sexta-feira, dezembro 30, 2016

O que está por vir, de Mia Hansen-Love ***1/2

O fato da protagonista de “O que está por vir” (2016) ser uma professora de filosofia se relaciona de maneira sutil com a própria estrutura narrativa da obra – a forma como a trama se desenvolve apresenta traços de um caráter didático, por vezes beirando uma síntese entre o esquemático e o dialético, na intenção de dissecar os meandros da vida pequeno-burguesa de Nathalie (Isabelle Huppert). Num primeiro momento, são expostas a contradição e a hipocrisia entre aquilo que é ensinado pela personagem e o seu cotidiano pessoal e profissional. No segundo momento, o foco está na dissolução dos pilares conservadores da vida de Nathalie para que ela possa entrar em sintonia com a natureza libertária do conhecimento ao qual se dedicou a estudar e propagar. Os truques do roteiro e sua simbologia podem até aparentar uma certa simplicidade na sua lógica, mas a grande força do filme está na encenação sóbria e repleta de nuances dramáticas e mesmo irônicas concebida pela diretora Mia Hansen-Love. Não há maiores concessões sentimentais na condução narrativa, com a cineasta se atendo a um formalismo de notáveis secura e objetividade, sem que isso, entretanto, sacrifique o aspecto emocional, que sempre irrompe com naturalidade e empatia. Colaboram ainda as contidas composições dramáticas do elenco, com óbvio destaque para Huppert, e a inteligência do roteiro que ressalta com sensibilidade a complexidade e a força desafiadora dos principais dilemas da trama.

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Belos sonhos, de Marco Bellocchio ****

A narrativa em “Belos sonhos” (2016) gira em torno de uma ideia de trama aparentemente até bem simples: a maneira como a precoce morte da mãe do protagonista Massimo (Valerio Mastandrea), quando ele ainda era criança, marcou o restante de sua vida. Só que com o velho mestre italiano Marco Bellocchio as coisas nunca são tão simples, com o cineasta convertendo tal história numa espécie de parábola moral de subtexto político-existencial fascinante. O fluxo temporal da trama corresponde a uma espécie de linha de memória marcada por traumas e esquecimentos. A sutil desconstrução da linearidade cronológica acentua a complexidade dos sentimentos e sensações que afloram com crueza e mesmo alguma ironia ao longo da narrativa. O passar dos anos para Massimo não corresponde exatamente a um amadurecimento do personagem, e nesse conceito perpassa uma síntese entre o sentimental e o intelectual a retratar tanto os aspectos intimistas quanto o caráter sócio-cultural do modelo do macho ocidental – nesse sentido, é brilhante a forma com que Bellocchio disseca na trajetória pessoal e profissional de Massimo seu envolvimento com o futebol, a política e o poder econômico, em que tais símbolos de masculinidade e prestígio social acabam não conseguindo esconder uma fragilidade inerente ao personagem. O registro estético para tal saga pessoal oscila com discrição entre a ambientação levemente estilizada do passado e a atmosfera de melodrama clássico do presente, em que as convenções do gênero são adulteradas com uma doce ironia perversa. Bellocchio “engana” com brilhante engenhosidade o espectador em seus truques formais-temáticos – em determinados momentos, ele insinua que a narrativa cairá em uma espécie de dramalhão novelesco edificante para logo depois revelar uma verve cáustica de encenação e texto. Dentro desse particular universo artístico, Bellocchio evidencia a sua indelével marca autoral e de lambuja faz um contundente e emotivo retrato psico-político da sociedade ocidental das últimas décadas.

