sexta-feira, outubro 29, 2010

Garapa, de José Padilha ****


“Garapa” (2009) é um documentário que aborda a questão da fome no Nordeste, focalizando a sua narrativa em três famílias passando por necessidades relativa à falta de alimentação adequada para a sua sobrevivência. Pode-se observar, tanto na recepção da crítica quanto na do público, que há um certo teor de ceticismo em relação ao filme. Isso ocorre, certamente, porque existe o pressuposto de que um assunto que já foi abordado em tantas oportunidades, não só pelo cinema como por outras mídias, não teria como render algo de novo. Fora que há o receio das visões ideológicas que um material como esse pode despertar. Não a toa, “Garapa” foi acolhido em poucas salas comerciais, destino diverso das duas partes de “Tropa de Elite” (2007 e 2010), produções mais renomadas de Padilha.

Padilha não apresenta novidades sobre a questão social que aborda em “Garapa”. Na verdade, nem era essa a sua pretensão. O que se sente no filme é que o diretor testa as sensibilidades própria e do espectador para ver se os mesmos são ainda capazes de se comover com as situações presentes no documentário, ainda que as mesmas sejam análogas a outras que já tenham sido mostradas e discutidas em diversas oportunidades. E nesse questionamento sobre tais capacidades, Padilha não faz concessões. O registro de sua câmera é objetivo e sem pudores, sendo que essa secura formal se acentua através de opções estéticas igualmente sóbrias como uma rigorosa fotografia em preto e branco e a ausência total de trilha sonora incidental. Há obsessão em evidenciar o maior número de detalhes sobre a rotina dos indivíduos focados, desde os atos mais banais do quotidiano até momentos fortemente dramáticos. Esse cuidado com o registro de detalhes e a duração do filme (quase duas horas) podem fazer pressupor um excessivo gosto pela repetição. Isso, entretanto, não se revela como equívoco de Padilha, mas como algo que está perfeitamente coerente com o que se busca como proposta narrativa. A repetição de situações evidencia a vida em colapso permanente e sem saída daqueles seres que tem as suas vidas desnudadas na tela em toda a sua crueza e melancolia, oferecendo a várias cenas de “Garapa” uma perturbadora sensação de pesadelo.

Outro aspecto inquietante em “Garapa” é a impressão de que em algumas sequências do filme está ocorrendo uma certa “maquiagem” da realidade, tanto por uma questão de receio dos protagonistas (a mãe que dá banho nos filhos antes de uma refeição) quanto por didatismo (a assistente social que aconselha uma outra mãe a como proceder em relação a sua precária rotina). O que novamente aparenta ser um “equívoco” se apresenta, na verdade, como uma bem sacada opção narrativa no sentido de que se aquelas situações adulteradas pela presença da câmera já refletem fatos muito preocupantes, imagina-se o quão pior deve ser a efetiva conjuntura do que é mostrado.

Ainda falando em opções estéticas, a já citada fotografia em preto e branco de “Garapa” possui uma textura quase envelhecida, o que novamente não é um mero acidente na concepção artística de Padilha. O que chega ao olhar de espectador é um visual estranhamente atemporal. Se não houvesse qualquer menção a ano de produção no filme e alguma referência prévia sobre o mesmo, haveria dificuldade em precisar com alguma exatidão o período focado no documentário. Padilha parece deixar clara a perenidade das desgraças que afligem aquelas pessoas, assim como o beco sem saída em que se encontram.

Eu poderia dizer com certeza que o sueco “Deixa Ela Entrar” foi o melhor filme de terror que vi nos cinemas em 2009. As moscas rondando os pratos de escassa comida de crianças, as doenças provocadas por diversas privações e a falta de esperança presentes nos fotogramas de “Garapa” me provocaram, entretanto, as maiores sensações de horror cinematográfico no referido ano. O distanciamento formal de Padilha permite um ajustado olhar lúcido, mas que possibilita também o afloramento do lado emocional.

Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme, de Oliver Stone ***


Nenhum apreciador de cinema pode negar os méritos de Oliver Stone como realizador cinematográfico. Poucos cineastas têm em seus currículos uma quantidade considerável de obras extraordinárias como “Salvador – O Martírio de Um Povo” (1986), “Platoon” (1986), “Talk Radio” (1988), “JFK” (1991), Assassinos Por Natureza” (1994), “Revanche” (1997) e “Um Domingo Qualquer” (1999). Em sua produção mais recente, “Wall Street – O Dinheiro Nunca Dorme” (continuação do original de 1987), reafirma seu talento em sequências de virtuosismo formal notável: tomadas aéreas impressionantes, utilização criativa de trucagens relacionadas a tecnologia contemporânea (celulares, computadores), direção de fotografia que enfatiza a grandiosidade épica e fria de cenários urbanos, sensibilidade na seleção de canções de Brian Eno e David Byrne para cenas cruciais do filme. O grande problema da segunda parte de “Wall Street” é que sua narrativa é quebrada de forma seguida quando Stone se lembra de fazer sociologia ao realizar um retrato quase didático dos malefícios do mercando financeiro de especulações, além de perder tempo em dramas e conflitos pueris de alguns personagens (principalmente no casal de protagonistas vivido por Shia LaBeouf e Carey Mulligan). Michael Douglas retorna ao seu clássico personagem Gordon Gekko com carisma, mas pouco de novo acrescenta ao mesmo.

