terça-feira, dezembro 30, 2014

Ouija - O jogo dos espíritos, de Stiles White *


Reparem nas linhas gerais da progressão da trama de “Ouija – O jogo dos espíritos” (2014): a protagonista Laine (Olivia Cooke) se sente assombrada pelo fantasma de uma amiga, decide contatá-la através do jogo do título na casa em que a falecida morava, acaba despertando espíritos malignos que perseguem a ela e seus amigos, alguns deles são enganados e mortos, a protagonista descobre que tais espíritos eram de pessoas que moravam na casa da amiga morta e na conclusão há uma batalha épica para exorcizar todos esses fantasmas. Ou seja, dá para sacar que é um roteiro bem manjado, o que por si só não dá para dizer que seria uma garantia de ruindade para essa produção. O problema maior, entretanto, é que o diretor Stiles White é tão mecânico e sem inspiração ao acumular clichês temáticos e chavões formais que “Ouija” não vai além de alguns sustos básicos e mequetrefes. Faltou uma condução de narrativa mais sanguínea e uma estética mais ousada capazes de extrair alguma efetiva tensão no meio de tantas obviedades.

segunda-feira, dezembro 29, 2014

Mommy, de Xavier Dolan ***1/2


Uma das coisas que mais impressiona no cineasta canadense Xavier Dolan é a maturidade humanista das abordagens existenciais de seus filmes, além do extraordinário vigor narrativo de tais produções. Isso já era evidente em sua obra de estreia, “Eu matei a minha mãe?” (2009), lançado quando ele tinha apenas 19 anos, e agora sua marca artística fica ainda mais indelével em “Mommy” (2014). Assim como no seu debut, nesse filme mais recente a trama se concentra num enfoque intimista e familiar, mas que também em seu subtexto traz uma visão bastante coerente e ácida sobre as relações humanas no mundo moderno. A encenação proposta por Dolan é um estranho misto entre atribulados embates físicos e sutis nuances psicológicas. Dentro dessa complexa e intensa concepção formal/temática, revela-se fundamental o esmerado trabalho de direção de atores com o trio protagonista em composições dramáticas que variam com selvagem naturalismo entre a contenção emocional e explosões de ira, alegria e sensualidade.

terça-feira, dezembro 23, 2014

Ultraje: Muito além, de Takeshi Kitano ***1/2


Takeshi Kitano fazendo continuação de um de seus filmes não é algo exatamente habitual. Ainda mais de “Ultraje” (2010), um de seus melhores trabalhos. “Ultraje: Muito além” (2010), a segunda parte da saga dos mafiosos nipônicos, não tem a mesma intensidade formal da primeira produção, mas mesmo assim é uma obra de peso que se coloca muito acima da média do que se faz no cinema policial contemporâneo. Kitano se utiliza novamente de um roteiro de variações mínimas, cujo mote principal está nas disputas brutais e insidiosas entre clãs de criminosos. A força de suas concepções artísticas está na construção de atmosferas secas e desoladas, na violência descarnada de algumas seqüências, no extraordinário trabalho de composição cênica, na estranha ironia tipicamente nipônica de Kitano. Tudo parece previsível na trama, mas mesmo assim o espectador se sente surpreendido e atraído pelas noções perversas e trágicas que escorrem de forma abundante da narrativa sangrenta engedrada pelo cineasta. E a surpreendente conclusão do filme acentua a sensação de desconcerto, quando num único ato brutal emana uma inesperada aura de conto moral.

segunda-feira, dezembro 22, 2014

O Hobbit: A batalha dos cinco exércitos, de Peter Jackson ***


Vi “O Hobbit: A batalha dos cinco exércitos” (2014) numa projeção 3D HFR. Não costumo destacar nos meus comentários sobre filmes a condição tecnológica na qual os assisti. Mas na produção em questão isso acaba sendo inevitável. A tecnologia que mencionei dá uma impressão esquisita, de como se estivéssemos vendo um filme no cinema com a textura de imagem de televisão. Nessas condições, as trucagens digitais que grassam por praticamente toda a metragem da obra de Peter Jackson não têm aquele realismo e naturalidade que eram prementes tanto nos outros episódios da franquia quanto em toda a trilogia de “O senhor dos anéis”. Por vezes, o resultado imagético aparenta muito mais de um game do que de um filme propriamente dito. Ou seja, aquilo que vinha sendo o grande mérito dos filmes anteriores, o formalismo rebuscado concebido por Jackson, acaba não tendo o mesmo destaque. Ainda sim, é uma obra que dentro do gênero da aventura cinematográfica consegue se colocar acima da média. Por mais que o roteiro tenha seus excessos melodramáticos e chafurde em alguns clichês épicos, a narrativa ainda é capaz de gerar tensão e mesmo encantar na sua overdose de cabeças decepadas, construções ardendo em chamas, explosões e corpos perfurados, além de alguns personagens apresentarem dimensão dramática e construção psicológica mais acuradas. Ou seja, uma fantasia épica de um Peter Jackson em entressafra tem mais estofo e substância que os “Percy Jackson” ou “Jogos vorazes” da vida...

terça-feira, dezembro 09, 2014

Um homem misterioso, de Anton Corbjin ****


A vasta experiência do diretor Anton Corbjin como fotógrafo se reflete de forma magnífica em seus filmes. “Um homem misterioso” (2010) é uma prova indelével disso. As variações da trama são minimalistas, por vezes até bastante previsíveis. A força dessa produção está justamente na construção de atmosferas e na encenação detalhista, que faz com que a obra tenha um clima de tensão permanente. O subtexto é óbvio – quando o protagonista, o implacável matador de aluguel Jack (George Clooney), entra em crise existencial e se apaixona, isso implica na sua inexorável queda. Ainda sim, Corbjin estabelece um fatalismo perturbador, fazendo com que “Um homem misterioso” ganhe a aura de uma tragédia clássica. Para isso, o cineasta se vale de uma notável capacidade de composição de cena, tanto em tomadas fixas cujos enquadramentos expressam uma força imagética memorável quanto nas cenas de ação elegantemente coreografadas. A sobriedade da abordagem emocional e a formalismo classudo concebidos por Corbjin fazem lembrar a produção francesa “O samurai” (1967), uma das grandes obras-primas do gênero policial.

