quarta-feira, abril 30, 2014

Hoje eu quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro ***

A formatação de “Hoje eu quero voltar sozinho” (2013) é tradicional, vinculada ao gênero drama romântico no estilo “boy meets girl”, com leves toques cômicos. Mas talvez a força motriz do filme esteja fincada justamente nesse aparente convencionalismo narrativo, que apresenta uma única (e fundamental) variação: na verdade, o estilo é “boy meets boy”. De certa forma, é como se aquelas clássicas produções oitentistas de John Hughes fossem recriadas sob um prisma mais agridoce e menos irônico e em sintonia com os dilemas existenciais da juventude desse século. A questão da homossexualidade é focada de forma tão leve que beira a ousadia – elementos geralmente associados a essa temática como preconceito e culpa são somente tangenciados como se fossem apenas meros detalhes. O aspecto gay do relacionamento entre os garotos é uma nuance de um espectro maior que envolve o universo adolescente contemporâneo: o valor das amizades, a perda da inocência, os conflitos geracionais com os adultos, a descoberta das primeiras paixões. O estilo de filmar do diretor Daniel Ribeiro é fluido, com uma concepção visual luminosa e sem maiores afetações, mas que se permite a alguns truques estéticos e sensoriais interessantes, como nas belas e sensuais sequências oníricas do protagonista Leonardo (Guilherme Lobo). Esse tom geral em que tudo em “Hoje eu quero voltar sozinho” parece tão casual e natural, no final das contas, acaba revelando uma contundência inesperada em meio a um cenário cultural e comportamental ainda permeado por conotações obtusas e obscurantistas vindas de setores da mídia e da sociedade.

terça-feira, abril 29, 2014

Na neblina, de Sergei Loznitsa ***1/2

É provável que a 2ª Guerra Mundial é o evento histórico mais abordado no cinema nos últimos 60 anos. Muitas produções antológicas relacionadas ao assunto foram realizadas, mas boa parte também de outras obras relacionadas ao conflito pouco acrescentaram ao tema. A produção russa “Na neblina” (2012) é um contundente exemplar do primeiro caso. Geralmente quando se aborda a participação da União Soviética no conflito há a tendência de enfatizar a resistência heróicas dos russos frente a tremenda força bélica nazista, mas no caso do filme em questão do diretor Sergei Loznitsa a visão é bem mais sombria e menos idealizada. A obra se foca em uma zona obscura, mostrando episódios de colaboracionismo e a conseqüente vingança contra aqueles que ajudaram os invasores alemães. Mas na abordagem formal e temática de Loznitsa não há espaço para conotações épicas e patrióticas. As criaturas que vagam pela narrativa são indivíduos que apenas procuram sobreviver de alguma maneira ou agem por impulsos mesquinhos. A atmosfera desesperançada é reforçada por uma estética árida, em que a ausência de trilha sonora, a fotografia esmaecida e as sutis variações de longos planos sequências e fixos criam uma ambientação sufocante e fatalista, configurando “Na neblina” como uma assustadora parábola moral sobre a loucura e a crueldade da guerra.

segunda-feira, abril 28, 2014

Capitão América 2 - O soldado invernal, de Anthony e Joe Russo ***1/2

O segredo para que uma adaptação cinematográfica de uma HQ de super-herói seja bem sucedida talvez nem seja tão complicado assim. Num primeiro momento, como esse tipo de filme se enquadraria no gênero aventura, seria muito recomendável que o cineasta envolvido no projeto fosse um cara com boa mão para cenas de ação. O segundo ponto fundamental seria de que o roteiro e a ambientação da produção soubessem manter a essência original do personagem em questão, preservando aquilo que fosse fundamental na caracterização daquela figura e do seu universo. A atenção a essa simples equação teórica é a chave para entender porque “Capitão América 2 – O soldado invernal” (2014) é o melhor filme solo da Marvel como produtora cinematográfica desde que ela decidiu estabelecer esse universo de obras que interagem entre si. A trama é básica e descomplicada, colhendo elementos dramáticos importantes dentro da trajetória do protagonista nos quadrinhos, mas sem dar aquela impressão de estar apenas juntando fatos importantes de forma aleatória. Assim, percebem-se questões que são intrínsecas à natureza do herói – a corrupção de agentes do governo que levam o Capitão América (Chris Evans) a questionar o seu próprio patriotismo, o seu elevado senso moral que contrasta com o cinismo da sociedade contemporânea, a combinação de força física e determinação mental que o torna uma força da natureza incontrolável. Além disso, a direção segura dos irmãos Anthony e Joe Russo cria uma narrativa dinâmica e repleta de sequências de ação deslumbrantes no seu detalhismo cênico. As cenas do atentado contra Nick Fury (Samuel L. Jackson) e os brutais embates entre o Capitão e o Soldado Invernal (Sebastian Stan), por exemplo, são primorosas na conjunção de tensão e violência gráfica.


