Não dá para dizer que “Amigos filmam amigos” (2018) seja
propriamente um documentário de longa-metragem. Está mais para uma ação de
amigos e admiradores do cinema da Boca do Lixo paulista que fizeram uma espécie
de homenagem fílmica a alguns dos principais profissionais daquele cenário e
época. São cinco episódios conduzidos cada um por diretores diferentes e com
resultados artísticos igualmente diversos. Se a parte que focaliza o ator José
Lopes (o Índio) peca pelo excesso de sentimentalismo, aquelas protagonizadas
pelo diretor de fotografia Virgílio Roveda, o ator Satã e o cineasta Tony
Ciambra são apenas corretas, ou seja, informativos e bastante convencionais (o
que não deixa de ter seus atrativos para aqueles interessados na história do
cinema nacional). O melhor episódio disparado é o dedicado ao diretor José
Miziara, responsável por alguns grandes sucessos comerciais nos anos 80. Gabriel
Carneiro, diretor responsável por esse segmento, vai muito além do didático,
conseguindo fazer um retrato contundente e melancólico sobre um talentoso
artista amargurando um ostracismo devido aos impiedosos ditames da indústria
cultural contemporânea.
Anti-Dicas de Cinema: o blog cinematográfico de André kleinert
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, fevereiro 15, 2019
quinta-feira, fevereiro 14, 2019
A misteriosa morte de Pérola, de Guto Parente ***1/2
Em um primeiro momento, a primeira referência que pode vir à
mente quando se assiste a “A misteriosa morte de Pérola” (2014) é a filmografia
de David Lynch. Estão lá na narrativa do filme de Guto Parente uma série de
recursos narrativos que o genial cineasta norte-americano usou com recorrência
em seus trabalhos – a trama que se divide em dois momentos distintos que possuem
uma obscura inter-relação entre eles, uma atmosfera que trafega sem maiores
cerimônias entre a realidade e o delírio, a encenação que também varia entre o
naturalismo e a estilização. Apesar de tais elementos familiares, Parente ainda
assim consegue ter um traço de originalidade em suas concepções artísticas e
demonstra saber manter a atenção do espectador mediante uma forte tensão
dramática na manipulação do ritmo narrativo e do rigor imagético da direção de
fotografia. Não se tem uma produção no gênero suspense “puro”, pois há uma
carga intimista/psicológica densa tanto na exposição minuciosa do desolado cotidiano
e do processo de fragmentação psíquica de Pérola (Ticiana Augusto Lima) em seu
autoexílio em um apartamento no interior da França quanto na visita que o seu
namorado faz ao apartamento depois da morte da garota. Parente acentua e
harmoniza essa perturbadora combinação entre suspense e drama a partir de
algumas elegantes nuances formais, vide a contraposição entre a sua judiciosa
encenação e a inserção de falsos e “amadores” trechos documentais e o uso de
uma trilha sonora repleta de temas musicais dissonantes.
quarta-feira, fevereiro 13, 2019
Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes ****
Logo no início da narrativa em “Infernino” (2018),
ambientação e encenação remetem ao clássico do cineasta alemão Rainer Werner
Fassbinder, “Querelle” (1982) – em um misto de estilização e sordidez, um
boteco de beira de cais caindo aos pedaços abriga um atendente vestido de
coelho, uma cantora de cabaret-brega, um tecladista clone de Beethoven e uma
clientela composta basicamente de desajustados vestidos de refugos de cultura
pop. O grande mérito dos diretores Guto Parente e Pedro Diógenes é fazer com
que o filme fuja da paródia besta e se configure como uma alegoria ácida e pungente
sobre os conturbados dias atuais. Para isso, a obra se vale de uma original
reciclagem de melodrama sórdido aos moldes do já citado Fassbinder e de um
realismo neon herdeiro da obra-prima “O fundo do coração” (1981). A síntese de
referências e citações sempre se mostra empolgante e filtrada por uma
particular visão estética e temática. Parente e Diógenes se valem de truques visuais
simples e de grande eficácia imagética. Nesse sentido, as sequências mais
oníricas e delirantes encantam pela sutileza entre o naif e o sofisticado de
suas trucagens baratas. E mesmo os momentos mais naturalistas são perpassados
por um requintado barroquismo artesanal e repleto de nuances. Ou seja, a partir
de parcos recursos de produção os diretores extraem o máximo em um formalismo
que demonstra rigor e criatividade, sabendo ainda aproveitar com sensibilidade
os demais elementos narrativos, com destaque para os ótimos temas originais da
trilha sonora e algumas intensas atuações de seu elenco (com grande destaque
para Yuri Yamamoto e Démick Lopes).
terça-feira, fevereiro 12, 2019
Singapore Sling, de Nikos Nikolaidis ****
Em sua época áurea, nas décadas de 1940 e 1950, o cinema
noir era marcado por uma fascinante ambiguidade artística – influenciado esteticamente
pela literatura policial “pulp” e pelo expressionismo alemão, toda a
perversidade e sordidez presente em seu subtexto tinha que se adaptar aos
moldes narrativos tradicionais do cinema comercial norte-americano da época e,
principalmente, aos padrões morais dos códigos de condutas dos grandes
estúdios. A produção grega “Singapore Sling” (1990) parte de um pressuposto
artístico inquietante – se não houvesse essas limitações da época em que se
desenvolveu, como seria o cinema noir? A resposta oferecida pelo resultado final
do filme dirigido por Nikos Nikolaidis pode parecer puramente especulativa, mas
também oferece alguns momentos memoráveis na sua síntese entre clichês
narrativos de filme policial clássico, toques de exploitation e forte teor
experimental. Roteiro e encenação deixam aflorar de maneira impiedosa
escatologia, incesto, ostensivo brutalismo gráfico, despudorada sexualidade e
um doentio senso de humor, tudo filtrado dentro de uma concepção formal de
forte rigor plástico e perpassado por uma atmosfera entre o melancólico e o
poético. No todo, é uma obra inclassificável e desconcertante, o que ajuda
explicar porque foi proibida em alguns países ou simplesmente nem foi exibida
comercialmente em outros mercados (inclusive o Brasil). É necessário,
entretanto, que apreciadores de um cinema que vá além das grandes bilheterias
ou de premiações do Oscar corram atrás dessa pérola de insólita beleza.
