sexta-feira, setembro 30, 2016

O silêncio do céu, de Marco Dutra ***1/2

Formatar um estilo autoral dentro do cinema de gênero parece ser a grande obsessão artística do diretor brasileiro Marco Dutra. Depois de enquadrar o horror num viés de crítica social em “Trabalhar cansa” (2011) e num bizarro trinômio família-religiosidade-loucura em “Quando eu era vivo” (2014), em “O silêncio do céu” (2016) o cineasta volta sua atenção para o suspense com fins de realizar uma contundente reflexão sobre a violência e o sexismo. Logo no início do filme, ele já afasta a trama de clichês recorrentes dentro do gênero em questão – mais importante para o protagonista Mario (Leonardo Sbaraglia) do que saber quem são os estupradores da sua esposa Diana (Carolina Dieckmann) é entender o contexto que levou a tal fato e também colocar em cheque suas fobias (inclusive aquela que impediu que ele fizesse algo para impedir o ato brutal que presenciou). Nessa perspectiva, Dutra constrói uma narrativa bastante atmosférica, valendo-se de uma eficiente narração de teor literário e uma encenação baseada fortemente na linguagem gestual e nos silêncios expressivos. A fotografia sombria e a elegante edição acentuam ainda mais a perturbadora aura de mistério da obra. Ao se aprofundar em sua investigação pessoal, Mario não se vê de frente apenas aos seus antagonistas, mas também diante dos desejos da sua mulher e de seus próprios medos e preconceitos. A vingança que engedra pode até inicialmente evocar algo de catártico, mas na verdade deixa claro a inevitabilidade de suas frustrações existenciais. Ainda que não tenha aquele genial clima de demência entre o desconcertante e o comovente de “Quando eu era vivo”, “O silêncio do céu” reforça o nome de Marco Dutra como um dos talentos mais expressivos a aparecerem no cinema nacional nos últimos anos.

O vale do amor, de Guillaume Nicloux ***1/2

Uma das fases mais expressivas na filmografia do diretor Roberto Rossellini foi quando ele incorporou o seu estilo naturalista que havia depurado em suas primeiras obras no neo-realismo italiano dentro de um formato de conto moral-metafísico. Em parceria com a sua esposa na época, Ingrid Bergman, lançou obras memoráveis nessa particular formatação (Stromboli, Europa 51, Viagem à Itália). A produção francesa “O vale do amor” (2015) se mostra como uma vigorosa extensão desses preceitos artísticos de Rossellini. Na maior parte de sua duração, a narrativa se mostra vinculada a uma encenação e ambientação de fortes tons naturalistas, em que a direção de fotografia de enquadramentos secos e iluminação crua e a edição de poucos cortes e ritmo austero acentuam uma atmosfera que beira o sufocante, tanto pela sensação física de calor severo que os protagonistas interpretados por Gérard Depardieu e Isabelle Huppert sentem por se encontrarem no escaldante Vale da Morte nos Estados Unidos quanto pelo mal estar psicológico causado pelo suicídio do filho de ambos. Há algo na encenação e no roteiro que evoca o documental, principalmente pelo fato de que características das personas de Depardieu e Huppert são incorporadas em seus personagens. Só que aos poucos alguns elementos de cinema fantástico vão se inserindo na narrativa, fazendo com que a atmosfera da obra trafegue ambiguamente entre uma possível desagregação mental dos indivíduos e uma comovente hipótese de transcendência mística. O fato de “O vale do amor” nunca deixar exatamente claro o que está acontecendo na tela aumenta a sua aura de mistério e explicita um perturbador teor sensorial à flor-da-pele.