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Sangue do meu sangue, de Marco Bellocchio ***1/2

O diretor italiano Marco Bellocchio mostra em “Sangue do meu sangue” (2015) que ainda é capaz de deixar as plateias desconcertadas. A trama do filme se situa em dois planos temporais, passado e presente, e faz uma reflexão intrincada sobre religião e poder. O viés estético e narrativo flutua dentro de uma estranha síntese que abarca drama de época, realismo fantástico e comicidade bufa, situando a obra numa encruzilhada artística-existencial difícil de precisar. Por vezes, o tratamento formal é tão insólito que faz tudo beirar o delirante. Bellocchio tem a sensibilidade de conciliar tais elementos diversos dentro de uma concepção rigorosa de filmar – ainda que a história se desenvolva por caminhos bastantes livres, em que ambientações solenes convivem de maneira natural com sensualidade à flor da pele, sempre dá para perceber a mão do cineasta dando um sentido personalíssimo para a narrativa. Dessa maneira, alguns truques melodramáticos de determinas cenas aos poucos são envenenados por uma atmosfera de puro absurdo, característica essa que é bem delimitada na figura de um chefão mafioso vampiro, que simboliza de maneira sardônica e melancólica uma certa concepção entre o irônico e o nostálgico de uma tradição secular decadente. Nesse bizarro jogo narrativo, não importa a existência de um final convencional que amarre todas as pontas da trama – para Bellocchio, importa mais traduzir em audiovisual um perturbador sentimento atávico que marca o imaginário coletivo de seu país.

terça-feira, dezembro 20, 2016

Sully - O herói do Rio Hudson, de Clint Eastwood ***

Uma expressiva parte da filmografia do diretor norte-americano Clint Eastwood é composta de obras baseadas em fatos reais que estabelecem uma espécie de inventário histórico e cultural dos Estados Unidos. Em tais produções, o foco do diretor não se limita apenas a encenar eventos “verdadeiros”, mas também a procurar traduzir uma série de conceitos e valores caros para o país como o patriotismo, a moral e heroísmo. O processo artístico de Eastwood na elaboração de tais trabalhos passa por uma abordagem formal sóbria e clássica e uma visão temática madura que enfatiza a complexidade psicológica do contexto histórico recriado. Dentro desse método, destacam-se produções brilhantes como “A conquista da honra” (2006) e “Sniper americano” (2015). Ainda que não tenha a mesma qualidade estética e textual dos filmes mencionados, “Sully – O herói do Rio Hudson” (2016) dá continuidade ao projeto artístico-histórico de Eastwood de maneira contundente. Ainda que se renda por vezes a alguns truques narrativos melodramáticos convencionais, o filme consegue oferecer uma interessante dimensão humanista para o insólito caso do comandante Sully (Tom Hanks), que em uma situação de emergência, em janeiro de 2009,  pousou um avião lotado em pleno Rio Hudson, em Nova Iorque, e que devido à sua perícia fez com que não houvesse nenhuma vítima fatal. De maneira sutil, prevalece na ambientação da trama um tom de ambiguidade – mesmo ressaltando momentos de exaltação da coragem do protagonista, a história se permite um certo clima de ressaca moral do cenário pós-crise econômica de 2008. Nesse sentido, a forma com que Eastwood conduz a narrativa e o teor sócio-político da trama evocam uma atualização do cinema de Frank Capra, em que até a atuação de Hanks emula alguns maneirismos típicos de James Stewart.

segunda-feira, dezembro 19, 2016

Maresia, de Marcos Guttman **1/2

Existem filmes que cativam mais pelos conceitos que procura trabalhar do que pelo seu resultado final propriamente dito. “Maresia” (2015) é um caso exemplar disso. Dá para perceber algumas nuances interessantes no roteiro, principalmente no que diz respeito a relação que se estabelece entre o especialista em arte Gaspar e o seu objeto de estudo, o pintor falecido Emilio Vega, ambos interpretados com forte intensidade por Júlio Andrade, em que os detalhes obscuros da vida de Vega parecem determinar os tormentos existenciais de Gaspar. Além disso, o filme apresenta uma direção de fotografia expressiva, que sabe valorizar tantos as belas paisagens do Rio de Janeiro quanto criar uma atmosfera sombria. Esses elementos promissores, entretanto, não conseguem se conciliar dentro de uma narrativa satisfatória. O roteiro se perde em viradas novelescas, além de seu subtexto ser esmiuçado sem maiores sutilezas. O tom contemplativo da abordagem do diretor Marcos Guttmann cai no enfadonho em algumas sequências, faltando para o filme uma mecânica narrativa mais ágil e contundente.