segunda-feira, dezembro 08, 2014

Meninos de Kichute, de Luca Amberg *


O gênero memorialista infantil, em que a trama se concentra em episódios de infância de um protagonista, é bastante recorrente no cinema. E pode parecer até um recurso manjado utilizar esse tipo de temática para ganhar a simpatia das plateias. Isso não quer dizer, entretanto, que de vez em quando não possa aparecer uma obra de relevância dentro do gênero, como é o caso do recente e extraordinário “O verão do Skylab” (2011), obra singular na sua combinação de narrativa fluente, roteiro bem amarrado, senso de humor afiado e atmosfera encantadora. Nada disso aparece em “Meninos de Kichute” (2010) – parece que o diretor Luca Amberg pensou que o simples fato de mostrar crianças fazendo peraltices e dizendo umas bobagens seria capaz de fazer de sua obra algo memorável. Não há vigor e inspiração na encenação proposta por Amberg, apenas uma narrativa trôpega, cuja trama se revela um compêndio de lugares comuns sem graça. Até a crítica que se faz a repressão religiosa no filme soa mecânica e mal explorada. Poderia se dizer que por ser Amberg um diretor estreante não daria para ser tão exigente com “Meninos de Kichute”, mas Truffaut em seu longa de estréia, “Os incompreendidos” (1959), gerou uma obra-prima sobre a infância e adolescência...

sexta-feira, dezembro 05, 2014

Os amigos, de Lina Chamie **


O documentário “São Silvestre” (2013), dirigido por Lina Chamie, foi uma das mais gratas surpresas do cinema nacional nos últimos anos na sua combinação de esporte, música e encenação insólita. Assim, “Os amigos” (2013), outra recente obra de Chamie, acaba sendo uma decepção, tanto pela comparação que se faz com a produção anterior quanto pelos seus supostos méritos artísticos. É claro que se pode perceber uma louvável ambição artística da cineasta ao estruturar sua narrativa aos moldes do clássico literário “A Odisséia” de Homero dentro de uma ambientação moderna e urbana, além de rechear sua encenação com toques intelectuais sofisticados, indo de boas escolhas nos temas musicais e passando por referências literárias e teatrais. Chamie não se contentou também com uma encenação naturalista, demonstrando ousadias estéticas na utilização de trucagens visuais e desvios para o cinema fantástico. Na realidade, entretanto, o excesso de pretensão e truques formais descamba para uma narrativa afetada e truncada – pode-se eventualmente gostar de alguma sacada cultural do filme, mas a demasia nos artifícios de linguagem poucas vezes consegue efetivamente cativar o espectador, que pouco se sente envolvido pelas situações e personagens da trama.

quinta-feira, dezembro 04, 2014

O pequeno fugitivo, de Morris Engel e Ruth Orkin ***1/2



Dizer que “O pequeno fugitivo” (1953) parece distante daquilo que se faz atualmente no cinema pode até ser correto, mas também é impreciso. Afinal, o filme em questão parece algo fora do tempo e espaço em relação a qualquer época. A linguagem estética adotada pelos diretores Morris Engel e Ruth Orkin encontra bastante ressonância naquele estilo de fotografia naturalista, em que o preto-e-branco enfatizava um misto entre a simplicidade, o sórdido, o excêntrico e o irônico no registro de tipos nada glamorosos dos grandes centros urbanos. A estrutura narrativa engedrada por Engel e Orkin é marcada pela concisão e eficiência – ao usar técnicas documentais na encenação de uma história ficcional, eles conseguem a proeza de fazer uma estranha e fascinante síntese entre a formatação naturalista e o inesperado tom fabular. Isso porque a trama é perpassada em boa parte de sua duração pelo olhar infantil do protagonista Joey (Richie Andrusco). Assim, aquilo que era para ter um caráter prosaico e realista acaba ganhando uma estranha dimensão épica para o pequeno personagem principal. Os jogos e brincadeiras em um parque e os passeios e recolhimento de garrafas pela praia de Coney Island se transformam numa espécie de aventuras grandiosas. O registro visual do filme acentua ainda mais tal impressão: poucas vezes se viu no cinema ruas, objetos e prédios corriqueiros ganharem uma beleza pictórica tão cativante. A expressiva trilha sonora, composta basicamente por temas de melodias singelas levadas numa harmônica beirando o desafinado, colabora ainda mais para essa percepção de uma obra idiossincrática e atemporal.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

Boyhood - Da infância à juventude, de Richard Linklater ***




O que mais impressiona em “Boyhood – Da infância à juventude” (2014) não é o uso do recurso narrativo de usar os mesmos atores por mais de 10 anos para narrar a trajetória de amadurecimento de seus personagens. É claro que isso dá um peso dramático na composição de situações e personagens, mas o que pega mesmo no filme é que por trás da história de caráter intimista e realista da produção há um rico subtexto político e cultural que faz um raio x arguto da sociedade norte-americana contemporânea. Nesse sentido, há grande mérito por parte do diretor Richard Linklater em não cair, pelo menos em boa parte do filme, em maniqueísmos ou visões simplórias ao trazer à tona questões complexas. Por mais que Mason (Ellar Coltrane) seja o protagonista de “Boyhood”, é a totalidade de sua família (ele, pai, mãe e irmã) que sintetiza aquilo que Linklater quer evidenciar – liberais em termos políticos e ateus, representam o oposto ao ideário conservador que Hollywood e a mídia ocidental gostar de propagar como modelo. Apesar disso, sentem necessidade de se adequar a certos valores e convenções para poderem sobreviver, ainda que quebrem a cara com isso por vezes (o fato da mãe casar duas vezes com homens aparentemente respeitáveis, um professor e um policial, mas que se revelam bêbados violentos é emblemático disso). Tal concepção temática e textual da produção representa talvez o seu efetivo lado transgressivo, em um discurso perturbador que desafia inclusive o ideal do amor romântico. Essa crueza no expor as relações interpessoais bem como na caracterização de determinadas passagens da trama deixa clara a forte carga humanista da obra de Linklater.

Se “Boyhood” impressiona pelo seu subtexto, por outro lado sua estrutura narrativa e formal não acompanha a sua ousadia temática. Não há grandes arroubos estéticos por parte de Linklater e é provável que essa nunca tenha sido a sua intenção, pois o caráter de uma ambientação sóbria e naturalista de um cotidiano familiar/social não exigiria barroquismos ou estilizações. Ocorre, entretanto, que o próprio Linklater já provou que é possível conciliar um roteiro de talhe realista com uma narrativa criativa em termos formais na sensacional trilogia “Antes do amanhecer” (1995), “Antes do pôr-do-sol” (2004) e “Antes da meia-noite” (2013). Além disso, o cineasta se rende em alguns momentos a alguns incômodos truques melodramáticos que tiram a fluência da narrativa.