quarta-feira, setembro 28, 2016

Lembranças de um amor eterno, de Giuseppe Tornatore **

Giuseppe Tornatore tem seus méritos como cineasta. Pode-se dizer que em décadas de carreira conseguiu criar uma espécie de marca autoral, fazendo uma espécie de síntese de melodrama convencional e formalismo correto. Os pontos altos de sua carreira (“Cinema Paradiso” e “Estamos todos bem”), ainda que festejados com exagero por boa de público e crítica, são exemplares expressivos dessa sua fórmula artística. Por vezes, entretanto, a receita de Tornatore desanda e resulta em equívocos como “Lembranças de um amor eterno” (2015). É claro que estão lá alguns preceitos do “cinema de qualidade”, como fotografia estilo cartão postal e edição acadêmica. O grande problema do filme é que a abordagem estética para a trama é desencontrada – os exageros sentimentais do roteiro pediam uma narrativa mais equilibrada e mesmo ambígua. É só lembrar do que Roman Polanski aprontou no extraordinário “O escritor fantasma” (201), em que uma histórica rocambolesca de suspense e intrigas era envolvida em ambientação doentia mista de ironia e goticismo e um barroquismo estético de rigor notável. No filme de Tornatore, não há esse senso artístico, fazendo com que uma trama apelativa beirando o ridículo seja levada extremamente a sério e não permita ao espectador algum espaço para a dúvida e tensão. O elemento fantástico que é sugerido no terço inicial do filme é logo extirpado em nome de um realismo novelesco, impressão essa acentuada pelas atuações canastronas de Jeremy Irons e Olga Kurylenko, com o roteiro também sugerindo um duvidoso elogio ao patriarcalismo. Se Polanski tivesse colocado as mãos em “Lembranças de um amor eterno”, provavelmente teríamos visto uma bela tiração de sarro com tais elementos temáticos moralistas. Do jeito que ficou, o filme apenas reforça o anacronismo estilístico de Tornatore.

terça-feira, setembro 27, 2016

Marguerite, de Xavier Giannoli ***

Ainda que sua estrutura narrativa se baseie em uma linguagem bastante acadêmica, a produção francesa “Marguerite” (2015) consegue causar algum impacto para o espectador pela sobriedade do seu formalismo e pela maturidade humanista da sua abordagem temática. Há todo o requinte visual esperado dentro de um filme de época de grande orçamento, mas tal cuidado não implica necessariamente numa assepsia estética. O diretor Xavier Giannoli faz com que a bela fotografia de paisagens interioranas, interiores suntuosos e prédios de arquitetura sofisticada tenha o contraponto de uma atmosfera sombria e melancólica, com direito inclusive a algo de sordidez e mesmo bizarro (as figuras do serviçal exótico e sorumbático e a da mulher barbada são interessantes achados dramáticos). O roteiro apresenta um subtexto intimista e social sutil e contundente, ao refletir sobre as hipocrisias e preconceitos de uma nobreza em decadência na França da primeira metade do século XX e mostrar como o conflito de classes se manifestava mesmo dentro de uma relação matrimonial (a burguesia deslumbrada versus a aristocracia parasita). O filme de Giannoli também aproveita com sensibilidade o fato de sua trama se desenvolver nos âmbitos da música e do teatro, tendo uma bela trilha sonora que se insere de maneira precisa na narrativa e números operísticos que trazem uma ambiguidade na sua encenação, entre o decadentismo e o encanto. Diante de tais acertos estéticos e textuais, “Marguerite” acaba se revelando bastante superior a “Florence” (2016), produção norte-americana que baseia nos mesmos fatos reais que inspiraram a obra de Giannoli.

segunda-feira, setembro 26, 2016

Mate-me por favor, de Anita Rocha da Silveira ***1/2

Dentro da narrativa de “Mate-me por favor” (2015), pode-se perceber referências e citações culturais diversas – algumas passagens de interação entre os personagens remetem a antigas tiras e animações dos Peanuts (é de se reparar que adultos nunca aparecem em cena, como era habitual no universo de Charlie Brown e seus amigos); uma atmosfera misto de hedonismo e tédio faz lembrar filmes de Larry Clark e Harmony Korine; composições visuais e tiradas irônicas se conectam com o cinema underground brasileiro (a sequência onírica em que sangue em profusão sai da boca da protagonista Bia é semelhante àquela que ficou célebre com Helena Ignêz em “Sem essa, Aranha”); a síntese entre a escatologia e o patológico faz lembrar tanto boa parte da filmografia de David Cronenberg quanto os quadrinhos de Charlie Burns. O filme da diretora Anita Rocha da Silveira, entretanto, está longe de se resumir a uma simples junção de tiradas artísticas espertas. A cineasta combina com bizarra naturalidade esses elementos diversos, compondo uma obra que se estrutura como um conto entre o fabular e o horror para fazer uma sardônica e desoladora reflexão sobre a juventude e o cenário sócio-cultural brasileiro. No terço inicial do filme, o tom da narrativa demora a encaixar, principalmente pelo fato da complexidade de como o fantástico e o realismo devem se entrelaçar. Quando Anita Silveira consegue azeitar a conexão entre esses dois planos existenciais, “Mate-me por favor” se configura como uma doentia e encantadora viagem pelo imaginário pequeno-burguês ocidental. A trama até sugere inicialmente um viés de suspense tradicional ao enfatizar o mote do mistério de um assassino de adolescentes, mas aos poucos esse foco vai se dissipando e a caracterização de personagens e situações se torna difusa. Em meio a coreografias funk, pregações evangélicas alucinadas, sexualidade à flor-da-pele e desencontros amorosos “boy meets girl” a lá John Hughes, as jovens criaturas que se arrastam na narrativa como fotogênicos zumbis entram numa espiral de morbidez e desagregação mental que desemboca numa perturbadora e apocalíptica sequência final. Ao invés das leituras reducionistas a simplificar os males da sociedade contemporânea como patéticas projeções maniqueístas, a obra de Anita Silveira vê a violência que grassa na atualidade como a manifestação de um imaginário coletivo distorcido por valores hipócritas e obscurantistas.