sexta-feira, dezembro 16, 2016

Elas me odeiam, mas me querem, de Spike Lee ***

Mesmo em um filme que não é dos mais expressivos de sua carreira, o diretor Spike Lee consegue deixar uma marca autoral indelével e capaz de suscitar alguns interessantes questionamentos artísticos e existenciais. Isso é o que fica evidente em “Elas me odeiam, mas me querem” (2004). A intenção do cineasta era fazer uma espécie de comédia farsesca a satirizar preconceitos raciais e valores comportamentais e sociais típicos da sociedade burguesa ocidental. O problema da obra, contudo, é que ela exigia uma abordagem mais ousada na construção de uma narrativa de tons libertários e de uma atmosfera que soubesse sintetizar erotismo e ácido sarcasmo. No geral, prevalece uma condução mais convencional de Lee, o que faz com que por vezes o filme caia no lugar comum. Ainda assim, o diretor consegue obter alguns bons momentos, principalmente por um notável virtuosismo na composição imagética de algumas cenas, no diferenciado trabalho de edição, na bela trilha sonora e em algumas passagens memoráveis do roteiro. Nesse último quesito, destaques para as sequências em que o protagonista Jack (Anthony Mackie) se torna um bem pago reprodutor para filhos de lésbicas, trazendo uma bem sacada combinação de ironia perversa e quente sensualidade (Spike Lee sempre teve ótima mão para filmar cenas de sexo).

quinta-feira, dezembro 15, 2016

Visões do passado, de Michael Petroni ***

O roteiro de “Visões do passado” (2015) está recheado dos clichês temáticos básicos dentro do gênero horror que sintetiza o sobrenatural e o psicológico: almas penadas, ambientação que junta o real e o metafísico no mesmo plano, segredos e traumas mal digeridos do passado. O diretor Michael Petroni tem a manha de saber conciliar tais traços óbvios da trama com uma narrativa enxuta, formalismo bem estruturado e atmosferas sombrias capazes de gerar alguma tensão para o espectador. Além disso, conta com um bom ator (Adrien Brody) no papel principal, dando uma certa profundidade existencial para o protagonista. Ou seja, no geral, não apresenta novidades e nem vai entrar para história dentro do gênero, mas é bem mais divertido e envolvente do que as produções “modernas” de horror que tanto apelam para a câmera subjetiva para esconder a sua incompetência narrativa.

quarta-feira, dezembro 14, 2016

Conspiração e poder, de James Vanderbilt **

Um gênero que tem cadeira cativa no cinema norte-americano nas últimas décadas é o dos dramas históricos-políticos. De certa forma, sempre há algum diretor com a pretensão de realizar uma obra no nível de importância artística e temática de um clássico como “Todos os homens do presidente” (1976). “Conspiração e poder” (2015) é mais uma produção que busca tal objetivo, ao mostrar o polêmico caso em que o programa televisivo “60 minutes” acusou o ex-presidente George W Bush de não servir durante a Guerra do Vietnã usando a influência política de seu pai e que depois não conseguiu sustentar suas alegações por falta de provas, com os jornalistas envolvidos caindo em descrédito perante o público. O assunto é interessante e complexo, refletindo muito do jogo de poder envolvendo a mídia e o Estado, mas o tratamento formal e narrativo proposto pelo diretor James Vanderbilt é tão desprovido de vigor e ousadia que acaba mais provocando uma sensação de enfado para o espectador do que alguma tensão ou mesmo indignação. Falta dinâmica e até alguma ironia dentro dos clichês melodramáticos nos quais o cineasta se afunda. É claro que o filme pode despertar uma certa curiosidade pelo seu lado informativo para aqueles que se interessam pelo cenário sócio-político contemporâneo. Como cinema, entretanto, é uma experiência bastante frustrante.

