil como o lendário Luke Skywalker que impressiona por um forte caráter icônico. Tais acertos, entretanto, representam muito pouco para salvar uma narrativa destituída de densidade dramática convincente, uma encenação apática e um roteiro que vai do nada para o lugar nenhum. Além disso, fica reforçada a constatação que os novos personagens da trilogia são destituídos de interesse e carisma, com “destaque” absoluto para o ridículo vilão criança mimada Kylo Ren (Adam Driver), enquanto as figuras clássicas são maltratadas de maneira burra e impiedosa pela forma apelativa com que são utilizadas. Nesse último ponto, a morte de Luke Skywalker é absurdamente anticlimática e sem sentido, parecendo apenas visar uma manipulação sentimental gratuita. No cômputo geral, “Os últimos Jedi” joga fora a boa impressão causada pelo ótimo “Rogue One” (2016) e faz temer até onde essa picaretice mercadológica pode chegar.

segunda-feira, dezembro 18, 2017

31, de Rob Zombie ***

Pelo menos com uma coisa até os detratores de Rob Zombie tem de concordar: há uma forte coerência autoral em sua filmografia. Em grande parte das produções que dirigiu se pode perceber uma recorrência de elementos temáticos e narrativos – grafismo violento explícito, atmosfera sórdida e amoral, psicopatas e assassinos em geral como personagens fundamentais nas tramas, até a sua esposa Sheri Moon parece interpretar variações diferentes de um mesmo papel. Tudo isso se encontra em “31” (2016), com direito inclusive a palhaços matadores ao estilo do memorável Capitão Spalding (Sid Haig) de “A casa dos mil corpos” (2003) e “Os rejeitados pelo diabo” (2005). O filme dá uma constante impressão ao espectador que ele já viu tudo que aparece na tela de forma mais convincente e impactante em outros filmes do próprio Zombie. Ainda assim, tem o seu encanto, principalmente porque o formalismo casca grossa do cineasta e o seu gosto por histórias sombrias e niilistas afastam “31” do lugar comum asséptico que tomou conta do cinema de horror contemporâneo.

sexta-feira, dezembro 15, 2017

John Wick - Um novo dia para matar, de Chad Stahelski ****

Tudo aquilo que escrevi sobre “De volta ao jogo” (2014) nesse blog se aplica novamente para a sua continuação “John Wick – Um novo dia para matar” (2017). Cabe ressaltar, entretanto, que esse novo capítulo da brutal saga de violência e ironia do protagonista vivido por Keanu Reeves também não se limitar ao reciclar de uma fórmula que já havia dado bastante certo no filme anterior. Na verdade, o diretor Chad Stahelski depura ainda mais a narrativa e a estética, configurando encenação e atmosfera em um teor ainda maior de estilização e barroquismo audiovisual. E se alguém ainda acha que a melhor coisa que Reeves participou no gênero ação está na superestimada trilogia “Matriz”, talvez devesse rever seus conceitos ao assistir às precisas e alucinadas coreografias de lutas e tiroteios de “John Wick” ou na percepção da divertida sagacidade de diálogos e no tom misto de cartunesco e consistente densidade psicológica do roteiro.

quinta-feira, dezembro 14, 2017

Assassinato no Expresso do Oriente, de Kenneth Branagh **

Na função de diretor, o britânico Kenneth Branagh tem como obras mais destacadas algumas recriações vigorosas e criativas de trabalhos de Shakespeare como “Henrique V” (1989), “Muito barulho por nada” (1993) e “Hamlet” (1996). Tal fato fez com que produtores o convocassem com certa frequência para a releitura de obras e personagens clássicos de diversos meios de expressão, no desejo de oferecer uma abordagem de maior estofo dramático e narrativo. Nesse sentido, a produção em que melhor atingiu esse objetivo foi a bela adaptação de “Cinderela” (2015). Em outros casos, entretanto, os resultados finais foram decepcionantes, vide “Thor” (2011) e “Operação sombra: Jack Ryan” (2014). Sua obra mais recente nessa vertente, “Assassinato no Expresso do Oriente” (2017), incursão do cineasta pelo universo do mais popular livro da escritora Agatha Christie, fica enquadrada também na categoria frustrante. Pode-se perceber um certo requinte em termos de direção de arte e atmosfera, além de Branagh conseguir extrair algumas atuações carismáticas de seu elenco. Mais tais aspecto positivos são insuficientes para a apagar a má impressão de uma narrativa amorfa, uma composição cênica/visual marcada pela assepsia e um roteiro que resvala no melodramático excessivo, principalmente nos exageros cafonas do terço final do filme. A opulência audiovisual concebida por Branagh é vazia e tediosa e poucas vezes consegue trazer algum efetivo encanto para o espectador.

terça-feira, dezembro 12, 2017

Como ser solteiro, de Rosane Svartman *

É bom deixar clara logo de cara uma constatação: “Como ser solteiro” (1998) é uma legítima tranqueira do cinema nacional. A impressão é de uma equação mal-ajambrada entre aquelas produções cariocas toscas e pueris da primeira metade dos anos 80, tipo “Menino do Rio” e “Bete Balançco”, e referências estéticas e temáticas a clássicas comédias românticas juvenis da mesma época dirigidas por John Hughes (“Gatinhas e gatões”, “A garota de rosa shocking”). Ainda assim, assistir a essa produção de Rosane Svartman acaba despertando por vezes curiosidade e simpatia. Por trás de uma concepção narrativa amorfa e um roteiro repleto de tiradas cômicas e dramáticas rasteiras, como se fosse a junção de “Zorra total” com uma novela global das mais chulés, há algo de uma atmosfera mista de inocente malandragem e sensualidade à flor da pele que remete a um imaginário carioca que se perdeu nos últimos anos – ficar de maneira deliberada nas mãos de evangélicos obscurantistas e picaretas como Garotinho e Crivella não é uma situação pela qual se passa incólume. Assim, mesmo um filme ordinário e ruim como esse “Como ser solteiro” acaba despertando uma certa nostalgia perturbadora.