segunda-feira, fevereiro 11, 2019
A casa do cemitério, de Lucio Fulci ****
O horror cinematográfico concebido pelo diretor italiano
Lucio Fulci parece habitar um universo paralelo dentro do próprio gênero. Por
mais que suas obras flertem com temas e truques narrativos bastante
característicos de outros filmes dessa linhagem, a encenação e atmosfera
rarefeitas e o teor imagético doentio constantes em sua filmografia marcam uma
diferenciação perturbadora e contundente para o seu público. “A casa do
cemitério” (1981) é um comprovante enfático do ideário artístico muito
particular de Fulci. O roteiro gira em torno da velha premissa de uma casa
mal-assombrada, mas isso é apenas um detalhe/pretexto para uma tenebrosa viagem
sensorial, vide a combinação desconcertante entre fotografia e direção de arte
que sintetizam climas góticos e puro gore escatológico, com direito a muitos
vermes saindo de ferimentos e mortes atrozes à base de perfurações, lacerações
e afins. Ainda que brutalidade gráfica seja muito presente, Fulci consegue
preservar um teor muito original de suspense, principalmente pelo fato de que a
origem do horror vem de fontes incertas ou mal-explicadas (na verdade, para
Fulci explicações plausíveis para o mal constante que paira nas tramas de seus
filmes são completamente dispensáveis – o que vale é simplesmente a
consequência desse mal). Se para os apreciadores do horror asséptico das
franquias cinematográficas norte-americanas do gênero na atualidade assistir a “A
casa do cemitério “ pode ser uma experiência indigesta, para os demais
apreciadores do terror cinematográfico essa obra-prima de Fulci é um verdadeiro
prato-cheio estético/existencial.
sexta-feira, fevereiro 08, 2019
Assunto de família, de Hirokazu Kore-eda ***1/2
Em termos temáticos, o cinema do diretor Hirokazu Kore-eda
gira em torno das relações familiares. Sua abordagem artística-existencial,
contudo, não se vincula a fazer loas sobre tal matéria. Pelo contrário – os
conturbados relacionamentos entre pais, filhos e demais parentes servem como
uma espécie de reflexo das relações humanas em si no mundo contemporâneo. Nesse
sentido, “Assunto de família” (2018) é uma das obras mais agudas de Kore-eda. A
“família” que acolhe Yuri, uma pequena garota fugitiva de um lar de classe
média alta onde sofre maus-tratos, está mais para um grupo de deserdados que se
uniu quase que por caso fortuito. Ainda que a relação entre tais pessoas seja
marcada por uma certa fragilidade sócio-econômica, e que mesmo algumas delas
pratiquem pequenos crimes e contravenções para custear a sobrevivência, o
vínculo sentimental entre elas vai se mostrando cada vez mais pungente. A
mensagem do subtexto da trama é sutil e clara – em uma sociedade de consumo
marcada pela assepsia emocional e por valores mercantilistas, a instituição da
família biológica tradicional deixou de ser garantia de estabilidade emocional
para os seus membros. Mesmo que de maneira inconsciente, o novo agrupamento em
que Yuri se insere é marcado por uma espontaneidade e solidariedade que os
coloca em atitude de desafio perante o ordenamento social vigente. Por isso
mesmo, a harmonia “familiar” estabelecida entre eles é de existência precária e
previsivelmente se desfaz quando confrontada com a forças de segurança institucionais.
Na nova vida que cada um deles ganha dentro dos padrões oficializados, o afeto
e generosidade que recebem são falhos e insuficientes. Kore-eda concebe uma
narrativa serena e melancólica carregada de poesia visual para essa saga
intimista e fatalista, em um formalismo sóbrio que se revela sempre preciso
para a sutil e cortante carga dramática do roteiro.
quinta-feira, fevereiro 07, 2019
Praça pública, de Agnès Jaoui ***
A verborragia intensa e irônica sempre foi uma marca
característica de grande parte do cinema francês. Exemplo claro disso é a
filmografia da diretora Agnès Jaoui. Nas duas últimas décadas, ela construiu uma
sólida obra baseada na prolixidade de diálogos e em um senso cômico sutil e
afiado. “Praça pública” (2018) continua nessa levada e tem alguns momentos bem
interessantes, ainda que Jaoui nada inove no seu estilo e não tenha grandes
arroubos criativos estéticos. Seu roteiro parte de uma premissa temática bem
manjada, a de uma grande festa numa casa de campo que reúne personagens de todos
os tipos em que apresentam uma série de quiproquós e conflitos sociais e
sentimentais. Apesar de tal previsibilidade, Jaoui dirige com verve e
segurança, extraindo algumas ótimas performances de seu elenco e momentos
efetivamente bem engraçados. A narrativa tem uma dinâmica envolvente e faz com
que o subtexto da trama aflore com eficácia, principalmente no sentido de
ridicularizar uma classe média alta arrogante que se atribui uma importância
intelectual elevada quando na verdade se compraze em frivolidades até bem
mundanas. Mesmo o eterno conflito entre valores de direita e esquerda recebe um
tratamento engenhoso e lúcido. Ou seja, no conjunto geral, um belo panorama da
sociedade francesa contemporânea realizado com classe formal e temática acima
da média.
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