Os senões que se pode fazer a “Boyhood” são frustrantes em relação às expectativas positivas que se tinha em relação ao filme. Ainda sim, é o tipo de obra que traz tantos elementos intrigantes que acaba permanecendo na mente de quem a assistiu por um bom tempo, fazendo do filme de Linklater um trabalho memorável como poucos.

terça-feira, dezembro 02, 2014

Tim Maia, de Mauro Lima 1/2 (meia estrela)


Logo após sair da sala onde assisti à “Tim Maia” (2013) ouvi alguns comentários de pessoas que também viram o filme em questão, sendo que um deles se destacou para mim: “Como alguém pôde desperdiçar a vida assim?”. Daí eu é que me indaguei mentalmente: mas como falar em desperdiçar a vida em relação a um homem que gravou, no mínimo, oito discos fundamentais para a música brasileira, além de ser um dos maiores intérpretes de nosso cancioneiro? Mas tal percepção acaba se justificando diante do equívoco que representa a cinebiografia dirigida por Mauro Lima. Durante a longuíssima duração de tal produção, o que mais se vê é o “homenageado” abusando de drogas e comida e sendo repreendido com lições de morais e de vida por parte de parente, amigos e namoradas. De vez em quando, sobra um espaço para mostrar que o cara também compunha e cantava... Ou seja, o filme tem um repugnante caráter moralista e arrogante, parecendo julgar a todo momento o comportamento errático de Tim Maia e reduzindo a sua vida ao cotidiano de um junkie qualquer. Essa medíocre visão temática da obra se estende para a própria concepção estética perpetrada por Lima – encenação engessada, direção de arte primária, interpretações caricaturais, roteiro incapaz de desenvolver situações e personagens. No geral, “Tim Maia” mais parece, na realidade, um longo video clip musical mal dirigido e com um subtexto tomado por infantilismos.

sexta-feira, novembro 28, 2014

Boa sorte, de Carolina Jabor ***


A questão da loucura em “Boa sorte” (2014) não se limita à sua temática. A própria construção da narrativa da produção em questão apresenta uma espécie de esquizofrenia artística, como se houvesse dois filmes dentro de um só. Se por um lado o roteiro da obra, de autoria de Jorge Furtado baseado em conto próprio, apresenta aquela sua habitual verborragia, em que os diálogos dos personagens pecam pelo excesso de informações e auto-explicações, por outro a direção de Carolina Jabor busca algumas sutilezas formais por vezes ousadas e até líricas. Em alguns momentos, a narrativa atinge um discreto tom delirante, tanto em alguns planos-sequência e truques de edição que sugerem uma ambientação entre o fantasioso e o onírico quanto em algumas belas estilizações, principalmente na parte final, em que os desenhos da protagonista Judite (Deborah Secco) ganham vida, rendendo algumas poéticas cenas. É claro que o travo sentimental do roteiro incomoda, principalmente na forma clichê e um tanto moralista com que se resolve o destino de Judite, mas as boas soluções formais de Jabor fazem de “Boa sorte” uma obra memorável.

quinta-feira, novembro 27, 2014

Riocorrente, de Paulo Sacramento ***1/2




Se Jogo das decapitações (2013) abusa de uma verborragia atordoante, Riocorrente (2013) prefere se insinuar pelos silêncio de seus personagens. Assim como no filme de Bianchi, pode-se perceber na obra de Paulo Sacramento que o desconforto, a violência e a tensão são latentes, mas os principais personagens da trama não verbalizam suas angústias e revoltas. Preferem descontar suas frustrações e desconfortos através de sexo, porres, discussões, passeios sem rumo pelas ruas desoladas de São Paulo, pequenos crimes. Na superfície, os conflitos intimistas desses indivíduos escondem uma leitura política bastante arguta – o mecânico e ladrão de carros Carlos (Lee Taylor), o jornalista e historiador Marcelo (Roberto Audio), a socialite Renata (Simone Iliescu) e o menino de rua Exu (Vinicius do Anjos) carregam uma conotação simbólica na constituição de suas figuras, representando diferentes classes sociais, comportamentos e visões de mundo que convivem aos trancos e barrancos na mesma sociedade. Essa estruturação da trama baseado nos conflitos existenciais de cada um desses personagens lembra muito o mote principal do extraordinário romance Contraponto (1923) de Aldous Huxley, em que a exposição das visões ideológicas e filosóficas dos personagens era o eixo principal do ritmo narrativo da obra. Essa tendência para a simbologia em Riocorrente não se limita apenas na caracterização de seus principais personagens, sendo que Sacramento pontua de forma recorrente no filme seqüências marcadas por sutis trucagens evocando fogo e catarse, como no momento em que Carlos se imagina com um coquetel molotov nas mãos ou naquele do onirismo desconcertante de um Rio Tietê se incendiando.

É curioso observar ainda que tanto O jogo das decapitações quanto Riocorrente apresentam momentos em que a música adquire uma conotação de redenção em meio a narrativas marcadas pela temática da turbulência social e existencial. Na conclusão do filme de Bianchi, há um número musical em que um grupo cultural voluntário toca e canta uma versão apaixonada da panfletária Eu vivo num tempo de guerra, emblemático tema de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, perante uma plateia de garotos pobres de olhar desconfiado, enquanto a obra de Sacramento traz o misto de rock e free jazz da Patife Band e o canto dilacerado do velho mutante Arnaldo Baptista no seu clássico Te amo, podes crer servindo como válvula de escape emocional para as tensões atávicas de alguns personagens. No meio do clima de pessimismo e fúria que impera nas duas produções, é como se os dois cineastas ainda vissem alguma possibilidade de esperança na cultura e na sensibilidade, que tanto podem se manifestar na música como nas suas respectivas obras cinematográficas.