Diante do triunfo artístico e comercial de “Capitão América 2 – O Soldado Invernal”, a Marvel retoma o interesse e curiosidade pelas suas próximas produções depois da frustração com o tom engraçadinho e anódino de “Thor 2” e “Homem de ferro 3”.

quinta-feira, abril 17, 2014

Crumb, de Terry Zwigoff ****





O diretor Terry Zwigoff obtém um extraordinário triunfo artístico no documentário “Crumb” (1994): ao realizar a cinebiografia do quadrinista Robert Crumb ele não consegue apenas fazer um amplo inventário pessoal do seu protagonista, mas também um retrato cru e sem concessões das hipocrisias e disfunções da sociedade norte-americana (e, por conseqüência, da ocidental também) e do papel da arte como forma de contestação dos padrões vigentes. A produção não se limita a fazer um panegírico de Crumb, sendo que Zwigoff tanto apresenta cenas que trazem declarações devotadas e apaixonadas de admiradores dos gibis do homenageado quanto críticas ferozes de artistas à misoginia e ao misantropismo que permeia a sua obra. Por outro lado, também faz dos irmãos do quadrinista figuras tão fascinantes quanto o próprio Robert, levando a uma constatação perturbadora – que talvez a única coisa que diferencie Crumb de seus dois irmãos desajustados e perturbados é o fato do primeiro ter conseguido sucesso artístico e comercial com os seus quadrinhos. Mas mais desconcertante é ver que o que torna única a arte de Crumb é justamente como ele incorpora suas obsessões e sua tumultuada biografia familiar como matéria prima nas suas histórias e desenhos, tendo por resultado algumas das gozações mais contundentes contra o american way of life.

A estética adotada por Zwigoff para emoldurar essa saga psico-intimista-social pode parecer simples, mas na verdade é bastante adequada e sofisticada para a proposta de ironia ácida tanto do cineasta quanto de Crumb – um registro visual granulado, por vezes emulando um tom de vídeo caseiro familiar, em que idéias de execução simples e quase desleixada revelam na sua essência o espírito anárquico de Crumb. A seqüência, por exemplo, em que a câmera foca e acompanha o autor lendo e explicando uma HQ sua é quase uma aula na forma em que relaciona e aproxima as técnicas narrativas do cinema e dos “comics”.

quarta-feira, abril 16, 2014

Crônica do fim do mundo, de Mauricio Cuervo **


Dá até para perceber que a intenção do diretor Mauricio Cuervo tem um certo caráter ambicioso em “Crônica do fim do mundo” (2012) ao combinar elementos diversos como humor negro, drama familiar, crítica social e até elementos insólitos como a crença no final dos tempos segundo o calendário maia, procurando, assim, fazer uma espécie de retrato contemporâneo da sociedade de seu país. Além disso, escolheu um ator muito carismático, Victor Hugo Morant, para interpretar o protagonista Pablo Bernal, um excêntrico idoso que há mais de duas décadas não sai de casa devido a um trauma com terroristas e que passa os dias ligando para antigos e atuais desafetos para destratá-los verbalmente. Todas as boas ideias do filme, entretanto, esbarram numa direção muito comedida por parte de Cuervo. A concepção formal do cineasta praticamente nunca ultrapassa um cansativo padrão de longas tomadas fixas a registrar intermináveis diálogos. É uma produção que por vezes até mantém a atenção, principalmente pela atuação de Morant, mas que não arrebata em nenhum momento. Vale mais como uma curiosidade para conhecer a cinematografia recente de outros países sul-americanos.