terça-feira, dezembro 13, 2016

De Palma, de Noah Baumbach e Jake Paltrow ***1/2

A filmografia do diretor norte-americano Brian De Palma é marcada por uma grande depuração da linguagem cinematográfica. Como ele mesmo declara em um determinado do documentário “De Palma” (2015), para ele o roteiro tem a função de preencher uma concepção estética e narrativa que vem em primeiro lugar na sua mente. Os cineastas Noah Baumbach e Jake Paltrow, realizadores da mencionada produção documental, se mostram em sintonia com tais preceitos artísticos do seu protagonista, fazendo com que o filme se baseie quase que exclusivamente em longos depoimentos de De Palma dissecando cada uma das produções que dirigiu. Além do detalhar o contexto histórico de realização delas, ele discute o seu método de trabalho, principalmente em termos de encenação, truques estéticos e concepção visual. Impressiona a autoconsciência que De Palma demonstra nessa entrevista em relação a sua carreira, no sentido de como depura as suas influências, principalmente no caso de Hitchcock, e discute com lucidez sobre a recepção de seus filmes por parte de público e crítica. Nesse último quesito, boa parte daqueles filmes que muitos consideraram fracassos artísticos e comerciais em suas respectivas épocas de lançamento com o tempo mereceram uma revisão mais cuidadosa e tiveram os seus vários méritos artísticos reconhecidos. Tal fenômeno se relaciona com a sofisticação da abordagem formal de De Palma, cuja apreensão sensorial por parte das plateias exige um olhar mais amplo do que o mero interesse por entretenimento rápido. Para incrementar esse panorama artístico sobre o ato de fazer cinema, Baumbach e Paltrow inserem trechos significativos de todos os filmes discutidos em cena, bem como de obras que influenciaram De Palma. Assim, o espectador entra numa atordoante viagem sensorial dentro da mente de pura lógica cinematográfica de De Palma.

segunda-feira, dezembro 12, 2016

Ninguém deseja a noite, de Isabel Coixet **1/2

No subtexto da trama de “Ninguém deseja a noite” (2015) há um forte teor de contestação dos valores sócio-culturais do mundo ocidental. As obsessões, caprichos e preconceitos da protagonista Joséphine (Juliette Binoche) sintetizam os interesses mercantilistas e opressores dos países europeus colonizadores em relação aos países explorados por tais nações, com tais intenções de dominação sendo mascarados por hipócritas máscaras de patriotismo, religiosidade e civilidade. O problema do filme é que a contundência desse discurso temático acaba tendo a sua força diminuída a partir de uma abordagem narrativa atrelada ao melodrama excessivamente convencional. A obra da diretora espanhola Isabel Coixet até consegue apresentar algumas belas sequências em termos plásticos diante de um conjunto eficiente de fotografia e direção de arte, mas falta uma atmosfera de tensão e violência mais convincente, que efetivamente consiga prender o interesse da plateia. Coixet se contenta em enveredar por facilidades narrativas, como uma trilha sonora pomposa e onipresente e exageros sentimentais, ao invés de apostar num registro mais sóbrio que conseguiria reproduzir com mais verdade e paixão o eterno embate entre o indivíduo dito “civilizado” e uma natureza inclemente que não se rende a uma suposta meritocracia.