sexta-feira, setembro 23, 2016

Samurai, de Gaspar Scheuer ***

É um fato curioso que a produção argentina “Samurai” (2012) tenha sido exibida dentro de uma mostra chamada Ciclo de Cinema Gauchesco, evento esse decorrente das comemorações da semana farroupilha. Isso porque essa última tem por escopo existencial a celebração hipócrita de valores reacionários e sexistas baseado na exploração da mão-de-obra barata de peões por parte de grandes estancieiros e na submissão da mulher, enquanto o filme do diretor Gaspar Scheuer propõe um olhar revisionista crítico de tal contexto histórico e comportamental. Para isso, a trama do filme traz como foco principal um aspecto insólito, a de imigrantes japoneses que se fixam nos pampas no final do século XIX, fugindo de perseguições políticas em seu país de origem, e acabam sendo oprimidos na terra estrangeira para onde se refugiaram. Num primeiro momento, a família do protagonista Takeo entra num dilema existencial, em que a herança cultural do avô samurai se mostra ameaçada diante da nova realidade em que se encontram. Com o desenvolvimento da história, entretanto, essa mesma tradição nativa começa a se revelar opressora no sentido de impedir uma visão mais ampla por parte dos indivíduos diante de uma situação sócio-econômica nova e conturbada. Acaba sendo estabelecida uma correlação entre as tradições nipônicas e gaúchas, mostrando de maneira sutil e contundente como o discurso oficial de valoração da bravura e de uma virilidade “macha” na realidade esconde um panorama de exploração e opressão social. Dentro dessa visão sombria e melancólica, Scheuer incorpora uma estética que revela um certo teor oriental na forma contemplativa com que articula sua narrativa, tanto em termos de atmosfera quanto em concepção visual.

quinta-feira, setembro 22, 2016

Bruxa de Blair, de Adam Wingard *1/2

Antes de mais nada, convém deixar claro uma coisa: “A bruxa de Blair” (1999) não inventou o formato falso documentário filmado em perspectiva subjetiva, ou seja, “registrado” por um dos personagens. Tal abordagem já havia sido utilizada no clássico gore italiano “Canibal holocausto” (1980) – por sinal, com muito mais classe narrativa e impacto sensorial. A obra de Ruggero Deodato, inclusive, também utilizou algumas criativas estratégias de marketing. Anos depois, a referida produção norte-americana repetiu alguns dos preceitos artísticos e mercadológicos, tendo por vantagem a possibilidade de usar a internet como eficaz instrumento de divulgação. Num contexto geral, dá para dizer que foi mais um fenômeno de propaganda criativa do que propriamente um filme realmente interessante, apesar de sua estética ter influenciado um sem número de trabalhos de horror. Nesse contexto, sua continuação, “Bruxa de Blair” (2016), é ainda mais frustrante, pois não traz o relativo ineditismo estético-marqueteiro da obra original e nem mesmo a simpática fuleirice formal de outrora. À moda da franquia “Atividade paranormal”, o mistério do inexplicável, talvez o maior charme do filme de 1999, é deixado de lado para investir num roteiro que explica tudo, além de um uso maior de efeitos especiais profissionais deixar tudo com uma formatação ainda mais derivativa e genérica. De certa forma, todos esses equívocos fazem com que “Bruxa de Blair” se mostre como uma obra emblemática dos nossos tempos, em que picaretices mercantilistas como essa refletem indústria e público presos dentro de um círculo vicioso de busca de lucro fácil e produtos culturais insossos e amorfos.