terça-feira, abril 15, 2014

Revelando Sebastião Salgado, de Betse de Paula **1/2


A qualidade do trabalho fotográfico de Sebastião Salgado é praticamente inquestionável. Dessa forma, a diretora Betse de Paula tem a boa sacada de centrar a narrativa do documentário “Revelando Sebastião Salgado” (2012) na arte do seu biografado, mostrando o fotógrafo a explicar suas escolhas técnicas e temáticas, a trajetória histórica de suas principais obras e detalhes relevantes da sua vida (fatos esses que por vezes se confundem com eventos importantes da própria história recente do Brasil). Por outro lado, por mais que se fique encantado com a beleza dos fotos de Salgado, não há como não se sentir incomodado com a estética conformista concebida por de Paula. A narrativa basicamente se concentra em depoimentos, registros de arquivo e a o material fotografado por Salgado e sua esposa. A cineasta não demonstra o menor traço de ousadia e criatividade na ambientação das entrevistas, e por vezes o formalismo do seu documentário remete a um tom que beira o institucional, dando a impressão de se estar assistindo a uma hagiografia de Salgado. Faltou a vontade de colocar algum aspecto contraditório, um elemento de tensão. Mesmo assim, “Revelando Sebastião Salgado” é uma produção recomendável, ainda que quase exclusivamente pela força da figura de seu protagonista e do conjunto de sua obra.

segunda-feira, abril 14, 2014

Noé, de Darren Aronofsky ***


Confesso que não tenho grandes conhecimentos sobre teologia. Dessa forma, não posso avaliar “Noé” (2014) pela sua profundidade no campo da religião. Só consigo ter a impressão superficial que o filme de Darren Aronofsky não tem o perfil de converter neófitos para a religião em questão e nem a capacidade de abalar a fé dos crentes. Deus é retratado na produção mais como uma entidade vingativa e de razões inescrutáveis. Assim, o que dá para considerar realmente é se o filme é um espetáculo cinematográfico satisfatório, e nesse quesito até que Aronofsky dá conta do recado. Na realidade, o filme está mais para uma versão super-heróica da história de Noé do que para algum drama sério sobre catolicismo e afins. A trama é baseada numa HQ escrita pelo próprio Aronofsky e a concepção visual do filme, em alguns momentos, realmente remete a “comics” na escola da revista européia Metal Hurlant (impressão essa, aliás, que “A fonte da vida”, filme anterior de Aronofsky e que também se baseava nuns quadrinhos próprios do cineasta, já deixava bem forte). Quando a violência e os efeitos especiais tomam conta da encenação, o ritmo narrativo de “Noé” fica bem intenso, configurando os melhores momentos do filme. O que impede que a obra transcenda é um apego a excessos de convencionalismos formais e temáticos. Do jeito que ficou, “Noé” é uma produção de aventura respeitável, algo como a Bíblia adaptada segundo a ótica Marvel, mas ainda assim abaixo do melhor que Aronofsky já realizou (“A fonte da vida”, “O lutador”, “O cisne negro”).

sexta-feira, abril 11, 2014

Virginia, de Francis Ford Coppola **


Em um primeiro momento, pode parecer incompreensível que o cineasta responsável por algumas das obras mais geniais da história do cinema pôde se contentar em entregar um filme tão mequetrefe e ordinário quanto “Virgínia” (2012). O roteiro batido, as trucagens capengas, a incapacidade se manter uma atmosfera de tensão decente, a narrativa burocrática, enfim, tudo isso faz mais pensar numa produção qualquer de um diretor iniciante do que vinda de um nome tão consagrado quanto Francis Ford Coppola. E se pensarmos que “Tetro”, o penúltimo filme de Coppola, era uma obra sóbria e até rigorosa no seu formalismo e construção dramática, mais se estranha essa opção do diretor por uma concepção estética tão desleixada. Por outro lado, essa fuleiragem do filme parece ter uma conotação simbólica – muita coisa em “Virgínia” alude a algo de decadência, a um certo tom crepuscular, a começar pela caracterização de um gordo e canastrão Val Kilmer no papel do protagonista, um escritor picareta e traumatizado por tragédias familiares. Além disso, há a impressão de que Coppola buscou uma conexão afetiva com o seu próprio passado, bem no início de sua carreira, quando colaborava com o produtor Roger Corman em películas baratas de horror, com destaque para “Demência 13” (1963), que, por sinal, era muito melhor que esse “Virgínia”. Assim, é como se Coppola reforçasse o seu amor pelo cinema de gênero (afinal, é o mesmo homem que dirigiu o extraordinário e sangrento “Drácula de Bram Stoker”), mas também afirmasse a sua condição atual de quase marginalidade perante a Hollywood contemporânea ao lançar algo tão tosco quanto “Virgínia”.