sexta-feira, dezembro 09, 2016

Time will burn, de Marko Panayotis e Otávio Sousa ***

Para muita gente, o rock and roll significa bandas que vendem milhares de discos, que tem shows lotados em grandes espaços (arenas, estádios), que são famosas em termos midiáticos e outras amenidades afins. Na realidade, tal cenário representa uma exceção dentro da história desse gênero musical, pois grande parte do que se já fez de melhor no rock está vinculado a situações como a de tocar em muquifos para algumas dezenas, não ter vendagens expressivas de suas gravações, ser ignorado pela imprensa e pelo público “normal”. Ok, também é recorrente dizer que o rock foi absorvido pelo sistema, mas ele sempre trará dentro de si um certo aspecto de marginalidade e contestação. Por isso que o documentário “Time will burn” (2016) consegue ser tão cativante. O filme retrata um recorte temporal e territorial bem delimitado – o cenário underground de bandas paulistas e cariocas no período de 1990 a 1994 que se aventuravam dentro um som barulhento bastante influenciado por grupos estrangeiros como Jesus and Mary Chain, My Bloody Valentine e Stooges. Cantando em inglês e desenvolvendo suas carreiras dentro de um esquema independente envolvendo gravações em cassetes “demo” ou discos por selos alternativos, apresentações em pequenos bares e boates e divulgação por fanzines, cartazes e flyers xerocados, nenhuma delas atingiu o sucesso comercial ou entrou para os anais da história “oficial” do rock and roll, mas acabaram se tornando cultuadas e influentes para alguns de seus seguidores. Para contar essa história, os diretores Marko Panayotis e Otávio Sousa articulam uma narrativa eficaz e envolvente e um acabamento estético que sabe sintetizar requinte e o espírito “do it yourself”, concentrando-se basicamente na trajetória das quatros principais bandas desse movimento (Pin Ups, Killing Chainsaw, Mickey Junkies e Second Come) e sabendo valorizar a crueza e espontaneidade nas filmagens de depoimentos e os impressionantes registros de época com as apresentações de tais bandas. Além disso, o filme consegue amarrar um coerente conceito existencial e artístico que dá a devida dimensão histórica daquele fenômeno cultural, mostrando como ele ainda é ressonante na atualidade.

quinta-feira, dezembro 08, 2016

Animais fantásticos e onde habitam, de David Yates **1/2

É bem provável que o séquito de devotos da franquia “Harry Potter” esteja bem satisfeito com “Animais fantásticos e ondem habitam” (2016). Para que não houvesse muitas polêmicas, os produtores colocaram como diretor o britânico David Yates, que foi o responsável pelos últimos capítulos da série do jovem bruxo, para que fosse entregue justamente aquilo que o seu público esperava. Ou seja, é mais uma produção no gênero fantasia a manter um padrão estético/temático competente e asséptico feito para não chocar a grande maioria da audiência. Dentro dessa previsível fórmula narrativa dá até para dizer que há alguns destaques, como a beleza plásticas de algumas soluções visuais, movimentadas cenas de ação que por vezes divertem e um elenco de atuações carismáticas. Mas no geral o que predomina é uma sensação de um formalismo pouco imaginativo e de emoções plastificadas, algo como mais uma cópia pálida da ambientação e dos maneirismos típicos da trilogia “O senhor dos anéis”. Em alguns momentos, a trama mostra alguns vislumbres mais sombrios e interessantes, que até sugerem uma certa perspectiva de que a narrativa enverede por caminhos mais ousados. Essa impressão, contudo, é logo apagada pela pegada burocrática da direção de David Yates que retira as poucas possibilidades de uma atmosfera de tensão que efetivamente prenda a atenção do espectador. Pode ser que “Animais fantáticos...” renda algumas semanas de debates e discussões entre nerds, geeks e assemelhados, mas logo cairá no esquecimento quando entrar em cartaz  mais uma produção de “Star War”, “Jogos vorazes” ou afins. É assim as coisas seguem...