No final das contas, “Wall Street – O Dinheiro Nunca Dorme” consegue manter uma coerência temática na carreira de Stone no seu objetivo de fazer uma espécie de inventário pessoal sobre a história política e social dos Estados Unidos, frustrando, contudo, pela sua abordagem superficial e maniqueísta de questões complexas.

quinta-feira, outubro 28, 2010

Inimigo Público nº 1 - Risco de Morte, de Jean-François Richet ****


A seqüência inicial de “Inimigo Público nº 1 – Risco de Morte” (2008) é uma excelente amostra do real significado do filme. Jacques Mesrine (Vincent Cassel) e sua namorada Sylvia Jeanjacquot (Ludivine Sagnier) saem furtivamente de uma residência e examinam minuciosamente as cercanias. Os dois entram em um carro e saem por Paris, quando enfim são emboscados. Nesses primeiros minutos, poucas coisas acontecem, o que se tem basicamente é pessoas caminhando e lançando olhares desconfiados, mas a dinâmica da montagem, recheada de splitcameras que dividem a tela em quatro focos sobre a mesma ação em tempos ligeiramente diferentes, aliadas a uma trilha sonora tensa e onipresente, oferece uma narrativa eletrizante.

“Inimigo Público nº 1 – Risco de Morte” é a primeira parte da cinebiografia de Mesrine, um perigoso marginal francês que criou alvoroço na França e Canadá durante os anos 60 e 70. Ladrão, assassino, seqüestrador e até mesmo terrorista, Mesrine escreveu um livro narrando algumas de suas aventuras, sendo que o filme em questão se baseia nessas memórias. O diretor Jean-François Richet, entretanto, não demonstra muito interesse em desvendar os motivos que levaram o protagonista, originário da classe média, a trilhar o caminho do crime. Os fatos da vida de Mesrine não são esmiuçados e nem se estabelece uma análise psicológica dele. O que interessou para Richet foram os momentos de ação brutal e as façanhas aventurescas do bandido. Ou seja, o cineasta é ostensivamente superficial na exposição da trajetória do seu “herói”. Isso, entretanto, não é nenhum demérito para a obra. Muito pelo contrário!! “Inimigo Público nº 1” é um extraordinário triunfo estético por parte de Richet. As seqüências de ação são exemplares na sua fluência: são frenéticas, mas não apelam para o surrado recurso de câmeras tremidas ou fora do foco principal da cena. Realça-se cada detalhe da ação e do movimento dos atores. Esse preciosismo no filmar remete muito à filmografia de Michael Mann, de obras-primas como “Fogo Contra Fogo” (1995), “Colateral” (2004) e “Miami Vice” (2006).

Richet revela também uma tremenda sensibilidade para a reconstituição de época do filme. Paris em algumas seqüências, por exemplo, parece estar muito mais vinculada a um imaginário peculiar, numa ambientação estilizada que remete mais ao cinema noir e aos quadrinhos do que a uma fidelidade histórica na sua recriação. Essa caracterização estética que beira o irreal está em perfeita sintonia com o que “Inimigo Público nº 1” traz como essencial na sua concepção: a preferência em enfatizar as lendas em detrimento da simples exposição dos fatos reais. Dessa forma, o impacto sensorial, tanto por imagens ou sons (sejam musicais ou ambientais), é o que busca Richet ao oferecer ao público um Mesrine que ora parece saído de um pesadelo, ora se mostra como uma figura cativante e galante. Pesadelo e fascinação se combinam na mesma melodia...

As escolhas criativas de Richet se estendem no teor dramático das interpretações do elenco do filme. Cassel evita as sutilezas e faz de Mesrine uma figura que se move como uma força da natureza. Já Gerard Depardieu, no papel do escroque Guido, é uma síntese brilhante dos mais marcantes bandidos do antigo cinema policial norte-americano: nos olhos de Guido, não há sentimentos, mas somente uma frieza cínica e assustadora. As atuações das belas Florence Thomassin, Elena Anaya e Cecile de France são uniformes nos mesmos quesitos: estereótipos lindamente delineados de sensualidade e fragilidade, são mulheres atraídas e esmagadas pela atração irracional por Mesrine.

O cinema policial francês tem uma rica tradição, encabeçado principalmente pelo genial Jean-Pierre Melville. “Inimigo Público nº 1 – Risco de Morte” é uma obra que é herdeira legítima dessa linhagem, sendo que Jean-François Richet se junta ao excelente Olivier Marchal (diretor dos magníficos “Gangsters”, “36” e “MR73”) como um dos principais nomes dessa corrente.

Um Novo Caminho, de Philippe Godeau ***


Mesmo transitando dentro de uma estrutura narrativa excessivamente convencional, “Um Novo Caminho” (2009) consegue causar um certo impacto pela abordagem seca e contundente em algumas sequências da já desgastada temática do alcoolismo. Os primeiros momentos do filme, com o protagonista Hervé (François Cluzet) deixando o seu lar e se internando numa clínica no campo para se desintoxicar, trazem um estilo contido repleto de silêncios e planos fixos, impondo uma atmosfera tensa. Com a entrada de outros personagens (médicos, pacientes, monitores) e situações, o filme resvala no melodramático, mas o diretor Philippe Godeau se mostra cuidadoso para que a produção não caia em excessos sentimentais, mostrando que na trajetória de Hervé não muito espaços para soluções mágicas. Por vezes, há uma inclinação para um lado didático na caracterização do quotidiano e dos conflitos de um alcoólatra, mas a atuação cheia de nuances de Cluzet conferem uma verdade para “Um Novo Caminho” que o distancia do caricatural ou simplório.