quinta-feira, abril 10, 2014

Cortinas fechadas, de Jafar Panahi e Kambozia Partovi ***


Determinados filmes não podem ser devidamente apreciados e compreendidos sem que se procure entender também contexto social e político que os cercam. Esse é justamente o caso da produção iraniana “Cortinas fechadas” (2013). Fruto de uma conjuntura nacional em que predominam a censura e as perseguições políticas, a obra dirigida por Jafar Panahi e Kambozia Partovi se vale de uma intrincada estrutura narrativa, em que suspense, metalinguagem e recursos documentais geram uma obra desnorteante, em que os limites da realidade e a fantasia nunca são precisos. Ao longo do filme, a atmosfera de tensão é constante, apesar da presença física daqueles que oprimem as personagens em cena nunca se configurar de forma plena. A produção evoca esse poder repressivo castrador pela sugestão, usando sons, silêncios e gestos. Nesse sentido, a encenação plena de angústia individual perante uma entidade opressora que se apresenta como uma sombra ameaçadora cujos ataques e motivações são imprevisíveis configura uma ambientação kafkaniana. Tais escolhas formais e temáticas resultam numa obra carregada de pesada simbologia, por vezes até hermética, mas que se revela coerente e natural com a presente situação política-religiosa do Irã.

quarta-feira, abril 09, 2014

A gaiola dourada, de Ruben Alves *1/2


É inegável que permeiam em “A gaiola dourada” (2012) várias questões prementes do mundo contemporâneos como o tratamento exploratório para imigrantes, o preconceito de classes e o individualismo exacerbado. O tratamento oferecido pelo diretor Ruben Alves para tais temas, entretanto, é destituído de vigor e criatividade, com o cineasta se conformando em formatar tudo como uma anódina comédia romântica e fazendo com que a produção apenas tangencie os pontos mais perturbadores que o seu conteúdo textual poderia oferecer. O roteiro tem claramente um certo caráter pessoal ao focar os percalços de uma família de portugueses radicados em Paris, mas Alves parece confundir o tom carinhoso com uma abordagem fofinha, engraçadinha e sentimentalóide, daquelas para não ofender niguém, com uma trama que se apóia em truques e viradas tão formulaicas que acabam retirando quaisquer traços mais contundentes de tensão. A própria direção de fotografia de “A gaiola dourada” é reflexo da equivocada concepção artística de seu diretor, em enquadramentos que emulam assépticos cartões postais de pontos turísticos de Paris e do interior de Portugal.

terça-feira, abril 08, 2014

Rio 2, de Carlos Saldanhas **1/2


Como eu não tinha gostado de “Rio” (2011) e assim não tinha grandes expectativas para a sua sequência, confesso que até me surpreendi de forma positiva com “Rio 2” (2014). É claro que algum problemas da primeira parte permanecem, principalmente no que concerne aos bregas e tediosos números musicais, à falta de carisma de boa parte das personagens e a alguns excessivos convencionalismos formais (as caracterizações visuais dos cenários se limita a um detalhismo fotográfico que mais evoca um cartão postal do que uma recriação imaginativa). O que faz essa segunda parte ser mais satisfatória é uma narrativa mais dinâmica e que enfatiza com maior veemência a ação, criando uma tensão mais efetiva para a trama, ainda que o roteiro seja rigoroso na sua previsibilidade. Ou seja, está bem distante de ser uma obra-prima, mas pelo menos não induz ao sono.