segunda-feira, dezembro 11, 2017

Waiting for B., de Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel ***

O documentário brasileiro “Waiting for B.” (2015) tem por ponto de partida uma premissa até bem simples: o retrato do cotidiano de alguns jovens que se encontravam acampados a dias em frente ao Estádio Morumbi para o show que a cantora Beyoncé deu no local em 2013. Em termos existenciais, alguns aspectos unem esses garotos – a maioria é de origem humilde em termos econômicos e são homossexuais, com uma trajetória de vida com vários episódios de preconceito e discriminação. O filme, entretanto, passa longe do simples retrato sociológico ou da pura reportagem. Os diretores Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel conseguem elaborar uma narrativa cativante, alternando diversas ambientações e situações de maneira fluente e coesa, indo das conversas bem-humoradas e as sessões de coreografias dos fãs da cantora nas filas, passando pela crueza do registro do dia-a-dia de alguns deles com a família e no trabalho e concluindo com o frenesi e tensão do dia da apresentação de Beyoncé. Diante desse quatro estético-temático, o resultado final é uma obra de forte caráter libertário na forma com que consegue conciliar em sua abordagem tanto a contundência de seu discurso comportamental desafiador quanto uma certa leveza no teor de ironia sagaz que perpassa o filme quando os seus protagonistas estão em cena.

sexta-feira, dezembro 08, 2017

A cidade onde envelheço, de Marília Rocha ***

Em um primeiro momento, a narrativa de “A cidade onde envelheço” (2016) aparenta uma certa aridez que pode parecer um pouco incômoda. Os silêncios são enfatizados com vigor, a atmosfera tem algo de documental a partir do registro seco da lente da diretora Marília Rocha, a trama realça aspectos de um cotidiano simples e por vezes tedioso dos personagens. São em algumas sutilezas estéticas e nas nuances existenciais do roteiro que o filme vai despertando um insólito encanto para o espectador. Arroubos emocionais e viradas espetaculares na história são dispensados em nome de uma fluência narrativa natural e serena, em que motivações e maiores explicações sobre as atitudes das protagonistas Tereza (Elizabete Francisca Santos) e Francisca (Francisca Manuel) dão lugar a um teor instintivo e mesmo misterioso sobre o comportamento errático de tais figuras. A forma com que Rocha faz com que o filme acompanhe a trajetória das personagens evidencia um olhar poético sobre as agruras e a pequenas delícias de suas rotinas, valorizando ainda detalhes cênicos notáveis como a intensa interação dramática entre as atrizes principais e mesmo o sedutor sotaque português das intérpretes.

quinta-feira, dezembro 07, 2017

Pai em dose dupla 2, de Sean Anders ***

O diretor Sean Anders atinge uma proeza considerável em “Pai em dose dupla 2” – fazer com que uma sequência não se caracterize como meramente oportunista e que consegue ainda ser melhor que o primeiro filme. Essa continuação explora basicamente as mesmas questões temáticas e direcionamento narrativo da produção anterior, mas de uma maneira mais alucinada e sentimental (por mais contraditório que isso possa parecer). Anders privilegia com maior intensidade os aspectos grosseiros e exagerados da comédia física, com forte ênfase nesse lado para cenas envolvendo constrangimentos e desastres com o personagem apatetado Brad (Will Ferrell), ao mesmo tempo que o lado de crítica de costumes se harmoniza com bizarra fluência com um insólito e até bem sacado tom de lições edificantes de vida. A direção de Anders dá uma fluência admirável na conciliação desses diferentes polos da narrativa e que se mostra em sintonia com o mote principal do roteiro – o confronto entre a imagem idealizada de durão do típico macho norte-americano com a tendência para a emotividade derramada típica do cidadão de classe média. Complementando essas belas sacadas criativas da direção, há um elenco bastante inspirado, do quarteto principal de atores até o elenco infantil, e a excelente utilização das canções natalinas da trilha sonora (destaque para a memorável sequência dos personagens acampados dentro de um cinema).

quarta-feira, dezembro 06, 2017

Um senhor estagiário, de Nancy Meyer *

Ok, a gente pode ter boa vontade e pensar que um filme como “Um senhor estagiário” (2015) pode oferecer alguma reflexão sobre a questão da velhice na sociedade contemporânea ocidental. E até lembrar que o protagonista Ben Whittaker é interpretado por Robert De Niro, um ator cujo currículo tem tantas obras marcantes que se a gente for citar pelo menos parte delas vai acabar ocupando mais que a metade do parágrafo desse comentário. Assistindo ao filme da diretora Nancy Meyer, entretanto, todas essas nossas considerações vão por água abaixo e só se pode concluir que De Niro aceitou participar de algo tão medíocre, reacionário e brega porque o cachê realmente devia ser muito bom. A abordagem temática superficial e esquemática, o roteiro repleto de clichês vagabundos e um formalismo mofado e tedioso resultam num filme difícil de aguentar até o fim.

terça-feira, dezembro 05, 2017

Gabriel e a montanha, de Fellipe Barbosa ***

Se em “Casa grande” (2015) o diretor Fellipe Barbosa oferecia um retrato pálido e esquemático sobre a decadência moral e econômica da burguesia nacional neste século, em “Gabriel e a montanha” (2017) o seu discurso artístico-existencial se mostra melhor focado e por vezes até beirando o poético. O grande acerto em suas abordagens narrativa e temática está na forma com que o protagonista Gabriel Buchmann (João Pedro Zappa) é colocado em cena – se no início da trama o personagem possui uma certa aura santificada, idealizada, na maneira com que interage com as figuras que encontra em suas andanças pela continente africano, aos poucos essa impressão vai se mostrando enganosa, quando o que fica evidenciada é a ambiguidade das intenções e da personalidade de Gabriel. A entrada em cena de Cris (Caroline Abras), namorada dele, é fundamental nessa dissecação existencial. Em trechos de conversas e mesmo na tensão amorosa entre o casal fica esboçado de maneira sutil as possíveis razões que levaram Gabriel a realizar a sua jornada. Nas frustrações, angústias e desejos do protagonista ficam sintetizadas um conjunto de valores e ambições de uma jovem geração movida a arrivismo e insensibilidade. Quando Cris volta a ficar ausente da narrativa, essa passa a se tornar mais rarefeita, a atmosfera do filme envereda para algo entre o realismo e o etéreo e mesmo o roteiro e estética privilegiam uma forte carga de simbologias textuais e visuais. As escolhas de Gabriel se tornam bizarras, seu comportamento ainda mais errático. Seu trágico fim deixa a fascinante interrogação – um suicídio dissimulado ou apenas o resultado de escolhas cretinas? Fellipe Barbosa embala essa história intrincada com algumas escolhas formais adequadas e, em determinados momentos, até encantadoras, principalmente pela fluência cênica do seu elenco (inclusive os nativos “amadores”), pela forma com que as belas paisagens africanas são aproveitadas na direção de fotografia e nos expressivos temas musicais étnicos da trilha sonora.