quarta-feira, setembro 21, 2016

Conexão Escobar, de Brad Furman **

A profusão de séries, documentários, reportagens e afins, aliado a um distanciamento temporal, faz com que se crie uma espécie de febre de atração pela figura do mega traficante Pablo Escobar. Dessa maneira, nada mais natural que apareça mais uma produção cinematográfica a ter a sua figura como dos principais focos temáticos. Em “Conexão Escobar” (2016), ele praticamente não dá as caras, com a trama tendo como personagens mais presentes policiais que o investigavam e traficantes que giravam em torno de sua figura. O roteiro tem como protagonista o oficial de alfândega Robert Mazur (Bryan Cranston), que se infiltrou na organização de Escobar como um falso “lavador” de dinheiro sujo visando desvendar a teia econômica-criminosa de tráfico de drogas arquitetada pelo chefão e seus cúmplices. O artesanato narrativo engedrado pelo diretor Brad Furman é competente, por vezes até evocando narrativas semelhantes que apresentam aquela atmosfera ambígua de atração e repulsa pelo ambiente do crime que é típica de algumas das melhores obras de Martin Scorsese (“Caminhos perigosos”, “Bons companheiros”, “Cassino”, “Infiltrados”). Mas essa pretensão artística de Furman acaba não se justificando, principalmente pelo fato dele estar longe de ter a genialidade estética/existencial de Scorsese. Mesmo alguns truques formais aparentemente ousados como planos-sequência soam apenas como mero artificio decorativo em meio a uma abordagem artística convencional e que por várias vezes resvala num moralismo conservador, além de apresentar personagens unidimensionais em excesso e que chegam até a resvalar na burrice. Nesse sentido, a absurda sequência final do falso casamento de Mazur é um primor de cretinice – é até difícil acreditar que o roteiro tenha se baseado em fatos reais.

segunda-feira, setembro 19, 2016

Nós duas descendo a escada, de Fabiano de Souza ***

Não deixa de ter algo de simbólico no fato de que “Nós duas descendo a escada” (2015) tenha estreado algumas poucas semanas antes do 20 de setembro, data de comemoração da “revolução” farroupilha. Na realidade, a efeméride citada serve muito mais para celebrar um certo “gauchismo” de viver, essa coisa bem bairrista a legitimar tradições e concepções preconceituosas. Nesse sentido, um filme como esse mencionado do diretor Fabiano de Souza se coloca bastante na contramão, ao trazer no seu amago um desejo de ser universal e libertário. Tal visão artística fica evidente na forma com que a cidade de Porto Alegre é retratada, numa abordagem que sugere um certo cosmopolitismo, não apresentando ranços regionalistas. Essa caracterização na ambientação da produção se correlaciona com a maneira com que o roteiro contextualiza a temática da homossexualidade, em que as noções de culpa e preconceito praticamente não dão as caras. Ainda que a trama tenha um viés principal intimista, a conjunção dessa humanista visão de mundo em relação a cultura e comportamento revelam um subtexto sócio-político sutil e contundente, além de colocar o filme em sintonia com obras contemporâneas marcantes dessa década como “Azul é a cor mais quente” (2013) e “Boi neon” (2015).


Em termos formais, “Nós duas descendo a escada” se estrutura em uma narrativa que evoca alguns clichês típicos de comédia romântica, mas que também são pervertidos por truques estéticos que remetem a algumas das principais obras da Nouvelle Vague e a uma série de referências e citações culturais (filmes, livros, música), além de trazer na sua encenação e em algumas situações do roteiro uma crueza de pegada realista. Essa síntese artística demora um pouco para dar liga, mas quando as coisas engrenam, principalmente a partir da primeira sequência de sexo entre as protagonistas Adri (Miriã Possani) e Mona (Carina Dias), a narrativa ganha uma fluência envolvente que ora diverte por algumas tiradas dos diálogos e sacadas da edição (o detalhe de usar manchetes de jornal como “marcação” do tempo é um recurso bem engenhoso), ora comove pela intensidade na interação entre as personagens principais. Como cereja do bolo, a ótima trilha sonora, baseada em temas de Frank Jorge e belas canções de artistas como Karina Buhr, Tulipa Ruiz e Arthur de Farias, pontua com sensibilidade a narrativa. Nesse conjunto de acertos, “Nós duas descendo a escada” reforça a ideia de coerência artística na filmografia de Fabiano de Souza, que conta ainda com outras produções marcantes como “A última estrada da praia” (2011), “Os filmes estão vivos” (2013) e “Ocidentes” (2014).