quarta-feira, novembro 26, 2014

O jogo das decapitações, de Sérgio Bianchi ****


Sérgio Bianchi é um cineasta que tem um apreço especial por uma temática singular – o mal-estar existencial do homem moderno. Seus filmes têm como conteúdo fundamental a sensação de desconforto do brasileiro classe média com tudo aquilo que foge dos seus padrões de comportamento e moralidade. Cronicamente inviável (2000) e Os inquilinos (2009) mostram as contradições, preconceitos e hipocrisias oriundas das diferenças de classes sociais, enquanto Quanto vale ou é por quilo? (2005) apresenta uma das visões mais cruas e sarcásticas já realizadas no cinema nacional sobre o racismo. Vale lembrar, entretanto, que na cinematografia de Bianchi as dicotomias que se apresentam não implicam necessariamente numa visão maniqueísta. Pobres, marginais e excluídos não se limitam a um papel de vítima – eles têm um papel ativo no seu destino. Em O jogo das decapitações (2013), todos esses conteúdos turbulentos afloram com a virulência habitual do cineasta. Na realidade, há até uma expansão conceitual no universo provocador de Maldita coincidência (1979), para ilustrar o legado artístico maldito de Jairo Mendes. No final das contas, esse confronto entre a obra mais recente e um dos primeiros trabalhos de Bianchi também serve para traçar a unidade artístico-existencial da carreira do cineasta e também para a confrontação brutal entre duas épocas distintas.Bianchi, que não se furta, inclusive, a questionar e ironizar questões muito caras para a esquerda como a concessão de indenizações e pensões para perseguidos pela ditadura militar. Isso não quer dizer, todavia, que Bianchi se apresente como um recém convertido a novo conservador, reacionário ou qualquer coisa que o valha. Ele age mais como um cronista distante e amargurado da decadência social e moral de uma nação. Para isso, ele toma por protagonista Leandro (Fernando Alves Pinto) um confuso rapaz de classe média, filho de uma ex-guerrilheira e de Jairo Mendes (Paulo César Pereio), um enigmático artista performático. Leandro também é estudante pós-graduando em vias de ser “jubilado” e que vive numa eterna pesquisa acadêmica não muito bem delineada e definida sobre a ditadura militar. Bianchi dá a impressão que o seu olhar gravita entre a perspectiva atônita de Leandro diante de uma realidade cada vez mais fraturada pela violência e intolerância, e a fúria niilista e sarcástica de Rafael (Silvio Guindane), colega de Leandro que desdenha de ideologias e das ortodoxias sócio-políticas. Mas mesmo para um personagem como Rafael não há uma clareza – suas descrenças e pretensa lucidez teriam um caráter libertário ou apenas seriam motivos para o estímulo de mais preconceitos? A maturidade artística de Bianchi faz com essa babel de fatos, referências e simbologias sejam filtradas numa narrativa coesa e contundente. Os principais truques formais do cineasta recebem um acabamento ainda mais refinado, fazendo com que encenação realista, toques documentais, diálogos discursivos antinaturalistas e sequências delirantes convivam em estranha harmonia que ganha um sentido singular no universo de Bianchi, tanto que ele se permite a se auto-referencia ao usar trechos do seu primeiro longa-metragem,

terça-feira, novembro 25, 2014

Pietá, de Kim Ki-duk ****


O cinema do diretor coreano Kim Ki-duk sempre procurou um equilíbrio entre o olhar contemplativo tipicamente oriental com uma estrutura tradicional de melodrama sutil. Filmes como “Casa vazia” (2004) e “O arco” (2005) são exemplares fiéis dessa tendência artística do cineasta. Em “Pietá” (2012), Ki-duk ainda envereda pelo seu particular estilo, mas acrescentando uma porção bem maior de violência e melancolia. O resultado final é um desolador conto moral sobre a brutalidade econômica e a falta de compaixão na sociedade sul-coreana contemporânea (e, por tabela, do próprio mundo capitalista pós-moderno). É claro que no mote principal de sua trama o filme tem um viés intimista ao mostrar a conturbada relação entre um truculento e impiedoso cobrador de vítimas de agiotagem e a sua suposta mãe. Mas aos poucos, a narrativa vai ganhando uma conotação simbólica ao retratar um cotidiano de dificuldades financeiras e insuportáveis coações físicas em áreas urbanas degradadas de uma grande metrópole. Por vezes a trama permite algum respiro ao flagrar raros momentos de algum sentimento mais nobre em seus personagens, mas isso apenas aumenta o grau de choque nas explosões de violência e tragédia que irrompem de forma inesperada e impiedosa. Kim Ki-duk tem alguns truques perversos na cartola – em determinados momentos no faz acreditar em alguma possibilidade de redenção para as suas criaturas, mas isso é ilusório, pois, em sua essência, “Pietá” é uma obra que versa sobre a vingança levada às últimas conseqüências, fazendo lembrar a inesquecível trilogia da vingança concebida pelo também sul-coreano Chan-wook Park. A crueldade temática de Ki-duk vem acompanhada de uma concepção formal extraordinária, repleta de planos de expressiva beleza pictórica e uma narrativa exasperante na sua capacidade de criação de tensão dramática.

segunda-feira, novembro 24, 2014

Castanha, de Davi Pretto ***1/2


A abertura de “Castanha” (2014) é uma contundente carta de intenções do filme: numa sugestão de pesadelo, uma estranha figura coberta de uma espécie de óleo negro caminha cambaleante por uma estrada ao som de um ensurdecedor e dissonante tema “drone”. O efeito sensorial é desconcertante. Essa mesma sensação de misto de encanto e perturbação permeia toda a metragem da produção dirigida por Davi Pretto. A estrutura da narrativa pode soar insólita nos primeiros momentos, mas aos poucos vai ficando familiar e natural para o espectador – por mais que se evoque alguns trejeitos documentais, o cerne da obra de Pretto é uma encenação bastante fluida e que revela um rigor estético extraordinário. O que na superfície podo soar casual ou aleatório na verdade revela um senso plástico belíssimo, em que a direção de fotografia extrai alguns enquadramentos antológicos em registros variados, indo do apartamento simples do protagonista Castanha, passando pela ambientação sombria e sórdida da boate gay em que ele trabalha e chegando em tomadas melancólicas das ruas de Porto Alegre, quase como se sugerindo que à noite a cidade se convertesse numa localidade de outra dimensão. Pode parecer contrastante que uma temática que foca um olhar seco sobre cotidiano de uma figura solitária e fora dos padrões de “normalidade” ganhe um tratamento formal cheio de nuances de linguagem, mas a força de “Castanha” está justamente no entrechoque inesperado entre o real e o delírio onírico, em que a fronteira desses dois planos existenciais por vezes fica imprecisa de maneira fascinante, fazendo do filme de Preto, ao lado de “Morro do Céu” (2014) e “Argus Montenegro” (2012), uma das melhores coisas que apareceram no cinema gaúcho nos últimos anos.