quarta-feira, outubro 27, 2010

Baaria - A Porta do Vento, de Giuseppe Tornatore ***


O diretor Giuseppe Tornatore talvez tenha sido o principal responsável pela formatação de um tipo de produção que se tornou característica no cinema italiano a partir da década de 80: a de melodramas sentimentais e nostálgicos marcados por um convencionalismo formal, capazes de atrair platéias de todos os tipos. Mesmo não trazendo grandes arroubos de criatividade, tais filmes traziam uma direção segura por parte de Tornatore e com tramas que geravam forte empatia com o público. Nessa linha de obras, destacaram-se “Cinema Paradiso” (1988) e “Estamos Todos Bem” (1990). “Baaria – A Porta do Vento” (2009) representa uma vontade por parte do cineasta em buscar voos mais altos. Sua meia hora inicial beira o delirante ao buscar elementos do gênero fantástico e trazer uma gama de referências cinematográficas diversas, como o gosto de Pasolini por enquadramentos que remetem a grandes afrescos e as atmosferas exageradas e grotescas de Fellini. Com o desenrolar da trama, entretanto, “Baaria” se enquadra como uma crônica memorialista, em que fatos da vida do protagonista Peppino (Francesco Scianna) se misturam com eventos importantes da História italiana do século XX, perdendo bastante do frescor estético do seu começo. Ainda que dentro dessa linha de previsibilidade e frustrando as boas expectativas do seu início promissor, mantém o interesse pela competência de Tornatore como bom “contador de histórias”.

The Decline of Western Civilization: Juventude Decadente, de Penelope Spheeris ****


A cena punk rock californiana de final da década de 70 e começo dos anos 80 representou uma das mais influentes correntes do rock underground norte-americano. Deu origem a grandes bandas de sonoridades diversas e a uma série de selos independentes que lançavam os discos dessa turma toda. O documentário “The Decline of Western Civilization” (1981), dirigido por Penelope Spheeris (que posteriormente realizou o hilário “Quanto Mais Idiota Melhor” e sua igualmente divertida seqüência), é um precioso registro do início da carreira das bandas desse movimento. Spheeris conseguiu captar sequências antológicas de shows marcados por performances musicais eletrizantes e até mesmo algumas confusões entre músicos e platéia. Além disso, a cineasta teve o timing certeiro de focalizar as entrevistas com os integrantes das bandas em locais inusitados e em perfeita sintonia com o espírito desses grupos. Dessa forma, os jovens e desajustados punks do emblemático Black Flag conversam dentro da igreja abandonada em que alguns deles moram, enquanto o autodestrutivo e carismático Darby Crash, líder dos seminais Germs, discorre sobre a sua banda e a vida enquanto frita um ovo no muquifo sujo onde mora com o restante da banda. O conjunto das apresentações e dos depoimentos reflete com extrema agudeza não só a criatividade musical dos artistas, mas também o contexto social e temático do punk, em que revolta e niilismo se confundem e resultam numa ideologia ora difusa ora assustadora. Spheeris, entretanto, não julga ou idealiza o movimento, sendo que apenas se preocupa em oferecer um documento que fascina pela sua crueza.

terça-feira, outubro 26, 2010

Guidable: A Verdadeira História dos Ratos de Porão, de Fernando Rick e Marcelo Appezzato ***


Este documentário sobre a história da mais importante e marcante banda da história do punk nacional é relevante não apenas pelo retrato que oferece dos biografados, mas também por oferecer uma visão ampla do que representa trabalhar com música fora do ambiente das grandes gravadoras e da mídia tradicional. Os registros de arquivo são vastos e reveladores (há mais imagens históricas até do que no extraordinário “Botinada” – documentário de 2006 dirigido por Gastão Moreira que retrata a cena punk paulista dos anos 80). Os depoimentos de integrantes, atuais ou antigos, são quase didáticos e sem papas nas línguas ao contarem vários “causos” e dissecarem de forma minuciosa cada um dos itens da já extensa discografia da banda. O resultado dessa combinação de imagens e entrevistas é um painel extenso, sincero e por vezes cansativo de três décadas tanto dos Ratos de Porão quanto do contexto histórico-cultural que os cercou nesse período. Por isso, “Guidable” (2008) é uma obra cujo interesse extrapola os cultuadores da banda ou do gênero punk rock. Independente de gostar dos Ratos ou não, é fascinante observar a trajetória de um grupo que nunca tocou uma música de grande aceitação pelas massas e que excursionou pela Europa diversas vezes sem um tostão no bolso e tendo por cachê apenas a comida. O que se evidencia na conturbada história dos Ratos de Porão é que a banda desbravou os seus caminhos na marra, sem pedir licença a ninguém e solidificando uma carreira num ambiente que não era propício para isso. Retratar fielmente uma história improvável como essa é justamente o grande mérito de “Guidable”.