segunda-feira, dezembro 04, 2017

Snuff - Vítimas do prazer, de Cláudio Cunha ***1/2

A parceria entre Cláudio Cunha na direção e Carlos Reichenbach no roteiro em “Snuff –Vítimas do prazer” (1977) tem como resultado final justamente aquilo que se poderia esperar de uma união dessas – uma síntese muito bem delineada entre inventividade artística e ambientação sórdida exploitation, combinação habitual naquilo de melhor que o cinema da Boca do Lixo produziu. Roteiro e narrativa obedecem aos preceitos básicos dos gêneros horror e suspense, mas também conseguem criar um subtexto e atmosfera repletos de nuances irônicas e dramáticas, além de uma vigorosa simbologia visual e textual. Dentro de tal concepção artística, há detalhes cênicos antológicos, como a forma insólita em que a música clássica se insere em sequências marcadas pela escatologia, o grafismo violento de algumas cenas, o erotismo misto de galhofeiro e sensual e as composições dramáticas viscerais e cheias de verve de boa parte do elenco.

sexta-feira, dezembro 01, 2017

Elvis & Nixon, de Liza Johnson **1/2

O encontro real entre Elvis Presley e Richard Nixon foi um evento histórico que trouxe uma carga simbólica muito forte: o rei do rock, o ícone máximo de um gênero musical e mesmo comportamental que teve no DNA de sua formação um forte caráter de rebeldia, se declarou disposto a colaborar com um dos líderes políticos mais conservadores do século XX. Ou seja, a riqueza de aspectos contraditórios e complexos de mais de uma geração da sociedade ocidental estava sintetizada na reunião desses dois homens. Diante de tais circunstâncias, a produção norte-americana “Elvis & Nixon” (2016) se mostrava bastante promissora ao propor a recriação dramática desse fato controverso. Ocorre, entretanto, que a abordagem da diretora Liza Johnson passa bem distante tanto de uma maior profundidade temática quanto de uma narrativa mais inquietante. Roteiro e encenação privilegiam um viés cômico e superficial, sem sugerir maiores leituras sociais e culturais sobre o significado de premissa maior da trama. A cineasta enfatiza mais uma caracterização caricatural a sugerir o ridículo de algumas situações e personagens, num direcionamento que por vezes até chega a ser levemente divertidos, mas nada que vá muito além disso, impressão essa acentuada nas atuações cartunescas e carismáticas de Michael Shannon e Kevin Spacey nos papeis principais.

quinta-feira, novembro 30, 2017

Invasão zumbi, de Yeon Sang-ho ***1/2

Filmes sobre apocalipse zumbi se tornaram bastante recorrentes nos últimos anos. E é claro que o excesso de obras no gênero provocou uma exaustão criativa a um ponto que poucas produções realmente se destacaram por trazer algo de efetivo interesse. Dentro dessas exceções, dá para citar o longa sul-coreano “Invasão zumbi” (2016). Aa rigor não há grandes novidades na forma com que o diretor Yeon Sang-ho conduz a sua narrativa. O que diferencia o filme é uma encenação muito bem azeitada, que combina na medida certa sequências de ação frenéticas e coreografadas com precisão e momentos intimistas entre o contemplativo e o melodrama, além da caracterização visual dos zumbis e da direção de arte de tons pós-apocalipticos comporem um todo imagético de forte impacto sensorial. A concepção estética e temática engendrada por Sang-ho foge daquele padrão asséptico de horror ocidental destinado para grandes plateias. Ou seja, pela sua atmosfera sórdida e pessimista, “Invasão zumbi” se mostra mais em sintonia com os trabalhos referenciais de George Romero do que com produções despersonalizadas e inexpressivas como “Guerra mundial Z” (2013).

quarta-feira, novembro 29, 2017

Câmara de espelhos, de Dea Ferraz ***1/2

O discurso do senso comum, ou da “sabedoria popular” como preferem alguns, é fortemente influenciado por uma opressora doutrinação machista-patriarcal. Nessa vertente de “pensamento”, teorias duvidosas e filosofia de botequim se incorporam no imaginário popular como verdades quase inatacáveis. Uma das mais frequentes delas diz, naquelas generalizações obscurantistas que muita gente adora, que a mulher tem um modo de agir tomado pela emoção e intuição, enquanto o homem seria aquele cujas atitudes revelariam uma maior racionalidade. O grande mote artístico-existencial do documentário “Câmera de espelhos” (2016) é a ácida dissecação desse ideário sócio-cultural, em que a visão crítica da diretora Dea Ferraz não se limita na exposição de sua temática contestatória, mas também no próprio método estético concebido pela cineasta. Não é à toa que em algumas passagens do filme são explicitados as técnicas formais e o próprio direcionamento de conteúdo da obra. É como se Ferraz quisesse evidenciar o seu cartesianismo de maneira contundente, elaborando uma obra tanto marcada pelo rigor de sua execução narrativa quanto pela clareza de suas ideias sobre a política dos sexos. A precisão no delinear de tal concepção narrativa e filosófica, com sutis toques de psicodrama, se contrapõe de maneira brilhante com a hipocrisia e preconceito dos diálogos entre os “personagens” do seu filme. Há algo de perverso e mesmo manipulador na forma com que a diretora extrai algumas perturbadoras constatações dos depoimentos que colhe ao longo do filme, mas tal método se mostra legítimo e eficaz quando se percebe a capacidade de “Câmara de espelhos” revelar com sensibilidade e lucidez uma verdade que a sociedade e a mídia procuram dissimular com revoltante desfaçatez.

terça-feira, novembro 28, 2017

Linha de frente, de Gary Felder **1/2

Filmes de ação com Jason Statham, com raras exceções, praticamente se tornaram um subgênero. Narrativa e trama geralmente obedecem a preceitos básicos e manjados – o protagonista interpretado por Statham é um sujeito meio sorumbático que guarda alguns mistérios em seu passado, algo que tem a ver com o fato dele ser na real um cara muito durão e que manda muita porrada quando incomodado, e o roteiro se desenvolve com as premissas previsíveis que farão com que distribua bordoadas e tiros para quem lhe incomodar. Por vezes, tal receita até dá certo e rende alguns filmes acima da média, mas na maioria das vezes a fórmula cai na mesmice. E esse é o caso de “Linha de frente” (2013). A produção dirigida por Gary Felder insinua em alguns momentos uma caracterização de situações e personagens mais perturbadoras, principalmente quando o vilão vivido por James Franco está em cena. No final das contas, entretanto, são pequenas nuances que aos poucos vão perdendo importância em nome das convenções habituais do gênero mencionadas anteriormente.