sexta-feira, novembro 21, 2014

Debi & Lóide 2, de Bobby e Peter Farrelly ***


Pode-se acusar “Debi & Lóide 2” (2014) de todos os adjetivos que se costumar atribuir a obras de continuação de sucessos comerciais: oportunista, apelativo, variação derivativa do original e afins. Mesmo assim, é uma comédia daquelas que vem se tornando cada vez mais raras nos cinemas nesses tempos de politicamente correto, na sua combinação bem azeitada de escatologia, mau gosto e humor beirando o delirante. Assim como no primeiro filme, a lógica aqui não está em tentar encontrar sentido no fio de história do roteiro ou em sutilezas de subtexto. O forte dos irmãos Farrelly e da dupla Jim Carrey e Jeff Daniels está na encenação alucinada de seqüências de puro nonsense em que não se economiza no exagero de humor físico pastelão e na infâmia de piadas que vão das brincadeiras com fluidos corporais diversos até tirações de sarro com deficientes. É claro que tal estética do riso por vezes cheira a mofo e decadência, mas talvez um dos segredos do estranho encanto dessa produção esteja num certo caráter nostálgico de um tipo de produção que está à beira da extinção.

quinta-feira, novembro 20, 2014

Interestelar, de Christopher Nolan ***




O diretor Christopher Nolan mantém uma relação forte com o universo dos quadrinhos, apesar de tal aproximação não ser ostensivamente declarada. Além é claro da óbvia conexão de ter sido o responsável criativo pela recente trilogia cinematográfica do Batman, em alguns dos seus filmes se podem perceber influências e referências visíveis de “comics”. Em “A origem” (2010), a estrutura narrativa se divide em diversos planos de realidade, em um recurso que remete tanto aos universos paralelos das editoras Marvel e DC bem como às narrativas oníricas da série “Sandman”. Em seu mais recente filme, “Interestelar” (2014), Nolan volta a buscar inspiração nas HQs. O grande mote do roteiro da obra em questão se relaciona a um pequeno truque temporal que o genial roteirista Grant Morrison já havia utilizado de forma bastante engenhosa em sua extraordinária fase na revista do “Homem-animal”. Nolan não tem a mesma verve criativa de Morrison no uso do referido recurso narrativo, mas mesmo assim obtém um efeito dramático de eficiente impacto.

Talvez o que incomode em “Interestelar” esteja justamente nessa questão da pretensão de ser genial ou ousado. Nolan dá a constante impressão de que seu filme deseja ser uma espécie de “2001: Uma odisséia no espaço” (1968) para o século XXI. Parte do público e crítica compra essa ideia para o mal e acaba detonando a produção pela sua intenção de ser “séria” e “profunda”. O diretor não tem esse estofo artístico para fazer o grande épico metafísico e existencial que propõe – por vezes, a intenção de ser poético e reflexivo descamba para o melodrama barato. E isso sem falar na conclusão da história, um verdadeiro imbróglio incompreensível de teorias despirocadas. A melhor forma de assistir às quase três horas de duração de “Interestelar” é encarando a obra como aquilo que ela efetivamente é: uma boa aventura escapista de ficção científica. As cenas de ação têm boa desenvoltura narrativa e a dose certa de tensão, além da direção de fotografia saber valorizar com razoável sensibilidade tanto a beleza dos cenários naturais quanto o requinte imagético das trucagens. E por mais chorão e hesitante que o protagonista Cooper possa ser, Matthew McConaughey tem um tipo de carisma que faz pensar num tipo de cowboy pos-apocalíptico.

quarta-feira, novembro 19, 2014

Avós, de Carla Valencia D'Ávila **1/2


A objetividade e o distanciamento emocional cada vez mais de forma deliberada se distanciam da formatação dos documentários contemporâneos. Estão se tornado bastante recorrentes obras dentro de tal gênero que se deixam permear por um caráter intimista de seus realizadores, em que suas impressões e dilemas pessoais se impõem como matéria prima na exposição de suas temáticas. “Avós” é um exemplar interessante de tal vertente do “cinema verdade”. Essa produção chilena-equatoriana combina na mesma moeda política e intimismo com razoável fluência orgânica. A diretora Carla Valencia D’Ávila conta duas histórias – a de seu avô paterno chileno, preso e morto no início da ditadura militar orquestrada por Pinochet, e a de seu avô materno, farmacêutico que se curou de um tumor maligno com medicamentos elaborados por ele mesmo e que depois acabou se tornando um misto de curandeiro e médico, tendo sucesso no tratamento de diversos pacientes. A cineasta não apresenta grandes arroubos criativos em termos formais – a narrativa de “Avós” é pausada e clássica, por vezes até árida dentro da contida estética da diretora. De qualquer forma, Ávila, ao expor as vidas singulares de seus biografados, constrói uma obra que no seu subtexto acaba oferecendo um estranho e sedutor panorama da história existencial de um período crítico da América do Sul, em que repressão política, misticismo e idealismo libertário conviviam de maneira não muito harmônica no continente.

terça-feira, novembro 18, 2014

Uma jovem tão bela como eu, de François Truffaut ****


Em uma rápida primeira impressão, “Uma jovem tão bela como eu” (1972) se mostra como uma excentricidade do diretor François Truffaut, tendo em vista a sua estrutura narrativa emular uma espécie de ligeira chanchada. Com o desenvolver da obra e um olhar mais atento, entretanto, o filme vai ganhando contornos cada vez mais surpreendentes. Algumas trucagens e detalhes visuais revelam uma estética baseada em influências cartunescas e mesmo de clássicas comédias físicas, fazendo da produção umas das viagens mais ousadas e radicais de Truffaut em termos de linguagem cinematográfica. O cineasta recria tais referências sob uma perspectiva própria, em que elementos cômicos e picarescos se entrelaçam de forma perturbadora com a atmosfera sombria e melancólica de algumas sequências. Em outros momentos, há nuances artísticas e temáticas que se conectam de forma contundente com o universo existencial do diretor – as peripécias transgressoras da protagonista Camille Bliss (Bernadette Lafont) guardam sintonia com as encrencas do Antoine Doinel, alter ego de Truffaut e personagem recorrente em sua filmografia. É nessa confluência de desconstrução de gêneros (comédia e suspense) e reforço de um traço autoral que “Uma jovem tão bela como eu” se configura como uma estranha pérola dentro do conjunto da obra de Truffaut.