A Última Música, de Julie Anne Robinson **


Este é o tipo de filme que dá sopa para o azar no sentido de ter quase todos os requisitos para ser desprezado pela crítica e uma parcela mais seletiva do público: traz no papel principal uma estrela juvenil tentando ganhar respeito como atriz série (no caso, a famosa Hanna Montana, ou Miley Cyrus), roteiro que explora o gasto conceito de conflitos geracionais que terminam em lições de vida, personagem simpático que morre de alguma doença, fotografia limpinha, mocinho e mocinha que depois de alguns desencontros acabam ficando juntos no final. O resultado final realmente é pouco criativo e quase nada memorável. Está longe, entretanto, de ser deplorável. Dentro de seu manjado padrão de melodrama lacrimoso, “A Última Música” (2010) funciona com razoável eficiência (pelo menos na sessão em que assisti ao mesmo, tinha muita gente com os olhos marejados após o término da exibição). Por mais que seja descartável como experiência cinematográfica, pelo menos há uma narrativa que prende a atenção do expectador, além do fato da diretora Julie Anne Robinson explorar o ambiente litorâneo do filme com alguma sensibilidade visual. Tais qualidades apontadas de “A Última Música” podem parecer insuficientes como motivação para os céticos verem esta produção, mas se mostram bem mais cativantes que a concepção formal truncada de “Nosso Lar” (2010), por exemplo, que tem aquela atmosfera de vídeo institucional espírita.

segunda-feira, outubro 25, 2010

The Rutles: All You Need is Cash, de Eric Idle e Gary Weis ****


Os Beatles, a banda de rock mais conhecida mundialmente de todos os tempos, possuem uma mitologia própria que está incorporada no imaginário coletivo. A ascensão vertiginosa, a evolução musical disco a disco, os conflitos criativos, as fofocas pessoais, a lamentada e amplamente discutida separação da banda. Tudo isso já foi matéria de inúmeras biografias, especiais e discussões de bar. E é claro que para quem, ao lado do Monty Python, já espinafrou de forma hilária e impiedosa a lenda do Rei Arthur e sagradas passagens bíblicas não seria problema avacalhar a trajetória dos quatro rapazes de Liverpool. Pois é o que Eric Idle, ao lado de Gary Weis, faz no hilariante mockumentary (falso documentário) “The Rutles: All you need is cash” (1978). Os Rutles são uma versão mal-disfarçada dos “Besouros” e protagonizam várias situações cômicas e ridículas que são claras alusões ao universo beatle. A paródia no filme, entretanto, está muito distante do besteirol grosseiro e descerebrado. Idle e Weis demonstram invulgar erudição pop e sutileza irônica. A sequência em que o repórter (o próprio Idle) que narra a trajetória dos Rutles resolve investigar as raízes musicais da banda na região do Mississipi, berço do blues, beira o surreal ao mostrar um veterano bluesman que diz que começou a tocar porque descobriu os Rutles ou quando se entrevista outro blueseiro que afirma ter sido roubado musicalmente pela banda, mas logo é desmentido pela esposa que fala que ele disse o mesmo sobre Frank Sinatra!! A força cômica do filme está justamente nessas tiradas inesperadas, e que no fundo revelam uma certa reverência dos diretores à excelência musical dos Beatles. Aliás, as canções dos Rutles são excelentes pastiches de canções emblemáticas da banda parodiada, o que acentua ainda mais as gozações do filme. No final das contas, a sátira é realizada de uma forma tão extraordinária que se torna até mesmo uma bela homenagem aos Beatles. Não à toa, até George Harrison aparece numa participação especial!!

Programa Casé - O Que a Gente Não Inventa, Não Existe, de Estevão Ciavatta **1/2


A opção de narrativa em “Programa Casé – O Que A Gente Não Inventa, Não Existe” (2010) é árida. Utiliza-se como fio condutor o áudio de uma entrevista de Ademir Casé, protagonista biografado neste documentário, para o Museu da Imagem e do Som, tendo como pano de fundo visual uma série de imagens de arquivo, intercalando-se com depoimentos atuais de pessoas que o conheceram (inclusive a neta Regina Case). A edição de todo esse material é realizada com certa competência, mas não é o suficiente para que o filme não caia numa mesmice formal em alguns momentos que induzem a bocejos. Mesmo assim, entretanto, “Programa Casé” se reveste de importância como uma obra relevante por ser um retrato fiel e esclarecedor sobre o surgimento de um formato de programas de rádio que ainda hoje resiste em algumas estações. É um digno retrato histórico também por contextualizar com detalhes a evolução da forma com que a música popular brasileira se inseriu no imaginário da população, fenômeno esse que pode ser conferido atualmente na adulação popular que artistas contemporâneos recebem. E é claro que não dá para esquecer como um atrativo especial para assistir ao filme a possibilidade de ver registros audiovisuais raros, com especial destaque para as gravações do Bando da Lua em um programa televisivo, aparecendo o fundamental Noel Rosa em plena ação.

sexta-feira, outubro 22, 2010

Hated: GG Allin and The Murder Junkies, de Todd Philips ****


Figura das mais cultuadas e emblemáticas da história do rock underground norte-americano, o cantor GG Allin, morto em 1993, extrapolava a sua própria música. Adepto da cuprofilia e da automutilação em seus shows (que invariavelmente terminavam em violência e confusão), Allin também adotava uma postura delirante que oscilava entre o filosófico e o místico. E é claro que apesar de causar temor e espanto por onde tocasse, também atraía uma legião de admiradores. Um dos grandes méritos de “Hated” (1993), documentário biográfico sobre a figura, está justamente numa visão ambígua que se oferece sobre o músico. Em determinadas seqüências do filme, a lente do diretor Todd Philips é quase de admiração e atração pela figura de um homem que era um legítimo outsider perante uma sociedade que cultivava ainda parte do já decadente “sonho americano”. Ao mesmo tempo, Philips consegue evidenciar a face assustadora do artista em plena desagregação física e psíquica. Ao mostrar o depoimento de antigos amigos e colegas da juventude de Allin, parece haver o questionamento implícito de que a loucura do mesmo é a reação consequente e desproporcional a uma sociedade moralista e obscurantista. Mesmo tais interpretações, contudo, possuem o pendor da ambiguidade em “Hated”, como se qualquer tentativa de entendimento concreto sobre Allin pudesse cair em reducionismos.