segunda-feira, novembro 27, 2017

O melhor professor da minha vida, de Olivier Ayache-Vidal ***

Que o pessoal responsável por fazer as versões de títulos de filmes estrangeiros para português no Brasil tem alguns critérios questionáveis já é mais do que sabido. Mas no caso de “O melhor professor da minha vida” (2017) eles realmente se puxaram. O título escolhido tanto pode atrair ou repelir possíveis espectadores e nos dois casos pela ideia equivocada que dá da abordagem dessa produção francesa dirigida por Olivier Ayache-Vidal, além de estar distante do tom mais sutil e poético do original “grandes mentes”. Em síntese, o longa em questão não se filia aquela linhagem de obras edificantes que mostram professores superando todas as dificuldades em uma sala de aula e dando lições de vidas para os alunos e, por consequência, para a plateia. O filme de Ayache-Vidal está mais vinculado em termos estéticos-temáticos à escola realista da obra-prima “Entre os muros da escola” (2008). O roteiro não apresenta soluções mágicas dentro da trama em que o arrogante professor François Foucault (Denis Podalydès), proveniente de uma escola elitista de Paris, se vê obrigado a dar aulas em um colégio da rede pública da capital. A visão artística e existencial da obra sobre a relação ensino e meio social é marcada pela lucidez amarga, ainda que permita de maneira coerente vislumbrar saídas a partir de uma perspectiva humanista de educação. A concepção formal para contar essa história é simples e tradicional, não tendo o mesmo grau de inventividade e dinâmica estéticas da aludida obra de Laurent Cantet, mas não se rende a truques baratos e consegue se mostrar como uma moldura contundente para as intenções de Ayache-Vidal, com destaque para uma encenação de notável fluidez e para as atuações vigorosas do elenco.

sexta-feira, novembro 24, 2017

Carmen, de Carlos Saura ***1/2

A premissa principal da trama de “Carmen” (1983) é algo manjada, quase apelativa no seu teor melodramático: nos bastidores de uma adaptação flamenca da ópera “Carmen” de Bizet, desenvolve-se um enredo envolvendo paixão e ciúme entre o diretor-coreógrafo e sua principal atriz, em paralelo com a história de temática semelhante da ópera encenada. Na verdade, tal roteiro serve apenas como um pretexto para o diretor Carlos Saura expor na tela aquilo que realmente lhe interessa – as sanguíneas coreografias flamencas, a fusão exuberante dos temas originais de Bizet com o virtuosismo de Paco de Lucía, o rigoroso formalismo baseado no detalhismo cênico e em composições imagéticas exuberantes. Em se tratando de Saura, é claro que se prefere a sua fase setentista baseada na síntese entre crônica intimista-política e narrativa de teor delirante, mas dentro de sua filmografia voltada para a música, “Carmen” é um de seus trabalhos mais contundentes.

quinta-feira, novembro 23, 2017

Crime desorganizado, de Jon Favreau ***

Na trajetória de Jon Favreau como diretor, pode-se perceber uma certa linha conceitual em suas concepções narrativas, mesmo quando atua dentro do esquema dos blockbusters dos grandes estúdios – a de buscar uma releitura vigorosa dos modelos tradicionais do “cinemão” incorporando um viés sardônico típico das produções independentes de onde despontou inicialmente. “Crime desorganizado” (2001) representa uma obra de transição na filmografia do cineasta – trata-se de um longa-metragem no gênero comédia policial ainda da época em que Favreau era mais atuante dentro do universo “B” do cinema norte-americano, sendo que alguns anos depois se tornou o diretor responsável pelo megassucesso “Homem de ferro” (2008). “Crime desorganizado” centra a sua trama no ambiente de picaretas e bandidos pé-de-chinelo, com um roteiro que privilegia a comédia de erros, situações absurdas, diálogos sardônicos e alguns momentos de violência entre a crueza e o cartunesco. Nada de muito original, Scorsese e Tarantino já fizeram tudo isso de forma bem mais impactante, mas ainda assim a dinâmica narrativa engendrada por Favreau consegue ser envolvente, extraindo ainda caracterizações carismáticas de seu elenco (com destaque para o próprio Favreau e para o habitual parceiro Vince Vaughn).

quarta-feira, novembro 22, 2017

Liga da Justiça, de Zack Snyder *

Se “Mulher Maravilha” (2017) representou um certo raio de esperança para que as adaptações cinematográficas dos quadrinhos da DC pudessem engrenar em algo minimamente convincente, “Liga da Justiça” (2017) prova que as coisas continuarão na mesma. Estão lá todos os elementos habituais do padrão Zack Snyder de produção: a ausência de uma narrativa fluente, sequências de ação medíocres, concepção visual derivativa, roteiro beirando o simplório e repleto de diálogos cretinos, caracterizações de personagens entre o inexpressivo e o constrangedor (Ben Affleck passa a constante sensação de que gostaria de estar em outro lugar). Ou seja, nada muito diferente das porcarias anteriores “Superman – O homem de aço” (2013), “Batman vs. Superman: A origem da justiça” (2016) e “Esquadrão suicida” (2016). É visível que a parceria Warner/DC quer emular algumas das estratégias artísticas e comerciais dos Estúdios Marvel, mas faz isso de maneira descuidada e puramente oportunista. Assim, se o espectador quiser ver algum filme interessante no gênero aventura de super-heróis, é bem melhor ficar com “Thor: Ragnarok”, que ainda está em cartaz e é bem mais divertido, consistente e ousado do que essa tranqueira chamada “Liga da Justiça”, obra que não faz jus à importância do supergrupo da DC na história dos “comics” (para aqueles que duvidam disso, recomendo fases sensacionais da Liga escritas por Keith Giffen e Grant Morrison).

terça-feira, novembro 21, 2017

O outro lado da esperança, de Aki Kaurismäki ***

O que diferencia “O outro lado da esperança” (2017) de outras produções dirigidas pelo finlandês Aki Kaurismäki é o fato de ser a obra do cineasta com a trama mais escancaradamente sócio-política. Vários detalhes do roteiro apresentam forte ressonância com alguns dos principais temas que dominam a sociedade europeia – a crescente xenofobia cultural, a cada vez mais intensa migração de árabes para o continente em virtude de conflitos bélicos em seus países natais, a onda de desemprego que joga a economia na informalidade e na precariedade. Há um forte tom panfletário de crítica social na abordagem de Kaurismäki, mas sem que isso afete o estilo habitual do diretor. Pelo contrário – tais aspectos se complementam com bastante naturalidade e coerência. Dessa forma, estão lá na narrativa sempre presente a comicidade baseada numa encenação austera, a idiossincrasia ascética na caracterização de situações e personagens, a empatia que brota de econômicos truques narrativos, os belos números musicais que irrompem de maneira insólita, a atmosfera entre o realismo e o poético que por vezes desconcerta o espectador. A conjunção de tais aspectos artísticos acaba gerando alguns momentos memoráveis, principalmente na ambígua sequência final, em que o trágico e o tom esperançoso convivem em uma estranha harmonia.