segunda-feira, novembro 17, 2014

O juiz, de David Dobkin *


Um filme como “O juiz” (2014) é o tipo de obra que não parece surgir como uma inspiração de um roteirista ou diretor, mas sim como uma equação econômica de algum produtor mercenário. Ele deve ter pensado: “Hum, filmes de tribunal costumam render um lucro praticamente certo”. E daí o nosso amigo picareta pode ter concluído ainda: “E se eu acrescentar o gênero melodrama familiar com lições de vida? Eu estarei rico”. O resultado de todas essas considerações é uma produção que faz lembrar um Frankenstein alquebrado – o roteiro parece seguir um manual de clichês e apelações dignas de uma telenovela, o seu formalismo vazio se baseia numa encenação burocrática e fotografia asséptica e destituída de personalidade, um elenco cujos principais nomes (Robert Duvall e Robert Downey Jr.) estão com a cabeça em outro lugar (provavelmente constrangidos com os diálogos que têm de proferir), temas musicais melosos a pontuar os momentos mais “dramáticos” do filme. Mas o que mais irrita ainda é que “O juiz” transparece se levar a sério demais, mesmo tomado pela cretinice temática e estética que exala de forma constante. E toda essa mediocridade se arrasta por intermináveis 141 minutos....

quinta-feira, novembro 13, 2014

O ciúme, de Philippe Garrel ***1/2


O cinema de Philippe Garrel parece obedecer a uma lógica muito pessoal, quase como se desenvolvesse num universo paralelo. Em termos temáticos, as tramas de seus filmes giram em torno de sentimentos e sensações marcados pela crueza e intensidade a flor-da-pele, sem que, entretanto, sucumbam a arroubos emocionais exagerados, sendo que tais obsessões textuais recebem um tratamento formal sóbrio e repleto de delicadas nuances estéticas. “O ciúme” (2013), obra mais recente de Garrel, se enquadra nesses habituais preceitos artísticos do cineasta. As desventuras amorosas do protagonista Louis (Louis Garrel) são narradas num estilo de ritmo fluido e rigor plástico notável (o detalhe da câmera filmando a ação a partir de uma fechadura, por exemplo, é uma sacada visual engenhosa e marcante). Philippe Garrel estrutura o filme como se fosse um conto moral pleno de pungência e ironia, mas sem cair em maniqueísmos ou obviedades. A serena edição de poucos cortes, o roteiro em que os fatos se sucedem como flashes de pensamento, a direção de fotografia em esmaecido preto e branco e de enquadramentos expressivos, os discretos e pontuais temas musicais de tons melancólicos e o elenco de composições dramáticas de sensível naturalismo compõem uma produção de atmosfera rarefeita e atemporal e que se encerra quase como uma lembrança fugidia.

quarta-feira, novembro 12, 2014

Drácula - A história nunca contada, de Gary Shore *1/2


Quando lançou “Drácula de Bram Stoker” (1992), Francis Ford Coppola buscou uma nova perspectiva para o mitológico personagem do horror, enfatizando um certo caráter romântico e trágico para a criatura. Na criativa revisão que empreendeu, entretanto, não esqueceu de algo fundamental para que Drácula permanecesse relevante: ele continuava a ser um vilão assustador e a estrutura narrativa era de um legítimo conto de horror. E é justamente nesse ponto que reside o grande equívoco de “Drácula – A história nunca contada” (2014). A produção dirigida por Gary Shore parece ser um amálgama mal ajambrado de algumas tendências recorrentes no cinema  de fantasia contemporâneo: o revisionismo pseudo-histórico e realista de personagens clássicos da cultura ocidental, violência gráfica asséptica, readequação moral de lendas e mitos sob uma perspectiva politicamente correta. Nessa formatação, Drácula passa a ser uma espécie de super-herói atormentado e romântico e sua trajetória está mais para uma aguada aventura épica do que para uma narrativa gótica e sombria. Por mais que haja uma profusão de mortes brutais e caninos sangrentos, em nenhum momento da trama há uma efetiva tensão dramática ou uma sensação de medo – o Drácula da produção em questão é basicamente um “cara de família” cheio de boas intenções. Que saudades do Christopher Lee seduzindo e mordendo mocinha incautas...

terça-feira, novembro 11, 2014

Carta para a morte, de Mike Mendez ***


O diretor “chicano” Mike Mendez já esteve em Porto Alegre por ocasião de uma sessão especial do FANTASPOA para o filme “Big ass spider” (2013), filme esse que pouco impressionou na sua combinação de gênero “monster movie” com piadinhas infames. A má impressão sobre tal obra, entretanto, não pode ser motivo para deixar de conferir “Carta para a morte” (2013). O filme em questão é bem superior ao mencionado trabalho posterior de Mendez – não prima pela originalidade e nem por grandes vôos criativos, mas é eficiente naquilo que toda uma produção de horror deve ser (o que, nos dias de hoje, já é um grande mérito). De vez em quando alguns efeitos visuais digitais fuleiros até incomodam, mas o senso narrativo do diretor compensa com sobras. A atmosfera sombria e por vezes de tons góticos, o roteiro bem delineado, os momentos de forte violência gráfica e mesmo a canastrice simpática do elenco remetem de maneira nostálgica o espectador ao universo dos filmes B de terror oitentistas. E é até compreensível que “Carta para a morte” tenha sido diretamente lançado em DVD no Brasil, pois não dá para imaginá-lo sendo exibido nas assépticas salas de um multiplex.

segunda-feira, novembro 10, 2014

4:44 - O fim do mundo, de Abel Ferrara ***


Por mais que se aventure por vários gêneros cinematográficos, a lógica principal na filmografia do diretor Abel Ferrara é que tudo se adapte às suas particulares concepções artísticas e existenciais. “4:44 – O fim do mundo” (2011) obedece a tal preceito – molda-se na superfície como uma espécie de ficção-científica apocalíptica, mas aos poucos sua narrativa rarefeita se converte numa incômoda exposição das obsessões de Ferrara. Assim, sexo desesperado, vício em drogas, desajuste família e vazio existencial preenchem pontualmente a trama. A encenação proposta pelo cineasta é austera e criativa na forma que adapta os conceitos inerentes ao gênero ficção científica de acordo com a contenção formal e a economia de recursos da obra. Assim, Ferrara induz ao espectador que o fim do mundo está chegado na elaboração de uma sombria atmosfera e nos diálogos metafóricos de seus personagens, tornando o clima de desesperança mais palpável do que se tivesse simplesmente apelado a assépticos efeitos visuais digitais. Ainda que não tenha a contundência estética e o impacto sensorial de “Melancolia” (2011), outro filme que versou sobre o final dos tempos sob uma perspectiva mais contemplativa e ácida, o filme de Ferrara tem o seu encanto perverso na forma sem concessões com que retrata os dilemas e hipocrisias da humanidade perante um mundo em colapso.