“Hated” também cativa pelos antológicos registros de GG Allin em ação. Vociferando suas canções punk rock, discursando seu perturbado ideário ou espancando algum pobre coitado da platéia, Allin sempre desconcertava por simplesmente ser imprevisível, uma verdadeira força da natureza. Como não ficar retido na memória, por exemplo, o momento em que ele espalha as próprias fezes no rosto e sai correndo atrás da platéia que foge apavorada diante da dantesca visão?? Recusando, apesar de tudo, o choque gratuito, Todd Phillips consegue conciliar essa série de retratos de demências e escatologias com uma visão lúcida e permeada por uma sutil ironia. Ele sabe que tentar enquadrar Allin tanto numa ótica de louvação quanto num olhar moralista seria patético e equivocado, o que faz de “Hated” uma extraordinária experiência cinematográfica sobre a loucura humana e a arte que pode vir dela.

quinta-feira, outubro 21, 2010

1/2 Mensch, de Sogo Ishii ****


A banda alemã Einsturzende Neubaten é o mais expressivo representante do rock industrial, vertente que tem como mote a incorporação de ruídos ambientais modernos como matéria-prima musical. No caso do Neubaten, o gênero é levado ao extremo, pois a banda tem como sustentáculo de suas canções uma junção contundente e sem concessões de guitarra distorcida com percussão em objetos metálicos. Com o passar dos anos, eles incorporaram instrumentos mais tradicionais, como sintetizadores, mas com resultados sempre distantes dos convencionalismos melódicos e harmônicos. O filme “1/2 Mensch” (1986) é uma tradução visual perfeita da música da banda. Seus momentos iniciais se desenvolvem em um formato de documentário, com o Einsturzende Neubaten tocando em uma fábrica abandonada, sem a presença de público (a não ser a equipe técnica das filmagens). Materiais enferrujados e há anos sem uso vão sendo incorporados aos arranjos de densas canções. O cenário desolador, a música esquizóide e a postura sombria e nada comunicativa dos membros da banda resultam num registro de impacto visual e sonoro impressionantes e fazem de “1/2 Mensch” uma versão antípoda e sinistra de “Live at Pompeii” (1971), o célebre filme-concerto do Pink Floyd em que eles se apresentam nas ruínas de Pompéia. Ocorre, entretanto, que o diretor Sogo Ishii não se contenta em apresentar os germânicos apenas nesse contexto documental, experimentando também no formato de um vídeo musical, onde os músicos, ainda dentro da mencionada fábrica, interagem com uma espécie de teatro kabuki de figurinos esfarrapados e com seqüências inspiradas em horror gore. Não contente com esses delírios estéticos, Ishii retrata o Neubaten em ação num concerto “normal”, com presença de platéia, mas sempre realçando a relação da performance da banda com o conceito de dissolução da sociedade moderna, em que a banda incorpora o lixo dessa última, transforma o mesmo em música e a joga ferozmente em direção ao público/sociedade. Por fim, os nossos protagonistas tocam em meio a um cenário apocalíptico estilizado e irreal, fazendo de sua música a trilha sonora para um planeta em processo de colapso. Essa variante de estilos e gêneros num mesmo filme pode confundir a cabeça dos espectadores mais desavisados, mas está em notável sintonia com o universo musical e conceitual do Einsturzende Neubaten, em que se oferece uma caótica e desestruturada arte como o reflexo de um mundo em desintegração.

Reflexões de Um Liquidificador, de André Klotzel **1/2


É claro que o elemento do insólito torna atraente a premissa inicial de “Reflexões de Um Liquidificador”: a estranha relação de cumplicidade entre uma dona-de-casa suburbana e seu liquidificador que adquire consciência e a capacidade de falar. O tal eletrodoméstico até adquire uma certa aura carismática ao ser dublado pela voz de tom sempre espirituosa de Selton Mello (curiosamente, ele já havia dublado um gato no divertido curta “Sete Vidas”). O roteiro delineia uma série de observações mordazes sobre as agruras e comédias do quotidiano, combinando com habilidade humor negro e dramaticidade. No geral, entretanto, “Reflexões de Um Liquidificador” não é uma produção tão bem resolvida formalmente. O excesso de monólogos e diálogos de seus personagens faz com que a narrativa seja muito truncada, dando a impressão de que o filme se traduziria melhor como um conto literário ou uma peça teatral.