sexta-feira, setembro 16, 2016

Herança de sangue, de Jean-François Richet ***1/2

O extraordinário drama policial francês “Inimigo público nº 1” (2008) fez com que o nome do diretor Jean-François Richet se tornasse um dos mais promissores para o gênero. Quando saiu a notícia de que sua próxima realização para um estúdio norte-americano traria como protagonista Mel Gibson, um dos grandes ícones de filmes de ação nos anos 80 e 90 (vide as franquias “Mad Max” e “Máquina Mortífera”), as expectativas se tornaram altas. “Herança de sangue” (2016), o resultado desse encontro de titãs, não é tão bom quanto se poderia esperar, principalmente pelo fato de que Richet teve de se enquadrar dentro de algumas convenções formais e temáticas mais comportadas típica do cinema norte-americano comercial. Ainda assim, o saldo final é positivo e memorável. O cineasta francês não é adepto da escola contemporânea de ação de câmeras tremidas e edição super-picotada – sua narrativa tem um talhe clássico, contando ainda com uma encenação que valoriza muito a composição visual e a clareza de movimentos. Tal noção cênica realça ainda mais a figura carismática e sagaz de Gibson no papel do protagonista John Link, cuja interpretação tem uma combinação notável entre serenidade e resignação trágica. Apesar de uma certa previsibilidade do roteiro, há uma ambiguidade inquietante na caracterização de situações e personagens, em que o passado obscuro de determinadas figuras da trama é evocado de maneira sutil e incômoda. Todas essas particularidades fazem de “Herança de sangue” uma relevante obra no estilo “policial casca grossa”, coisa rara no gênero nos dias de hoje.

quinta-feira, setembro 15, 2016

O homem nas trevas, de Fede Alvarez ***

Na refilmagem de “A morte do demônio” (2013), o diretor uruguaio Fede Alvarez já havia mostrado que tinha uma boa mão para o cinema de horror. Ainda que não tivesse o mesmo grau de inventividade de Sam Raimi, o responsável pelo filme original, demonstrou um considerável grau de criatividade na encenação e mesmo em certas nuances perturbadoras do roteiro. Em seu novo filme, “O homem nas trevas” (2016), ele se confirma como um nome interessante dentro do gênero. Narrativa e trama se estruturam nos moldes e clichês tradicionais do horror, mas o vigor do formalismo de Alvarez e o subtexto algo perverso da história colocam a produção em um nível acima da média. O truque temático básico de concentrar a narrativa dentro do espaço físico limitado de uma velha casa é explorado com habilidade, valorizando planos-sequência detalhistas, a atmosfera lúgubre e a direção de fotografia que evoca um certo gótico em seus enquadramentos e iluminação. É interessante também como a questão social e econômica da atual conjuntura dos Estados Unidos e uma ambiguidade na delimitação das fronteiras entre o bem e o mal dão uma perturbadora aura de sordidez e profundidade psicológica para os personagens e situações da trama. Dentro dessa bem delineada abordagem artística e existencial de Alvarez, mesmo o gancho na conclusão do filme para uma possível continuação não parece meramente oportunista – há uma coerência na impossibilidade de um final feliz redentor para a protagonista arrivista Rocky (Jane Levy).

quarta-feira, setembro 14, 2016

Agnus Dei, de Anne Fontaine **1/2

Uma obra que tem como temática freiras polonesas estupradas durante a 2ª Guerra Mundial já tem um potencial claro para ser explosiva. Talvez se fosse realizada nas décadas de 60 e 70 poderia receber um tratamento tipicamente exploitation. No caso de “Agnus Dei” (2015), entretanto, a abordagem é mais solene e sutil. A diretora Anne Fontaine prefere enfatizar mais as consequências psicológicas e morais do que investir no grafismo explícito das religiosas sendo violentadas. Nesse sentido, a atmosfera do filme é mais de uma certa sobriedade emocional e de uma incômoda tensão. O subtexto do roteiro questiona os fundamentos de uma sociedade machista e patriarcal que força as vítimas a terem de se comportar como se fossem culpadas pelas brutalidades que sofreram. Ainda que tenha esse caráter de contestação, em termos formais a produção prima por um tom asséptico na narrativa e em sua concepção visual, o que reduz consideravelmente a sua força. E mesmo dentro de seu perfil de crítica social e cultural a obra de Fontaine acaba caindo na superficialidade, pois há um certo maniqueísmo na caracterização de algumas situações e personagens, principalmente na figura da madre superiora, deixando-se de se apresentar uma visão mais contundente sobre os absurdos dogmas religiosos que impedem as freiras de se tornarem mais proativas em suas atitudes.