sexta-feira, novembro 07, 2014

Sétimo, de Patxi Amezcua *1/2


Confesso que nos últimos meses eu tinha voltado a dar crédito para o cinema argentino. Obras vigorosas como “Viola” (2012), “Algumas garotas” (2013) e “Relatos selvagens” (2014) mostravam parte de um panorama cinematográfico disposto a fugir de um padrão asséptico que havia se tornado dominante nas produções dos hermanos. Dentro dessa linha de pensamento, assistir a “Sétimo” (2013) acaba sendo uma decepção. O filme não chega a ser exatamente ruim – por vezes, consegue até ser divertido no seu subtexto ostensivamente misógino. Talvez por isso o filme pedisse uma abordagem mais irônica e alucinada, algo como aquelas comédias dementes do cineasta espanhol Alex De La Iglesia (“Mortos de riso”, “Crime ferpeito”). Do jeito que ficou, algo no gênero “suspense psicológico” de estética derivativa, a obra do diretor Patxi Amezcua chafurda em clichês narrativos e numa encenação amorfa, abusando de um formalismo bastante burocrático e de um elenco baseado em interpretações que oscilam entre o “piloto automático” e o francamente canastrão. Para alguns espectadores é provável que “Sétimo” se mostre “diferente” e tenha alguma seriedade artística por ser falado em espanhol e ter Ricardo Darin batendo ponto nos créditos. Mas convenhamos: se fosse falado em inglês, o filme passaria batido como a mais rasteira produção norte-americana (tipo aquelas que passam nos telecines da vida). E o seu plano final, uma grande tomada aérea noturna de Buenos Aires tipo cartão postal para turista, talvez sintomático da absoluta falta do que dizer e mostrar em “Sétimo”.

quarta-feira, novembro 05, 2014

O grande mestre, de Wong Kar-Wai ***1/2


Mesmo estranhando alguns trechos mais contemplativos e da abordagem emocional um tanto distanciada, os apreciadores mais tradicionais do gênero artes marciais poderão se divertir com “O grande mestre” (2013). O filme do diretor Wong Kar-Wai apresenta alguns momentos antológicos nas bem elaboradas seqüências de lutas que pontuam a narrativa. Ao contrário da fantasia extrema de golpes impossíveis e lutadores que voam de produções como “O tigre e o dragão” (2000) e “O clã das adagas voadoras” (2004), “O grande mestre” se vincula a uma linha mais realista em seus trechos de pancadaria (até porque a trama é baseada em eventos reais importantes da história da China). Isso não é impedimento, entretanto, para que Wong Kar-Wai não deixe impresso em cada fotograma a sua característica elegância formal em termos de encenação e montagem. Sua habitual sutileza também se manifesta na rarefeita composição dramática da narrativa, repleta de simbologias e subtextos nas atitudes, diálogos e expressões dos personagens, fazendo de sua obra um estranho e sedutor conto moral – a dinâmica de lutas e intrigas políticas serve como um reflexo dos valores e dilemas de uma nação em um complexo contexto histórico.

terça-feira, novembro 04, 2014

Festa no céu, de Jorge R. Gutierrez ***


A participação de Gullermo Del Toro na produção de “Festa no céu” (2014) não é gratuita – a animação dirigida por Jorge R. Gutierrez é uma bizarrice bem divertida e que faz lembrar alguns dos melhores e mais idiossincráticos filmes de Del Toro como “Cronos” (1993) e “O labirinto do fauno” (2006). O grafismo da obra é de uma beleza por vezes exuberante na sua combinação de estilização berrante e toques sombrios, em que os elementos tradicionais da festa dos mortos da cultura mexicana são incorporados na particular estética do filme com notável fluidez. Essa abordagem estética em que bom humor e morbidez se fundem com naturalidade se expande também para a trama – a estrutura tradicional de uma história infantil de tom fabular é mantida, mas permeada com um certo senso de humor perverso e uma visão bastante crítica da sociedade patriarcal machista inerente da sociedade mexicana (e também do próprio mundo ocidental de matiz cristã católica). A própria natureza maniqueísta na diferenciação entre heróis e vilões vai se tornando difusa com o desenrolar do roteiro, o que torna “Festa no céu” uma obra em forte sintonia com os tempos atuais.

segunda-feira, novembro 03, 2014

Sob a pele, de Jonathan Glazer ***1/2


Na superfície da premissa de sua trama, “Sob a pele” (2013) aparenta se vincular a uma ficção científica genérica – a alienígena (Scarlett Johansson) que se esconde sob uma bela aparência física que seduz incautos e depois os aprisiona e mata. Mesmo na sua leitura simbólica, não há grandes novidades, fazendo com que a trajetória existencial da protagonista sirva como uma espécie de metáfora da “destruição sentimental”, em que o indivíduo que desconhece as emoções humanas e que depois de expostas a ela acaba sucumbindo pela desordem psíquica provocada por tal contato. O que diferencia de forma expressiva a produção em questão é o idiossincrático tratamento formal concebido pelo diretor Jonathan Glazer. Ao invés de tinturas épicas, o filme se desenvolve como uma sóbria e melancólica narrativa, formatada em truques estéticos eficientes em termos de encenação, fotografia e montagem, num clima de estranheza que se acentua pela dissonante trilha sonora e pela abordagem emocional distanciada. A própria figura Scarlett Johansson representa uma espécie de síntese das ideias artísticas de Glazer: a composição dramática da atriz é inexpressiva, mas de forte presença cênica, reforçando a atmosfera de esquisitice e desesperança da obra.