quarta-feira, outubro 20, 2010

Karatê Kid, de Harald Zwart **

Confesso que não vejo grandes problemas na questão de refilmagens. Cinema também é indústria, e nessa concepção é normal querer ganhar dinheiro reaproveitando uma ideia que já deu certo. Em alguns casos, no quesito artístico, uma nova versão até pode se rivalizar em pé de igualdade com a obra original. Como exemplo recente, pode-se lembrar a nova visão de Werner Herzog para “Vício Frenético”, primeiramente realizado por Abel Ferrara em 1992, em que o cineasta alemão apenas utilizou o mote central da produção de Ferrara e enveredou por caminhos estéticos diferentes. No caso desta revisão de “Karatê Kid” (2010), entretanto, o que se vê é uma mera reciclagem mais pálida do original de 1984. O que diferencia a presente reatualização, além de alguns pequenos detalhes da trama, é o fato de que as coreografias das lutas marciais pendem muito para o irreal do que os combates mais verossímeis do primeiro filme (algo que seria inevitável tendo o acrobático Jackie Chan no elenco). Quando “Karatê Kid” sai do âmbito das cenas de ação, revela-se como uma produção medíocre na encenação pueril dos dramas de seus personagens, o que fica ainda mais agravado pelo fato de Jaden Smith ser um protagonista pouco dotado de carisma – até o menino chinês que é o seu principal antagonista tem mais presença de cena que o filho do Will Smith.

Curupira: Onde O Pai Cura e o Filho Pira, de Gustavo Moura 1/2 (meia estrela)


A câmera seguidamente treme ou parece estar fora do enquadramento certo. A montagem dá a impressão de ter sido feita com um facão. Som e luz variam seguidamente de intensidade. Parece um desastre, não é mesmo? Pois “Curupira: Onde O Pai Cura e o Filho Pira” (2007) tem todos esses defeitos e mesmo assim é uma das coisas mais divertidas que vi nos cinemas. O seu segredo, obviamente, não está nos seus méritos formais, mas na história que mostra. Em Guaramirim, minúscula cidade de Santa Catarina, o filho de benzedeiro oficial da cidade decide montar no galpão da casa da família um bar rocker chamado Curupira. Pelo palco do insólito estabelecimento passaram várias bandas da cena indie brasileira (Ratos de Porão, Replicantes, Cansei de Ser Sexy, Os Legais – estes últimos, efetivamente a pior banda do mundo!!). A família do dono do local fica responsável pela logística (incluindo a mãe do rapaz, uma pacata senhora tipicamente interiorana que se apavorava com os punks e demais malucos que aparecem por lá). Uma das maiores atrações nas apresentações é um comerciante da cidade apelidado de Bananeira que costuma nos shows subir no palco e ficar plantando... bananeira!?!. Isso tudo poder parecer alguma ficção surreal, mas “Curupira: Onde o Pai Cura e o Filho Pira” é um documentário e o tal do bar realmente existe (foi inaugurado em 1992 e está na ativa até hoje). Para narrar essa “saga”, o diretor Gustavo Moura utiliza depoimentos bem humorados (que parecem soar como “causos” recheados de lendas) e quase sempre precárias, mas reveladoras, imagens de arquivo. Por mais que as condições técnicas de “Curupira” não sejam as ideais, talvez essa rústica concepção formal do documentário acaba sendo a moldura adequada para registrar a estranha história do homem que construiu praticamente no meio do mato um primitivo templo para o rock naquilo que ele tem de mais essencial: a dança, a diversão e a fuleiragem. Em algum lugar, provavelmente, Elvis e Kurt sorriem...

terça-feira, outubro 19, 2010

Cio da Terra, de Cacá Nazário e Éber Marzulo *1/2


Se “Dzi Croquettes” (2009) busca o registro do real manchado pela subjetividade, “Cio da Terra” (2010) vai na direção contrária, contentando-se apenas na exposição de curiosas imagens de arquivo e depoimentos ora reveladores, ora apenas informativos. Tendo como tema a realização de um festival de música de mesmo nome em Caxias do Sul no ano de 1982, já na fase declinante da ditadura militar, este documentário traz como principal mérito contextualizar com fidelidade não só os fatos históricos como também o significado dos mesmos. É interessante também a reflexão que propõe sobre o comparativo daquele período, através dos anseios e o quotidiano dos jovens brasileiros da época focada, com o tempo atual de aparentes facilidades tecnológicas e culturais. É evidenciada ainda uma espécie de inventário das utopias daqueles jovens em confronto com a percepção mais amadurecida de alguns que participaram do evento em questão. Mas se como obra de caráter didático e sociológico “Cio da Terra” tem a sua importância reconhecida, como cinema não chega a ser tão atrativo dentro de seu formato trivial e de fluência narrativa truncada. É claro que a qualidade precária das imagens captadas do evento também não colabora. Mesmo assim, os fissurados por música encontrarão atrativos em algumas sequências que trazem tomadas raras de nomes relevantes do cancioneiro brasileiro como Jorge Mautner, Ednardo e Nei Lisboa. E para esses apreciadores, não há como destacar um belo bônus: a versão intensa do Cordel do Fogo Encantando para a canção “Cio da Terra” que rola nos créditos finais do documentários.