segunda-feira, novembro 20, 2017

A conexão francesa, de Cédric Jimenez **1/2

Parecia promissor: “A conexão francesa” (2014) tem como base principal de sua trama a recriação dos fatos reais que inspiraram o clássico “Operação França” (1971). As boas expectativas, entretanto, ficaram só na intenção. A produção dirigida por Cédric Jimenez é uma obra no gênero policial que fica sempre no campo do derivativo – é bem feito e por vezes até envolve o espectador, mas está muito longe da criatividade e ousadia estéticas da obra-prima de William Friedkin. Encenação e montagem são excessivamente convencionais, com uma atmosfera que por diversos momentos recai no melodrama banal. A decepção é ainda maior quando se lembra que o cinema policial francês contemporâneo já apresentou trabalhos bem mais memoráveis como “36” (2004) e “Inimigo público nº 1 – Risco de morte” (2008).

sexta-feira, novembro 17, 2017

Diabo no corpo, de Marco Bellocchio ***1/2

Em boa parte da filmografia do diretor italiano Marco Bellochio, sexo e política se ligam por conexões complexas e indissociáveis. Por vias ora tortuosas, ora de sutil delicadeza, o erotismo adquire tanto contorno libertários quanto de um discurso ideológico difuso. Tudo isso fica evidente em “Diabo no corpo” (1986) – a encenação precisa e descarnada e a crueza dos embates sexuais acentuam uma concepção artística e existencial marcada por uma visão entre o amargo e o irônico dos dilemas e descaminhos da política italiana nas últimas décadas do século XX. Assim, sexo beirando o explícito e a temática espinhosa do terrorismo político parecem caminhar lado a lado com uma naturalidade bizarra e por vezes até encantadora.

quinta-feira, novembro 16, 2017

Condado macabro, de Marcos DeBrito e André de Campos Mello *

Onde está o caminho para o horror nacional? Bem, algumas produções até indicaram caminhos interessantes, vide obras como “Mangue negro” (2008), “Quando eu era vivo” (2014) e “O diabo mora aqui” (2015), que buscaram uma síntese entre fatores estéticos e temáticos tradicionais do gênero com singulares elementos regionais e culturais. Ou seja, houve em tais filmes a procura de uma linguagem própria que extravasasse o simples reciclar sem imaginação de clichês narrativos. Pois “Condado macabro” (2015) vai justamente na direção oposta dos longas mencionados – os diretores Marcos DeBrito e André de Campos Mello parecem dispostos apenas em copiar/homenagear alguns de seus mestres ou influências preferenciais (Rob Zombie, “O massacre da serra elétrica”, slasher movies oitentistas, torture porn contemporâneo, palhaços escrotos, referências pop a la Tarantino) na cara-de-pau e com um formalismo desleixado de dar nos nervos. Pode ser que alguns truques estilísticos e uma certa atmosfera irônica indiquem uma obra que não se pretende levar tão a sério, mas isso acaba soando apenas como desculpa esfarrapada para justificar uma realização tão indulgente. No mais, prevalecem detalhes patéticos como escolhas equivocadas no elenco (o que dizer de atores e atrizes trintões interpretando adolescentes?) e um roteiro desconjuntado e repleto de situações absurdamente cretinas (destaque maior para o momento quando a turminha de “jovens” descobre o primeiro assassinato e na hora da fuga perde longos minutos arrumando as malas!).

terça-feira, novembro 14, 2017

No intenso agora, de João Moreira Salles ***1/2

Em “Santiago” (2017), o documentarista João Moreira Salles construía uma narrativa intimista vinculada a uma temática de caráter bastante pessoal a partir de registros concebidos e realizados originários de filmagens próprias. Já em “Últimas conversas” (2014), o derradeiro longa-metragem de Eduardo Coutinho, Salles foi responsável por fazer os arremates finais no material coletado por Coutinho, principalmente no que diz respeito à montagem, tendo em vista a morte desse último. De certa forma, “No intenso agora” (2017) parece evocar um cruzamento entre os dois filmes mencionados anteriormente: a partir de registros audiovisuais e imagens exclusivamente de terceiros, o cineasta constrói a sua narrativa marcada pelo subjetivismo e pessoalidade. O trabalho de edição é engenhoso e delicado – filmagens amadoras, trechos de documentários, passagens de produções de caráter institucional, partes de reportagens, tudo vai se juntando e relacionando tendo como princípio uma visão artística e existencial delimitada com sensibilidade. Essa visão se personifica na narração de própria voz de Salles. O tom monocórdio da locução e o texto que sintetiza relato histórico e reminiscências pessoais formam um conjunto perturbador e ambíguo que dá um sentido particular desconcertante para as imagens e sons que brotam da tela. A impressão sensorial é de um longo devaneio de Salles que mistura melancolia, desilusão, nostalgia, ironia amarga e uma sutil e vaga noção de deslumbramento. Pode-se argumentar que há um tom vacilante e difuso na narrativa que sugira um direcionamento ideológico, mas a verdade é que “No intenso agora” não tem um propósito primordial de convencer alguém de alguma coisa. Está mais para a tentativa de materialização fílmica de determinados sentimentos e desejos que talvez nem o próprio Salles saiba direito do que se trata. E é nessa imprecisão nebulosa de intenções que reside o encanto de seu documentário.