terça-feira, setembro 13, 2016

El Bola, de Achero Mañas **1/2

Dentro da temática das atribulações da adolescência, a produção espanhola “El Bola” (2000) até surpreende em alguns momentos por um certo vigor na encenação e pelo fato do roteiro apresentar algumas sutilezas. Num contexto geral, a trama apresenta uma visão crítica sobre a violência e intolerância inerentes ao patriarcalismo da sociedade ocidental. Nesse aspecto, o fato do jovem protagonista Pablo (Juan José Ballesta), constantemente brutalizado pelo próprio pai, só encontrar alento na família mais liberal do amigo Alfredo (Pablo Galán) não deixa de ter um caráter simbólico, remetendo a um aspecto existencial que há décadas aparece de forma recorrente no cinema espanhol – o conflito entre os valores repressores da sociedade tradicional herdeira do franquismo e o humanismo e irreverência que marca parte do país após a queda do ditador. É claro que o diretor Achero Mañas não apresenta o mesmo grau de ousadia e excelência artística para abordar tal assunto de um Pedro Almodovar (é só lembrar o que esse aprontou no extraordinário “A má educação”) e sua estética bem comportada não chega a ser muito memorável, mas ainda assim “El Bola” não deixa de causar uma certa perturbação para o espectador.

segunda-feira, setembro 12, 2016

Errante - Um filme de encontros, de Gustavo Spolidoro ***

Em relação ao longa-metragem anterior de Gustavo Spolidoro, “Morro do céu” (2009), o filme mais recente do diretor gaúcho, “Errante – Um filme de encontros” (2014), representa uma radicalização dentro da sua concepção no gênero documentário. Spolidoro deixa a narrativa e a câmera fluírem de acordo com seus sonhos e devaneios, além de contarem também com os acasos do destino. Não se trata de uma obra que busca a perfeição formal e mesmo uma linha temática que se mostre coerente sempre. Por vezes, tal síntese estética-existencial é incômoda, quase resvalando num aparente “amadorismo”, principalmente em seu terço inicial, quando o cineasta parece estar procurando um caminho mais definido e deixa expresso para o espectador suas inquietações e ambições para o seu filme. Numa dessas suas digressões, Spolidoro cita Jean Rouch e isso não é gratuito, pois “Errante” trafega numa bifurcação entre o documentário etnológico de Rouch e o gosto pelos depoimentos de entrevistados que variam naturalmente entre o banal e o profundo que era típico na filmografia de Eduardo Coutinho. Essa junção de influências e referências, contudo, não implica num simples pastiche de estilos alheios. Pelo contrário: há uma aura de certa originalidade que em determinado momento, de maneira sutil, envolve a plateia pela maneira como o insólito se insere dentro do cotidiano. Dentro de um “roteiro” em que convivem em bizarra harmonia na mesma trama estrangeiros radicados no Brasil ou apenas de passagem, idosos aposentados jogando conversa fora ou vagado pela cidade num rumo obscuro, um criador de marionetes, um jogador de bocha que se diz entendido em fósseis, gatos domésticos e cachorros vira-latas, o fluxo sensorial e mesmo conceitual da câmera de Spolidoro deseja se interligar com o olhar do próprio espectador ao sugerir que se esse último concentrasse a sua atenção naquilo que lhe parece corriqueiro e desimportante poderia encontrar algo de estranho e fascinante, e , quem sabe, haveria até a possibilidade de ingressar universo quase paralelo.

sexta-feira, setembro 09, 2016

Jornada nas estrelas: Sem fronteiras, de Justin Lin ***

É interessante observar que nos últimos episódios das franquias cinematográficas “Jornada nas estrelas” e “Guerra nas estrelas” as diferenças existenciais entre as duas ficam bastante evidenciadas. Enquanto a saga criada por George Lucas é uma síntese de escolas diferentes no gênero melodrama de aventura (histórias de capa e espada, faroestes, mitologias diversas) cuja trama se desenvolve dentro de um ambiente de espaço sideral e planetas alienígenas, as produções derivadas do conceito original de Gene Roddenberry apresentam uma ligação mais aprofundada com as questões pertinentes ao gênero ficção-científica. Ainda que de forma sutil, pode-se perceber no roteiro de “Sem fronteiras” (2016) situações que envolvem elementos que sempre estiveram rondando os filmes e seriados de “Jornada nas estrelas”: o conflito entre crenças pessoais e místicas com o raciocínio científico, a necessidade do ser humano expandir seus horizontes físicos e culturais através das viagens intergalácticas e o contato com outras civilizações, a busca da concretização da utopia de harmonia entre diferentes raças (no filme em questão, sintetizado na figura do planeta-nave que agrega seres humanos e diversos povos alienígenas, além do fato de se mostrar com naturalidade a homossexualidade do Sr. Sulu). É grande mérito do diretor Justin Lin conseguir conciliar esse subtexto humanista dentro de uma estrutura de narrativa de ação. Os dilemas da trama básica são até simples e seu desenvolvimento traz algumas obviedades, mas a fluência da encenação e os efeitos digitais de visual criativo e expressivo apresentam um resultado envolvente. No conjunto geral, talvez esse seja o filme da retomada concebida por J.J. Abrams que mais se aproxima do espírito característico da série clássica, sem que com isso se caia no mero revivalismo oportunista (ao contrário da simples nostalgia mofada de “O despertar da força”).