Wilson Simonal - Ninguém Sabe O Duro Que Dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal ***1/2


A dinâmica obtida pela combinação entre depoimentos atuais e um farto e impressionante material de arquivo de vídeos e imagens de época em “Wilson Simonal – Ninguém Sabe O Duro Que Dei” (2008) é extraordinária, num belo trabalho de montagem e de elaboração de roteiro. A narrativa obedece ao tradicional formato “ascensão, apogeu e queda” (até porque com uma figura com o histórico de Simonal não poderia ser diferente), mas faz com extrema competência, dando até uma dimensão épica e trágica para o cantor. A primeira metade do filme é de uma alegria contagiante ao mostrar o auge de Simonal como um dos maiores astros musicais brasileiro, ao lado de Roberto Carlos, de fim da década de 1960 e começo dos anos 1970, repleta de momentos antológicos: os engraçados números musicais em seu próprio programa de televisão, o artista regendo uma platéia de dezenas de milhares no Maracanazinho cantando “Meu Limão, Meu Limoeiro”, o fabuloso dueto vocal com a diva Sarah Vaughan, as abusadas e irônicas entrevistas concedidas pelo cantor na época. Em compensação, a metade final é uma verdadeira descida aos infernos mostrando a decadência artística de Simonal, após a até hoje mal explicada acusação de que seria informante da ditadura militar. O contraste dos tristes episódios desse período de queda de Simonal com a esfuziante alegria dos seus melhores dias é brutal. Por mais que se tente dissecar no filme a verdade sobre a acusação que pesou sobre o cantor pelo resto da sua vida, a realidade é que os fatos relativos a tal assunto permanecem obscuros e envoltos em interpretações subjetivas, o que acaba refletindo a complexidade de um dos períodos mais conturbados da história brasileira. Talvez a única conclusão a que podemos chegar através do filme é de que, independente dele ser culpado ou inocente da acusação que sofreu, o castigo que Simonal sofreu foi pesado demais, não só para ele como para todos aqueles que gostavam, e ainda gostam, da sua música.

segunda-feira, outubro 18, 2010

Dzi Croquettes, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez ***1/2


O panorama dos documentários brasileiros tem se mostrado com uma gama razoavelmente ampla de direções estéticas. Nesse sentido, o caminho mais radical apresentado é o de Eduardo Coutinho, que em seus filmes mais recentes questiona os próprios fundamentos do cinema documental ao deixar evidente que depoimentos ditos espontâneos podem trazer uma carga de interpretação por parte de quem os profere, assim como o encadeamento de cenas revela uma certa manipulação do olhar no sentido de trazer uma visão pessoal de seu realizador. Por outro lado, há uma tendência artística em uma outra linha de produções documentais cujo enfoque é muito mais no objeto temático do que na sua linguagem formal. Essa intenção de privilegiar os fatos registrados vem do desejo de seus realizadores em trazer à tona uma série de episódios e personagens de caráter histórico importante que, por motivos diversos, encontram-se na obscuridade perante a maioria do público.

Diante desse quadro, “Dzi Croquettes” (2009) apresenta opções que revelam uma aparente e saudável esquizofrenia. Em um primeiro momento, os diretores Tatiana Issa e Raphael Alvarez visam expor a trajetória dos biografados do título, um grupo teatral surgido na década de 1970, composto por homem que se travestiam de mulher em números cômicos e musicais, que causou considerável alvoroço no cenário cultural da época. Sua influência foi tão impactante que acabou dando origem direta a outras manifestações artísticas que se incrustaram no imaginário popular: o conjunto vocal As Frenéticas, o grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, o programa televisivo cômico TV Pirata. Os realizadores tiveram acesso a um vasto material de arquivo audiovisual com apresentações dos Dzi Croquettes e depoimentos de seus integrantes, além de entrevistas com admiradores e discípulos. O trabalho de edição combina todos esses elementos com precisão, sabendo extrair a potencialidade dos mesmos. Há uma notável seqüência em particular, por exemplo, em que se fundem sombrias imagens de reuniões e desfiles militares com tomadas de apresentações dos Dzi Croquettes, contrastando de forma desconcertante as concepções libertárias destes últimos com o ambiente obscurantista típico da época da ditadura militar.

O enfoque de “Dzi Croquettes” ao expor tais fatos, entretanto, não é meramente didático. No cerne do documentário, há também um viés de subjetividade na visão dos fatos apresentados. Tatiana Issa teve um envolvimento pessoal com o grupo – seu pai trabalhou como iluminador em alguns dos espetáculos dos Croquettes, com Issa, ainda criança, presenciando ensaios e a rotina deles. A diretora revela que, pelo seu olhar infantil, via o grupo como um bando de “palhacinhos”. Sua busca pela história dos Croquettes também acaba se revelando como um mal dissimulado resgate da memória do pai. Ao trazer a sua impressão de inocência sobre os Croquettes, Tatiana Issa causa uma contradição perturbadora com o relato biográfico cru de algumas passagens do documentário: sexo, brigas, AIDS, assassinatos, decadência. Esse aspecto de pessoalidade na abordagem da diretora é o real ponto de transcendência em “Dzi Croquettes”, quando realidade e percepção íntima se confrontam e caminham para uma terceira via que beira o indefinível e que põe em cheque a própria “função” do gênero documentário.