segunda-feira, novembro 13, 2017

Vazante, de Daniela Thomas ***

Ao se assistir à “Vazante” (2017), dá para entender um pouco a polêmica que o filme de Daniela Thomas vem causando. O retrato que faz da escravidão do Brasil no século XIX causa certo teor de perturbação por uma abordagem emocional e histórica marcada pela sobriedade e ausência de uma delimitação mais clara entre o “bem” e o “mal” – ou seja, não dá para dizer que se trata de uma trama com mocinhos e bandidos. O retrato que o roteiro propõe mostra o regime escravista entranhado na sociedade como algo normal, corriqueiro. Na trama, as famílias de fazendeiros que possuem escravos não apresentam uma caracterização de sádicos ou dementes racistas, mas sim de pessoas normais, eventualmente atormentadas, que aceitam e se valem daquela situação de exploração desumana como algo normal e aceitável no seu cotidiano. Mesmo na ala dos escravizados predomina um teor de resignação, com eventuais situações de revolta. Na verdade, essa visão da escravidão como algo normal e corriqueiro é que dá a verdadeira dimensão assustadora da situação e ajuda melhor a explicar como o racismo no Brasil apresenta todo esse contexto de hipocrisia e crueldade na sociedade contemporânea. Voltando ao filme, também é um acerto o trabalho minucioso de direção de arte e fotografia em preto e branco que compõem um registro audiovisual marcado tanto pelo áspero realismo quanto por uma beleza melancólica no seu sutil registro que vai das grandes tomadas de paisagens naturais até enquadramentos e encenação de caráter intimista. O que atrapalha o longa-metragem de Thomas é que no terço final da narrativa a obra se converte num gasto melodrama envolvendo adultérios e gravidezes suspeitas que por vezes beiram o novelesco banal, ainda que guardem um simbolismo por vezes inquietante.

sexta-feira, novembro 10, 2017

Dois é bom, três é demais, de Anthony e Joe Russo **

Os créditos na direção de “Dois é bom, três é demais” (2006) até sugerem algo de promissor. Afinal, trata-se dos irmãos Anthony e Joe Russo, responsáveis por um dos melhores filmes da Marvel Studios, “Capitã América: O soldado invernal” (2014). O resultado final dessa comédia, entretanto, deixa bastante a desejar. Não chega a ser exatamente ruim – há alguns momentos daquele humor grosseiro que efetivamente rendem algumas risadas, além de uma visão mais crítica sobre questões comportamentais e mesmo intimistas dentro da sociedade norte-americana. Tais aspectos positivos, entretanto, são sufocados pelo convencionalismo excessivo e derivativo da forma com que a narrativa é conduzida, além de um roteiro bastante conservador em suas resoluções. Afinal, o que dizer de uma conclusão em que um eterno desajustado acaba se enquadrando nos padrões ao se descobrir como um excelente palestrante de autoajuda?

quinta-feira, novembro 09, 2017

Terra selvagem, de Taylor Sheridan ***

Na ainda pequena amostragem que já se teve das obras do diretor e roteirista Taylor Sheridan nas salas de cinemas, dá para dizer que ele segue uma certa linhagem autoral. Em “Sicário” (2015) e “A qualquer custo” (2016), produções que contaram com roteiros de sua autoria, pode-se perceber uma expressiva síntese entre os preceitos do cinema de ação e abordagem e atmosfera mais reflexivas, além de tramas que trazem em seus respectivos subtextos uma sutil visão crítica sobre os descaminhos morais e sociais da sociedade norte-americana contemporânea. Num contexto ainda mais amplo, são filmes que revelam ainda uma releitura contemporânea dos gêneros policial e faroeste. Em “Terra selvagem” (2017), longa-metragem de estreia de Sheridan como diretor, tais características das mencionadas obras anteriores voltam a se manifestar, sem, contudo, apresentar um foco artístico tão preciso. Há uma narrativa envolvente, a memorável fotografia que valoriza a forte beleza plástica das amplas paisagens geladas que servem de cenário para a trama, sequências de ação muito bem dirigidas (o brutal tiroteio final é particularmente antológico), encenação que por vezes cria momentos de sufocante tensão psicológica e uma adequada trilha sonora climática composta e executada por Nick Cave e Warren Ellis (ainda que dê a impressão de ser um tanto derivativa de outros temas mais consistentes que eles fizeram para filmes anteriores). O que incomoda em “Terra selvagem” é um excesso de cenas marcadas por um forçado teor contemplativo e solene e um roteiro que força a barra em diálogos filosóficos de almanaque, o que faz com que a narrativa não seja tão equilibrada quanto as de “Sicário” e “A qualquer custo”.

quarta-feira, novembro 08, 2017

Na praia à noite sozinha, de Hong Sang-soo ***1/2

Os filmes do diretor sul-coreano Hong Sang-soo apresentam elementos narrativos que são recorrentes. Não se trata de acomodação artística, mas sim de depuração de uma linguagem cinematográfica muito peculiar. Isso fica evidente em “Na praia à noite sozinha” (2017). Nessa obra mais recente, estão lá aqueles aspectos formais e temáticos que já constavam em seus filmes anteriores – os planos narrativos que se alternam entre o real e o imaginário, a encenação de fluidez insólita e cativante (evidentes, por exemplos, nas sequências em que os personagens dialogam ao redor de uma mesa jantando ou bebendo), o estilo de filmar e editar que sugere uma síntese particular entre a aparente rusticidade e a sofisticação, o roteiro que alude ao universo do cinema como um de seus principais cenários. Dentro desse conjunto estético-textual, a narrativa faz com que espectador embarque em um contexto sensorial de estranho encanto, em que as situações da trama se sucedem quase como se fosse um sonho, em que algumas soluções marcadas pelo absurdo acabam ganhando uma notável coerência existencial-artística. Assim, cenas parecem se repetir com sutis variações, assim como as próprias noções de espaço e tempo se mostram elásticas, mas o encanto de tais excentricidades é filtrado dentro de um formato de crônica cotidiana. Ou seja, parece complicado, mas no final das contas é de uma simplicidade desconcertante.

terça-feira, novembro 07, 2017

O estigma de Satanás, de Piers Haggard ***

Na época de seu lançamento, “O estigma de Satanás” (1971) já tinha um certo caráter anacrônico. Vinculado àquela escola de horror delineada pela produtora inglesa Hammer, o filme do diretor Piers Haggard traz realmente a impressão de uma obra datada, principalmente pela formatação tradicional de seu roteiro, pela fleuma de sua encenação e pela sua atmosfera entre o gótico e o pastoril. Ainda assim, esse passadismo por vezes tem algo atraente na forma com que a sua narrativa se espraia na tela, sugerindo uma síntese entre o encantador e o perturbador – é de se considerar que o longa capricha mais na violência e violência gráficas do que os trabalhos da Hammer. Algumas trucagens e mesmo detalhes da maquiagem e caracterização visual jogam o filme naquela zona nebulosa do humor involuntário, impressão essa acentuada por algumas passagens da trama excessivamente maniqueístas. Por outro lado, há uma estranha ambientação difusa e ambígua em determinadas sequências, principalmente naquelas envolvendo rituais de magia negra, além de um sutil subtexto a sugerir uma crítica a um ordenamento religioso patriarcal e opressor. Por mais que a conclusão da produção evoque a velha máxima do “bem vencendo o mal”, há um traço de melancolia amarga na forma com o representante da ordem e da moral do vilarejo interiorano reprime e esmaga o grupo de jovens e deserdados cultores do “mal”.