quarta-feira, dezembro 07, 2016

O filho eterno, de Paulo Machline *1/2

O que torna “O filho eterno” (2016) uma adaptação cinematográfica frustrante do romance original de Cristóvão Tezza não é simplesmente o fato de tal versão não ser fiel ao livro em questão, mas o fato de representar uma medíocre antítese da proposta artística contundente de Tezza. Afinal, a mencionada obra literária apresenta uma engenhosa combinação entre a ficção e o real para tratar da complexa relação entre o escritor e seu filho com Síndrome de Down, com sutilezas narrativas da prosa que apresentam uma carga simbólica e existencial desconcertante e que também versam sobre o confronto do conteúdo idealista e apolíneo da arte com a crueza emocional do cotidiano e dos sentimentos humanos. Nada disso está presente no filme de Paulo Machline, que se contenta em enquadrar a história do original literário numa formatação asséptica e previsível, diluindo a contundência dos conflitos e dilemas da temática numa fórmula de soluções fáceis e edificantes, fazendo tudo parecer uma novelinha global qualquer.

segunda-feira, dezembro 05, 2016

Amnésia, de Barbet Schroeder ***

A trama de “Amnésia” (2015) estabelece uma insólita ponte entre a Alemanha nazista dos anos 30 e 40 com a ensolarada e hedonista praia espanhola de Ibiza nos anos 90, simbolizada no platônico relacionamento amoroso entre Jo (Max Riemelt), um jovem DJ, e Martha (Marthe Keller), uma retraída senhora de 70 anos, ambos germânicos “exilados” no paradisíaco litoral. O que poderia adquirir contornos de bizarrice melodramática ganha contornos bem mais sóbrios e profundos a partir da sutileza da abordagem narrativa do diretor Barbet Schroeder. A direção de fotografia valoriza com sensibilidade os belos cenários naturais de Ibiza, mas não cai no mero registro “cartão postal”, estabelecendo, na verdade, um inquietante contraponto entre essa ambientação agradável com o passado obscuro de Martha e a ambiguidade de sua relação com Jo. Outro ponto alto artístico é a maneira como a música se insere no filme, servindo como uma espécie de elo simbólico a retratar a cumplicidade entre o par de protagonistas e também o processo de reaproximação existencial de Martha com o mundo. Nesse sentido, os belos temas eletrônicos da trilha sonora realçam tanto o particular contexto cultural dos cenários da trama, afinal Ibiza é o grande ponto de convergência mundial da música eletrônica dançante, como um certo caráter libertário de “Amnésia” na exposição das relações humanas.

sexta-feira, dezembro 02, 2016

A chegada, de Denis Villeneuve ***1/2

Talvez o grande problema para que o canadense Denis Villeneuve se firmasse como um dos cineastas mais promissores a surgirem nos últimos anos é uma excessiva pretensão “autoral”. Não que ambição artística seja um problema, mas em seus filmes dava para perceber uma boa mão na encenação e um trabalho diferenciado na direção de atores e que por vezes falhavam como narrativa diante de um certo tom solene e excessivamente reflexivo que deixava o ritmo de suas histórias um tanto truncado, além dos seus respectivos roteiros se perderem em excessos novelescos. A ficção científica “A chegada” (2016) é o filme de Villeneuve que melhor consegue resolver esse nó criativo. Assim como em sua produção imediatamente anterior, “Sicário” (2015), fotografia e trilha sonora são grandes pontos altos da obra, ajudando a compor uma atmosfera melancólica e algo metafísica para uma trama versando sobre a chegada de alienígenas na Terra, apresentando algumas referências visuais e mesmo de ambientação que lembram Terrence Malick e Andrei Tarkovsky. A sofisticação de tais elementos estéticos consegue se encaixar com naturalidade dentro de uma lógica narrativa que se liga a uma estrutura de filme de gênero, ou seja, o tom contemplativo está em sintonia com uma dinâmica tradicional da ficção científica contemporânea. É de se ressaltar ainda a ousada concepção imagética dos efeitos especiais e um roteiro que consegue dosar de maneira equilibrada os clichês habituais da aventura fantástica com a pretensão e complexidade temáticas a envolver viagens no tempo, comentário sócio-político e utopia sci fi.