segunda-feira, outubro 27, 2014

Uma família em Tóquio, de Yoji Yamada ***

Na comparação com “Era uma vez em Tóquio” (1953), obra da qual é uma refilmagem, “Uma família em Tóquio” (2013) claramente sai perdendo. O diretor Yoji Yamada não apresenta o mesmo rigor estético característico de Yasugiro Ozu – ao invés da exatidão daqueles expressivos planos-sequência estáticos do filme original, predomina um estilo mais tradicional de narrativa. Além disso, também não há aquela desconcertante abordagem emocional mais contida inerente ao estilo de Ozu, com Yamada se vinculado a um formato clássico de melodrama, ainda que reciclado para a época atual. Apesar da desvantagem na comparação, essa produção mais recente está longe de ser um mau filme (até porque tentar recriar aquele que é considerado por muitos o melhor trabalho da cinematografia japonesa é uma tarefa bem ingrata). É inegável a capacidade de “Uma família em Tóquio” envolver e comover o espectador com o humanismo que flui naturalmente tanto da trama de viés realista quanto do sutil formalismo impresso por Yamada. Os dilemas e conflitos que predominavam em “Era uma em Tóquio” são adaptados com sensibilidade para o mundo contemporâneo e ressaltam ainda mais a perenidade da obra-prima de Ozu.

sexta-feira, outubro 24, 2014

Relatos selvagens, de Damián Szifron ***


Dentro do panorama atual do cinema argentino, repleto de melodramas e comédias de estrutura formal e temática convencional que remetem a quadradas produções televisivas, um filme como “Relatos selvagens” (2014) acaba sendo uma grata surpresa. As referências estéticas que pontuam a narrativa da produção dirigida por Damián Szifron fogem do previsível (ainda que o estilo do cineasta tenha um certo caráter asséptico na sua concepção visual): atmosferas tensas e sórdidas e explosões de violência que lembram o cinema italiano de horror e suspense dos anos 60 e 70 (por vezes, por exemplo, dá a impressão que estamos ouvindo algum tema do Goblin, banda que teve parceria fértil com Dario Argento), o ritmo narrativo cartunesco do melhor da cinematografia de Alex de La Inglesia, o senso de humor bagaceiro e ácido das comédias de Pedro Almodóvar – nesse último caso, não é surpresa que a própria El Deseo tenha produzido “Relatos selvagens”. Tais influências servem como moldura adequada para os contos de violência e vingança que compõem o filme. A condução da narrativa é eficiente e mantém com consistência o clima de perversa diversão para o público, com o roteiro trazendo também um intrigante subtexto, em que a profusão de brutalidade e humor negro também ilustram uma espécie de radiografia existencial da classe média ocidental perante aqueles que seria seu supostos algozes (Estados, classes baixas, criminalidade e seus próprios pares de classe). Nesse sentido, “Relatos selvagens” se revela uma obra emblemática no sentido de captar o espírito de uma época.

quinta-feira, outubro 23, 2014

Terror 2000, de Christoph Schlingensief *


A proposta artística do diretor alemão Christoph Schlingensief para “Terror 2000” (1994) é interessante numa primeira impressão, juntando a estranha ironia política-comportamental de Fassbinder (a presença de Udo Kier não é gratuita), a fuleiragem demente das produções da Troma e o gosto por figuras e situações esquisitas dos melhores filmes de John Waters. O resultado final dessa equação, entretanto, é bem indigesta e desinteressante. Como narrativa, a obra de Schlingensief naufraga pela ausência de fluência e por uma tosquice formal enjoada. Se nas primeiras cenas os exageros e escatologias da trama até conseguem por vezes serem engraçados, com o passar do tempo se tornam apenas cansativos e beirando o insuportável. Dá para sentir em alguns momentos que por trás de toda as loucuras e excessos que permeiam o filme há um sentido político e existencial a retratar uma espécie de condição da “alma alemã”. Mas essa pretensão de subtexto acaba se perdendo diante da frouxidão da direção de Schlingensief.

quarta-feira, outubro 22, 2014

Viva a liberdade, de Roberto Andò ***


O diretor italiano Roberto Andò formata “Viva a liberdade” (2013) a partir de uma estrutura narrativa convencional de uma comédia de erros. A trama focaliza as confusões e enganos provocados por dois gêmeos, um senador em crise existencial e um professor recém saído de uma clínica psiquátrica, que por condições aparentemente involuntárias do destino acabam trocando de lugar. Num primeiro momento, o conflito do roteiro navega por um clichê básico – as diferenças de temperamento e concepções de vida dos irmãos seriam o mote principal da graça e do sentido do filme. Ocorre, entretanto, que com o desenrolar da trama esse conceito vai ficando cada vez mais difuso. Elementos do passado dos protagonistas vem à tona sutilmente e revelam que a força da relação dos dois talvez esteja nas semelhanças filosóficas e culturais que os unem. Esse tom obscuro da narrativa torna a obra cada vez mais intrigante e acaba evidenciando um notável caráter simbólico do filme, em que a complexidade do relacionamento entre os irmãos e também com aqueles que os rodeiam refletem a própria condição singular da política e da sociedade italianas. Dessa forma, não é por acaso que em determinado momento da produção aparece um vídeo do mestre Fellini desancando autoridades e políticas: os delírios fellinianos pairam como discreta influência dentro das curiosas soluções estéticas e temáticas estabelecidas por Andò em “Viva a liberdade”.

terça-feira, outubro 21, 2014

Trash - A esperança vem do lixo, de Stephen Daldry *


O diretor britânico Stephen Daldry até que causou uma boa impressão com “Billy Elliot” (1999) e “As horas” (2001), seus filmes iniciais. Ainda que bastante convencionais em termos formais, traziam vigor na encenação e considerável consistência dramática. Já nas duas produções que sucederam, os medíocres “O leitor” (2008) e “Tão forte e tão perto” (2011), as narrativas de ritmo arrastado se desenvolviam como novelões de excessos sentimentais. E agora em “Trash – A esperança vem do lixo” (2014) dá para dizer que Daldry chega a um novo patamar na sua carreira – ele conseguiu fazer um filme francamente ruim como poucos. A obra parece seguir a partir de uma indigesta mistura dirigida com uma mão pesada e burocrata – uma combinação nada sutil e sem inspiração de “Quem quer ser milionário?” (2008) e “Cidade de Deus” (2002) que se estrutura num roteiro derivativo no gênero “caça ao tesouro” (lembra a horrorosa franquia “A lenda do tesouro perdido”). O negócio se torna ainda pior quando se evidencia uma trama de visão preconceituosa e estereotipada da realidade brasileira e atores nativos deixando aflorar a canastrice com toda a intensidade. No cômputo geral, de tão patético o filme até acaba se tornando engraçado!