segunda-feira, novembro 06, 2017

Thor: Ragnarok, de Taika Waititi ***1/2

Em alguns posts que escrevi neste blog falando sobre filmes que adaptavam o universo das HQs de super-heróis para as telas, foi mencionada a necessidade das obras do gênero em questão em procurar preservar uma certa essência dos quadrinhos originais nessa transposição de uma mídia para outra visando resgatar aquilo que personagens e histórias dos “comics” têm de interessante e peculiar que justificam a sua perenidade. Pois “Thor: Ragnarok” (2017) acaba sendo um desmentido enfático dessa tese! O diretor neozelandês Taika Waititi pega figuras, conceitos e outros elementos diversos do clássico universo da Marvel e os recria num contexto diferente e algo delirante, mas sempre transparecendo uma coerência artística-existencial desconcertante. Tentando resumir, dá para dizer que esse novo capítulo das aventuras do mais famoso deus de Asgard pega toda aquela solene mitologia nórdica típica do protagonista e a enquadra numa lógica estética e temática que remete diretamente a produções de ficção científica barata dos anos 80 (impressão essa acentuada pela divertida e esquisita trilha sonora baseada em tecnopop concebida por Mark Mothersbaugh, ex-integrante da banda new wave Devo), o que coloca o filme diretamente em sintonia com a franquia de “Os guardiões da galáxia”. Tal orientação artística, entretanto, não faz com que “Thor: Ragnarok” caia na mera paródia, ainda que haja um considerável número de cenas e diálogos movidos a piadinhas infames. Na narrativa, há tudo aquilo que um bom filme de super-heróis deveria ter: cenas de ação coreografadas e encenadas com precisão e detalhismo memoráveis, concepção visual de grafismo expressivo e criativo, sequências com forte tensão dramática e personagens bem construídos e carismáticos. Ou seja, uma ótima surpresa para aqueles que tinham ficado decepcionados com a tendência para o romantismo xaroposo dos dois primeiros filmes do personagem. Já para quem conhecia o longa anterior de Waititi, a pérola cult “O que fazemos na sombra” (2014), excêntrica comédia a tirar um sarro dos clichês habituais dos filmes de vampiros, acaba não sendo uma surpresa tão grande assim, ainda que “Thor: Ragnarok” revele uma forte evolução artística por parte de Waititi.

quarta-feira, novembro 01, 2017

Meu amigo hindu, de Héctor Babendo *

O cineasta Héctor Babenco é um nome muito importante na história do cinema brasileiro. Além de ter dirigido obras fundamentais da filmografia nacional, como “Lúcio Flávio – Passageiro da agonia” (1977) e “Pixote – A lei do mais fraco” (1981), também foi o responsável por produções internacionais memoráveis como “Ironweed” (1987) e “Brincando nos campos do senhor” (1991). Dessa forma, é evidente que causa bastante frustração saber que o seu filme-testamento seja um longa-metragem tão decepcionante quanto “Meu amigo hindu” (2015). Na verdade, os trabalhos imediatamente anteriores de Babenco, “Carandiru” (2003) e “O passado” (2007), já mostravam um considerável declínio em termos de inspiração criativa, mas nada também que chegasse aos picos de ruindade do trabalho derradeiro do diretor. Resumindo, trata-se de uma egotrip narcisista e autoindulgente do diretor, concebida e elaborada sem o menor traço do cuidado estético-narrativo e da consistente densidade psicológica que eram marcantes em seus melhores filmes. É claro que dá para entender que Babenco quisesse transpor para as telas o seu drama pessoal real de um doloroso tratamento para uma grave doença e o consequente processo de desagregação de sua vida pessoal decorrente desse fato, além de mostrar também o seu reerguimento como indivíduo diante de tais circunstâncias difíceis e complexas. Um artista tem o direito de manifestar suas obsessões da forma como quiser, e no caso do diretor dá para dizer que a sua história tem um alcance universal. O verdadeiro equívoco de “Meu amigo hindu” é que essa viagem intimista ganha um tratamento formal desleixado e derivativo, acentuado ainda mais por escolhas de produção tremendamente esdruxulas – para começar, por melhor ator que seja Willem Dafoe, por que escolher um ator norte-americano para o papel de um protagonista brasileiro, numa trama que se passa no Brasil, com demais personagens vividos por um elenco brasileiro que fala em inglês? E com o complemento de que quando a história passa a se situar nos Estados Unidos aparecem novamente atores brasileiros interpretando norte-americanos com um inglês macarrônico? E a partir do momento que Bárbara Paz entra em cena interpretando a si própria, a produção toma outro rumo. E para pior, caindo no francamente ridículo, beirando a comédia involuntária.

terça-feira, outubro 31, 2017

Rendez-vous, de André Techiné ***1/2

Os filmes do diretor André Techiné geralmente parecem se configurar como sóbrios contos morais. A grande questão, entretanto, é que essa moral obedece a uma lógica ambígua e particular. “Rendez-vous” (1985) é um exemplar enfático dessa tendência do cineasta francês. Como principal mote aparente de sua trama, desenvolve-se um conturbado triângulo amoroso em meio ao cenário artístico parisiense. Só que um dos vértices de tal relacionamento é de um atormentado ator que morre logo no terço inicial do filme. Nesse sentido, a narrativa concebida por Techiné vai se equilibrando numa tênue linha entre uma ambientação naturalista e uma atmosfera fantástica, como se a convivência entre esses dois planos beirasse o prosaico. Por trás da estranheza dessa história há ainda um subtexto sutil sobre a natureza da arte – a forma com que a protagonista Nina (Juliett Binoche) amadurece entre os descaminhos de sua vida amorosa também serve como substrato da autodescoberta de suas potencialidades como atriz. As evidentes implicações psicológicas e simbólicas do roteiro recebem um tratamento formal misto de rigor e fluidez por parte de Techiné, centrando grande força no vigor de sua encenação e na estética precisa da fotografia e edição.