quinta-feira, setembro 08, 2016

Funcionário do mês, de Gennaro Nunziante **

Imagine que Renato Aragão em sua fase menos inspirada resolvesse fazer uma comédia a satirizar o funcionalismo público no Brasil. De certa forma, até não chega a ser um grande exercício de imaginação, pois a grande onda atual no humor brasileiro é se mostrar como um transgressor de direita... Mas se a hipótese de um Didi Mocó burocrata não parece tão absurda, então dá para se ter uma ideia do que representa a produção italiana “Funcionário do mês” (2016). A trama com o protagonista Checco (Checco Zalone), um funcionário público obcecado por não perder a estabilidade, até guarda algumas boas piadas. E é interessante a proposta do diretor Gennaro Nunziante de enquadrar uma temática de forte caráter social dentro de uma formatação de comédia escrachada. O problema é que a encenação é tão caricata que com o tempo acaba se tornando enfadonha, além da visão existencial da obra sobre questões complexas como reformas administrativas e desemprego cair em reducionismos preconceituosos e vazios. É consenso que o humor no geral tenha uma função de contestação dos valores morais e sociais do status quo vigente, mas “Funcionário do mês” apenas se limita a propagar um discurso que na verdade é a ladainha favorita de grandes corporações e da mídia oficial e dos políticos que as defendem.

terça-feira, setembro 06, 2016

Aquarius, de Kleber Mendonça Filho ****

Por mais que “Aquarius” (2016) possa estar dividindo opiniões e causando polêmicas variadas, um aspecto é inegável no filme do diretor Kleber Mendonça Filho: a capacidade de captar o espírito de uma época. É impressionante como ao longo da trama se identifica questões que trazem uma identificação com o cotidiano contemporâneo do espectador. Estão lá o conflito e preconceito de classes, a brutalidade verbal e física nas relações humanas, a ambição econômica e social tomada como valor fundamental, a degradação da concepção humanista de vida, a relação intrínseca entre religião e poder econômico, o moralismo obtuso como máscara de interesses obscuros. Mendonça Filho embaralha toda essa temática conturbada dentro de uma estrutura narrativa típica de um filme de horror, envolvida em uma linguagem cinematográfica repleta de simbologias simples e eficazes. O fato de se valer do cinema de gênero é uma sacada estética e existencial extraordinária por parte do cineasta, fazendo lembrar um recurso narrativo semelhante que Marco Dutra havia articulado no impressionante “Quando eu era vivo” (2014) – ainda que a temática se associe a um viés realista, o barroquismo formal e o exagero na encenação e em determinadas passagens do roteiro amplificam ainda mais o mal-estar em decorrência de uma sociedade em desequilíbrio moral e ético. Tudo na protagonista Clara (Sônia Braga) remete ao arquétipo de uma heroína: a defesa irredutível de seus direitos, a percepção humanista aguçada, o gosto cultural hiper-sensível (que é um gancho genial para uma trilha sonora repleta de canções magníficas), enquanto o seu antagonista Humberto Carrão (Diego Bonfim), um ganancioso especulador imobiliário, recebe uma caracterização entre o odioso e o patético. Tais elementos na composição dramática, associados a passagens da trama que configuram um embate contundente entre o “bem” e o “mal”, podem sugerir um aparente e simplista maniqueísmo da obra. O que evidencia na realidade, entretanto, é uma postura artística ousada e desafiadora por parte de “Aquarius” no questionamento de valores de uma sociedade dominada pelo mercantilismo e exploração humana. O filme de Mendonça Filho exala uma fúria sincera e visceral, tendo por resultado final uma catarse desconcertante e redentora.