segunda-feira, abril 07, 2014

Um castelo na Itália, de Valeria Bruni Tedeschi ***


Num primeiro momento, a premissa da trama de “Um castelo na Itália” (2013) não parece complexa, ao focar uma família economicamente abastada que de repente se vê obrigada a se desfazer de bens tradicionais (inclusive o castelo do título) para saldar dívidas com o fisco francês. O que torna inquietante essa obra dirigida pela também atriz Valeria Bruni Tedeschi, que inclusive atua como protagonista da produção, é uma encenação livre e atípica na sua abordagem que trafega entre o cômico, o estranho e o improvisado sem maiores cerimônias. A movimentação do elenco em cena e a direção de fotografia de registro seco e despojado emulam um cinema intuitivo e vigoroso. A narrativa tem um certo pendor para o fragmentado: o entendimento do que se passa no roteiro vem por excertos sutis dos diálogos, pela tensão dramática latente e silenciosa entre as personagens. Também predomina no filme uma atmosfera de “nobre decadência”: os membros da família se comportam como dinossauros feridos e à beira da extinção, tanto pela doença quanto pela velhice ou por instabilidades psicológicas, mas sem nunca perder uma ácida verve irônica em relação a sua derrocada e o mundo que os rodeia. Um dos méritos de Tedeschi é fazer com que o espectador se realmente se interesse por essas criaturas derrotadas, provocando a curiosidade de como teriam sido os seus dias de glórias. Nesse sentido, a figura do artista alcoólatra e endividado Serge (Xavier Beauvois), antigo amigo/amante da família, representa a síntese da nostalgia melancólica que emana com naturalidade de “Um castelo na Itália”. No mais, a trilha sonora composta por antigas cançonetas e chansons além de expressivos temas de música clássica pontua com sensibilidade essa elegia aos bons tempos que não voltam mais.

sexta-feira, abril 04, 2014

Em busca de Iara, de Flavio Frederico **


Documentários de viés subjetivo, em que algum de seus realizadores tem uma ligação emocional próxima com o objeto de sua temática, sempre terão um certo caráter narcisista. Assim, o que pode efetivamente determinar a qualidade artística de tais obras é a forma com que elas lidam com esse aspecto de egocentrismo. Em “Elena” (2012), por exemplo, o verdadeiro foco da obra estava na forma com que os fatos mostrados na tela afetavam a própria vida da diretora Petra Costa, mas a cineasta fazia com que essa egotrip recebesse um tratamento estético diferenciado e tivesse também um alcance humanista que fugia dos clichês e obviedades. Já “Em busca da Iara” (2013) esse equilíbrio entre o pessoal e o universal não consegue se estabelecer num nível satisfatório. O filme do diretor Flávio Frederico mostra a vida da guerrilheira Iara Iavelberg, principalmente o período em que viveu na clandestinidade durante a ditadura militar, tendo como principal norte as impressões da roteirista Mariana Pamplona, sobrinha de Iara. O texto intimista de Mariana é quem guia os passos da produção, tanto na valorização de depoimentos diversos quanto no caráter informativo do uso de imagens e documentos. Por várias vezes, a roteirista se coloca até como “personagem” do documentário, tanto aparecendo de corpo e voz nas entrevistas como interagindo de forma mais pessoal com entrevistados. Talvez o principal motivo para uma presença tão ostensiva da roteirista esteja na semelhança física com a sua tia, como se Mariana e o diretor quisessem dar a impressão de uma versão rediviva da protagonista pairando sobre amigos, antigos companheiros e mesmos os inimigos da época. A verdade, entretanto, é que a presença de Mariana acaba sendo prejudicial para a dinâmica da narrativa – gasta-se muito tempo mostrando deslocamentos, tratativas para entrevistas e outros episódios burocráticos ou prosaicos que tiram boa parte da objetividade e contundência do documentário. Tendo ainda um tratamento formal rotineiro na combinação de material de arquivo com entrevistas, “Em busca de Iara” acaba ficando no meio do caminho: até informativo como material histórico, mas insosso como produto cinematográfico.