segunda-feira, outubro 30, 2017

O formidável, de Michel Hazanavicius ***

Em um primeiro momento, a primeira coisa que salta aos olhos ao assistir a “O formidável” (2017) são algumas brincadeiras e referências estéticas concebidas pelo diretor Michel Hazanavicius que perpassam a narrativa que evocam sequências memoráveis de produções marcantes dirigidas por Jean-Luc Godard, o protagonista da trama do filme baseada em fatos reais. Por vezes tais truques são pertinentes e engraçados, em outros momentos são apenas pueris. Também é de se destacar que a produção se estrutura quase como se fosse uma comédia romântica, com um roteiro que enfatiza situações e soluções típicas do gênero. Tais detalhes temáticos e narrativos, entretanto, representam uma superfície enganadora sobre as reais intenções da obra, pois a efetiva força de “O formidável” está no contundente subtexto do seu roteiro e no vigor de sua encenação, fatores esses ainda reforçados pele interpretação sanguínea de Louis Garrel no papel de Godard. Em meio aos desacertos, contradições e dilemas do personagem principal com as causas e consequências do maio de 1968 em Paris está uma arguta observação sobre o papel de um artista perante a sociedade em que está inserido. No meio de cobranças para se mostrar acessível para os seus admiradores, em cumprir expectativas advindas da condição de ser um gênio cinematográfico “consagrado” e também em se enquadrar nos padrões de comportamento “civilizado” de uma sociedade pequeno-burguesa, o que fica realmente estabelecido como o grande mote da trama é a necessidade de reinvenção e apreensão da realidade por parte do artista diante de um evento histórico tão complexo e perturbador quanto as revoltas estudantis da época. Nesse aspecto, o filme de Hazanavicius não facilita as coisas – Godard quase sempre é visto pelo olhar da jovem e algo ingênua esposa Anne Wiazemsky (Stacy Martin), sugerindo-se uma personalidade irascível, geniosa e arrogante por parte do cineasta, mas que sutilmente esconde um sentimento de inconformismo e da busca de preservar o seu senso humanista perante hipócritas cobranças e acusações daqueles que o cercam. A melancólica conclusão de “O formidável” sublinha com notável coerência e precisão as verdadeiras ambições artísticas e existenciais do longa-metragem de Hazanavicius.

sexta-feira, outubro 27, 2017

Mishima - Uma vida em quatro capítulos, de Paul Schrader ****

Daquela geração/cena de cineastas e roteiristas que despontaram no final dos anos 60 e se consagraram de vez na década de 1970, a chamada “Nova Hollywood”, Paul Schrader é o que teve trajetória e estilo mais singulares. Enquanto seus colegas se dedicaram a estética e narrativa que sintetizavam a linguagem clássica do cinema norte-americano da primeira metade do século XX e as inovações artísticas das correntes europeias mais prementes da época, principalmente a Nouvelle Vague, Schrader enveredou para uma releitura bastante particular do cerebralismo do Robert Bresson e do minimalismo expressivo de Yasujiro Ozu. “Mishima – Uma vida em quatro capítulos” (1985) é um exemplar enfático de tal tendência artística de Schrader. Ao invés de optar pela convencional cinebiografia estilo “resumão”, o diretor preferiu fazer um verdadeiro tratado artístico-existencial sobre o polêmico escritor japonês Yukio Mishima, relacionando alguns eventos marcantes de sua vida com trechos de suas principais obras, sugerindo uma bela e estranha simbiose entre a “realidade” do criador e o universo ficcional que criou. O resultado final é desconcertante, com Schrader conciliando com naturalidade e bizarra coerência um plano narrativo de seco corte naturalista com sequencias de tinturas entre o onírico e o alegórico, além de preservar com sensibilidade uma temática complexa em que homossexualidade, culto ao apolíneo e nacionalismo convivem em uma harmonia perturbadora.

quinta-feira, outubro 26, 2017

Quatro amigas e um casamento, de Leslye Headland **

As comédias norte-americanas contemporâneas que enveredam para a temática do retrato comportamental de gerações diversas (jovens, adultos e afins) parecem sempre andar no fio da navalha. Por vezes, aparecem algumas produções que realmente trazem uma visão lúcida sobre contradições e dilemas típicos dos tempos que vivemos, em meio aos habituais episódios de piadas grosseiras e escatológicas, tendo um resultado final artístico bem memorável – nessa linha, daria para citar alguns trabalhos mais recentes dos irmãos Farrelly. E também há o caso de um número considerável de filmes que caem na mais pura irrelevância. “Quatro amigas e um casamento” (2012) fica no meio caminho. Na primeira metade do longa, a narrativa até insinua uma visão sarcástica, por vezes até amarga, sobre os desencontros sentimentais e alguns padrões morais hipócritas da sociedade ocidental, com algumas cenas interessantes em termos de encenação e boas situações cômicas. Na parte final do roteiro, entretanto, tudo se formata em soluções convencionais e mesmo moralistas, em meio a um formalismo derivativo, frustrando as expectativas promissoras iniciais.

quarta-feira, outubro 25, 2017

Bom comportamento, de Ben e Joshua Safdie ***1/2

Por vezes, principalmente em seu terço inicial, a estrutura narrativa e a trama de “Bom comportamento” (2017) sugerem um derivado do gênero suspense-policial naquela linha de uma história envolvendo um grande plano de roubo ou golpe semelhante. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, a verdadeira natureza do filme dirigido por Bem e Joshua Safdie vai se manifestando de maneira contundente e perturbadora. A trajetória do assaltante Connie (Robert Pattinson) para tentar libertar o irmão Nick (Ben Safdie) após este ter sido preso durante a fuga de um roubo à banco frustrado mais tem a ver com uma crônica sardônica sobre desajustados do que propriamente com um thriller de ação. Ainda assim, a forma com que os Safdie conduzem a produção privilegia a tensão e a encenação frenética. A uma certa altura da trama, fica evidente que as escolhas de Connie na busca do seu objetivo obedecem a uma lógica aleatória e equivocada, típica de um habitual perdedor. Quando entra em cena o esquisito marginal Ray (Buddy Durress), o roteiro e atmosfera de “Bom comportamento” ficam ainda mais configurados dentro de uma síntese que oscila entre o melancólico e o delirante – não à toa, Connie e Ray embalam suas correrias e mancadas com doses generosas de álcool e LSD, fazendo com que o espectador embarque em um amargo e longo pesadelo com direito a desconcertantes toques cômicos. O formalismo articulado pelos diretores acentua com precisão essa ambientação marcada pela crueza e por um sutil humor negro – há uma clareza imagética que realça cada gesto e expressão dos personagens, amplificando tanto a assustadora brutalidade gráfica de algumas cenas quanto a densidade psicológica e a frieza emocional de outras sequências. Além disso, conta-se com alguns detalhes cênicos que revelam notável sintonia com o espírito da obra, como as vigorosas interpretações de Pattinson e Duress e a trilha sonora que combina timbres oitentistas e nuances eletrônicas.