segunda-feira, setembro 05, 2016

Loucas de alegria, de Paolo Virzi ***

Os responsáveis pela distribuição no Brasil da produção italiana “Loucas de alegria” (2016) deveriam se cuidar, pois a forma a forma escolhida para divulgar o filme em questão é pura propaganda enganosa. O cartaz e o título brasileiro sugerem uma comédia agridoce, repleta de edificantes lições de vida, daquelas que senhoras na terceira idade adoram para animar suas tardes. É bem provável que as velhinhas levem um belo susto quando assistirem de fato à obra do diretor Paolo Virzi. A trama até guarda uma estrutura típica de melodrama, resvalando por vezes no sentimentalismo. O que prevalece na maior parte do tempo da narrativa, entretanto, é uma encenação vigorosa e uma caracterização bastante crua e perturbadora de situações e personagens. Por trás do viés cômico, há um misto de sutileza e contundência ao retratar o comportamento humano tanto por parte das duas protagonistas com distúrbio mental quanto nos valores hipócritas daqueles que são envolvidos em suas confusões e desventuras. O registro formal concebido por Virzi tem um certo grau de perversidade, em que a direção de fotografia em determinados momentos privilegia um estilo cartão-postal de enquadramentos e iluminação, para logo em seguida enveredar em sequências de atmosfera entre o sujo e o sórdido. As atrizes que interpretam as personagens principais também representam outro ponto alto do filme – enquanto Valeria Bruni Tedeschi é pura exuberância alucinada, Micaela Ramazzotti cativa na sua síntese de doçura e violência, com a interação entre ambas apresentando uma dinâmica complexa, divertida e por vezes até assustadora, demonstrando notável sintonia com as próprias concepções artísticas de Virzi.

sexta-feira, setembro 02, 2016

Código das ruas, de Spike Lee **

No papel, “Código das ruas” (2004) tinha tudo para ser uma obra memorável. A trama remete a estrutura clássica dos filmes policiais que narram a ascensão de gângsteres, mas também se relacionando com a questão dos conflitos de classes e etnias bastante presente na sociedade norte-americana contemporânea. Como condutor da narrativa, está Spike Lee, já bastante calejado na temática racial e um dos diretores contemporâneos de linguagem formal mais apurada. É só lembrar, por exemplo, que é o cineasta responsável pela explosiva cinebiografia “Malcolm X” (1992), obra que já apresentava uma extraordinária síntese dos elementos acima mencionados. Ocorre, entretanto, que em “Código das ruas” as coisas não se acertam como o esperado... O problema não é tanto o roteiro esquemático e previsível – o grande incômodo é a direção sem brilho e derivativa de Spike Lee. Não há aquela encenação vibrante de “Faça a coisa certa” (1989), a ironia madura de “Febre da selva” (1991), as sutilezas narrativas de “Crooklyn” (1994), a dramaticidade à flor-da-pele de “A última noite” (2002), a ação lapidada à perfeição de “O plano perfeito” (2006), a atmosfera operística e sórdida de “O verão de Sam” (1999), a tensão perturbadora de “Irmãos de sangue” (1996). O que se tem é um produto genérico e sem graça, que parece feito por um tarefeiro qualquer, não se podendo perceber em qualquer instante o traço autoral característico de Spike Lee.

quinta-feira, setembro 01, 2016

A morte de J.P. Cuenca, de João Paulo Cuenca ***

Seria fácil enquadrar “A morte de J.P. Cuenca” (2014) como uma pretensiosa e desagradável egotrip de seu diretor/roteirista/principal ator João Paulo Cuenca. Não se trata especialmente de uma obra que traga cenas de grande apuro estético, e por vezes a aridez de seu formalismo pode até causar um certo enfado. Na sua mistura de elementos de encenações ficcionais e documentais, a produção parece buscar uma brecha dimensional específica, quase como se fosse um pesadelo se materializando de forma crua na realidade. Nessa particular concepção artística, a crise que envolve a identidade do autor, a do anônimo morto que tomou a sua identidade, tanto se aprofunda como uma perturbadora crise existencial como por uma espécie de radiografia social da degradação moral da cidade do Rio de Janeiro, cada vez mais gentrificada por desumanos condomínios de luxo que sugerem um apartheid social. Morbidez e ambiguidade são constantes na atmosfera do filme, fazendo com que a recriação do real vá se dissolvendo de forma progressiva e o elemento do delírio se torne cada vez mais presente, culminando no rito final de sexo e morte. Ainda que esse coquetel não seja dos mais palatáveis, é inegável também a capacidade de inquietar o espectador por parte de “A morte de J.P. Cuenca”.