quinta-feira, abril 03, 2014

Cidade cinza, de Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo **1/2


Os dilemas que envolvem o grafite como meio de expressão cultural tanto refletem discussões contemporâneas como atemporais sobre a natureza da arte e a sua importância para a sociedade. Fenômeno típico desses tempos urbanos e caóticos que vivemos, o grafite tem dificuldade em receber um reconhecimento amplo e oficial como arte pelo fato de ter sua origem vinculada às ruas e mesmo a um certo caráter transgressivo. Afinal, as pinturas são feitas em muros e paredes públicos e particulares, assim como seu “gêmeo” existencial, a pichação – esse último, de modos e fins absolutamente “foras-da-lei”. O documentário “Cidade cinza” (2012) expõe tais dilemas ao analisar casos pontuais que mostram o conflito entre consagrados grafiteiros brasileiros com a prefeitura municipal de São Paulo, quando essa tinha por alcaide Gilberto Kassab. O filme não tem o mesmo grau de contundência dramática e nem o formalismo sujo de “Luz, câmera, pichação” (2011), obra documental que versava sobre as origens da pichação no Brasil, mas mesmo assim oferece um interessante retrato temático, principalmente quando evidencia que a visão repressiva e mesquinha de burocratas acaba se tornando o único parâmetro fático para que o trabalho criativo e minucioso de artistas seja apagado ou destruído sem qualquer possibilidade de discussão em nome da assepsia visual e de um discutível “bom gosto” estético. E a partir desse caso particular, mostra também a mentalidade provinciana de governo e sociedade ao se verem diante de manifestações artísticas que destoam dos ditames óbvios e superficiais do que habitualmente é vendido como “entretenimento saudável”.

quarta-feira, abril 02, 2014

Entre nós, de Paulo Morelli **1/2


O diretor Paulo Morelli envereda por um gênero bem definido em “Entre nós” (2013), o do melodrama geracional, para fazer um retrato das aspirações e desilusões de um grupo de “jovens adultos” aspirantes a escritores no período de 1992 e 2002, em que esse recorte intimista também serviria para focalizar o próprio imaginário dos dilemas e contradições do Brasil (ou pelo menos de sua classe média) naquele período. Morelli mostra considerável competência na fluência da narrativa e oferece uma bonita concepção visual para o filme ao focalizar a trama numa casa de campo no meio de montanhas. O que incomoda na produção é um certo grau de esquematismo formal e temático que tira a naturalidade da encenação bem como revela uma certa superficialidade incômoda. As caracterizações de situações e personagens tendem para estereótipos previsíveis, o que acaba atenuando o impacto que o filme poderia ter sobre o espectador. O próprio mote principal do roteiro (a do escritor que assumiu a autoria do livro do amigo que morreu e acabou recebendo indevidamente os louros) acaba se revelando um recurso cansativo que não explora de forma devida as possibilidades criativas da premissa, jogando o filme, em alguns momentos, para a vala do suspense capenga. E mesmo como visão pessoal da condição política e social nacional da época “Entre nós” fica a dever pelos diálogos discursivos e poucos sutis – o subtexto chega ao espectador de forma atabalhoada e um tanto ingênua. E no próprio elenco há descompasso nas composições dramáticas, em que os registros histriônicos de Caio Blat e Marta Nowill destoam das interpretações mais sutis de Paulo Vilhena, Maria Ribeiro e Carolina Dieckmann.

terça-feira, abril 01, 2014

Instinto materno, de Calin Peter Netzer ***1/2


Nos moldes de outras produções conterrâneas como “A morte do senhor Lazarescu” (2005) e “4 meses, 2 semanas e 3 dias” (2007), o filme romeno “Instinto materno” (2013) impressiona pela tom seco da sua narrativa e pela crueza com que expõe as relações humanas. A partir da história de uma mulher de classe média alta (Luminita Gheorghiu) que faz de tudo para livrar a cara do filho (Bogdan Dumitrache), com quem vive às turras, que atropelou e matou uma criança de família humilde, o diretor Calin Peter Netzer faz uma radiografia implacável de sociedade contemporânea ocidental, tanto na forma com que retrata distorcidos valores ditos “civilizados” quanto a incapacidade de mãe e filho se relacionarem de forma digna. No nível familiar e também nas relações de classe social, o filme perturba ao evidenciar as relações de dominação que se estabelecem em torno da protagonista no plano íntimo, nas várias oportunidades em que procura controlar a vida particular do filho adulto, e num plano mais amplo, quando procura usar de sua influência econômica para subjugar e convencer policiais, juristas e a própria família da vítima de que seu primogênito não deve ser processado e condenado. O tom sombrio e pessimista da narrativa encontra soluções visuais bastantes expressivas por parte de Netzer, que se vale de uma atmosfera tensa que acentua a sensação de mal estar constante que permeia o filme e também de uma direção fotografia que explora com precisão claros e escuros em cada fotograma, como se fosse uma metáfora imagética a reforçar o lado obscuro das personagens. A conclusão de “Instinto materno” encontra uma possibilidade de redenção para mãe e filho, ainda que de maneira difusa, confirmando o forte caráter humanista do filme.