sexta-feira, outubro 15, 2010

Amor à Distância, de Nanette Burstein ***


A experiência da diretora Nanette Burstein como documentarista de prestígio fica evidente na sua estreia na ficção em “Amor à Distância” (2010), mesmo atuando dentro de um conservador formato de comédia romântica. Ao focalizar a trama de um casal de namorados que é obrigado a manter seu relacionamento à distância por contingências profissionais, a cineasta impressiona por obter momentos que chegam às raias do perturbador devido à forma crua com que expõe os sentimentos e reações de seus personagens em situações limites. Por mais que “Amor à Distância” tenha de se adequar a uma lógica de “final feliz”, prevalece na percepção de que assiste ao filme a virulência da abordagem temática de Nanette Burstein em mostrar que o amor não é a única coisa que pode ditar os rumos de um relacionamento entre homem e mulher. E também é mérito da diretora adaptar um material de conteúdo até espinhoso como esse dentro de uma embalagem bem-humorada (mesmo que isso, por vezes, acabe tirando um pouco do impacto da visão de verossimilhança sensorial da cineasta, principalmente nas sequências em que aparecem os amigos do protagonista). É curioso ainda notar que “Amor à Distância” parece mostrar uma espécie de sintonia espiritual com “500 Dias Com Ela” (2009), outra obra recente que focaliza de forma mais verdadeira os relacionamentos amorosos no mundo contemporâneo (ainda que tais filmes tenha concepções formais diferentes entre si).

quinta-feira, outubro 14, 2010

A Grande Feira, de Roberto Pires ***




Nesta produção de 1961, o diretor Roberto Pires estabelece um panorama narrativo intrigante da capital da Bahia que transparece ousadia mesmo nos tempos atuais. Vários aspectos daquele microcosmo se complementam na trama: preconceito racial, marginalidade, sincretismo religioso, conflitos sociais, sexualidade a flor da pele, violência. Não há protagonistas bem definidos, com o roteiro fazendo desfilar uma série de tipos característicos da sociedade de Salvador (e que refletem, de certa forma, as próprias divisões da sociedade ocidental). Pires consegue manter uma atmosfera de constante tensão em “A Grande Feira”, mesmo que ainda não apresente o apuro formal que posteriormente demonstrou em “Máscara da Traição” (1969) e “Césio 137” (1990). Ainda assim, impressiona por juntar planos narrativos diversos de forma coerente e fluida. Colabora para isso a edição ágil (cortesia de um Glauber Rocha em início de carreira) e a direção de fotografia que não transforma a ambientação de Salvador em meras imagens estilo cartão postal, privilegiando tanto os tons luminosos que aludem a um clima de sensualidade como os visuais noturnos e sombrios que conferem à cidade uma textura misteriosa e até mesmo assustadora.

Cantoras de Rádio, de Gil Baroni e Marcos Avellar *


Este documentário de 2008 focaliza aquele período histórico, das décadas de 30 a 50, em que predominavam nas ondas sonoras uma série de cantoras que interpretavam o que havia de melhor no nosso cancioneiro popular. Um dos principais fatores que motivou a realização desse documentário foi o sucesso artístico e comercial do recente show “Estão Voltando as Flores”, espetáculo organizado por Ricardo Cravo Albin, dedicado e experiente estudioso da música brasileira e editor e redator do excelente Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira, e que trouxe de volta para os palcos as veteranas crooners Carmélia Alves, Carminha Mascarenhas, Violeta Cavalcanti e Ellen de Lima. No documentário, a narrativa se concentra nos depoimentos dessas artistas, que falam sobre as histórias de suas vidas e também contam alguns “causos” da época em que eram soberanas nas rádios e nos palcos. Além disso, “Cantoras do Rádio” traz relatos do próprio Cravo Albin e outros admiradores desse fundamental e marcante período da música brasileira e oferece um breve painel biográfico de outras artistas importantes do movimento (Carmem Miranda, Aracy de Almeida, Aurora Miranda, Dalva de Oliveira, Dolores Duran, Elizeth Cardoso, Linda e Dircinha Baptista, Isaura Garcia e Nora Ney). Apesar da riqueza desse material temático, “Cantoras do Rádio” tropeça como espetáculo cinematográfico. Os diretores Gil Baroni e Marcos Avellar abusam de uma narrativa didática que por vários momentos cai no enfadonho, além de contarem com uma edição que parece ter sido feita às pressas. A utilização de efeitos especiais chega ao nível do constrangedor: não se sabe se a intenção era que fosse ruim mesmo visando obter um efeito cômico ou se simplesmente o nível de competência nesse quesito é precário mesmo. Há também um equívoco no tom de abordagem escolhido para se falar sobre o tema do filme, pois predomina um certo teor lamentoso que cai em reclamações ingênuas e estéreis do tipo “por que fomos esquecidas?” ou “por que não cantamos mais nas rádios?”. Ora, são pouquíssimos os gêneros e artistas que conseguem se manter no topo de popularidade por um longo período de tempo, sendo que com o passar dos anos é normal que sejam apreciados apenas por determinados nichos de público. Isso não quer dizer, entretanto, que isso ocorra necessariamente por uma questão de qualidade artística, mas sim porque a passagem do tempo é implacável, e o que fazia sentido para um contexto histórico não faz mais para outro contexto que se sucede. É claro que esse sentimento de melancolia por um “tempo que não volta mais” é normal. Não é necessário, entretanto, que se bata insistentemente nessa tecla. E o próprio fato das protagonistas terem conseguido obter um certo reconhecimento através do espetáculo mencionado mostra que a situação atual delas não é tão inglória assim. Pessoalmente, acho que teria sido muito mais cativante para a narrativa se o roteiro tivesse se concentrado em esmiuçar de forma mais bem-humorada e vivaz as particularidades históricas e comportamentais do período do auge das cantoras de rádio, até porque os depoimentos e o material de arquivo nesse quesito seriam mais que propícios para esse tipo de abordagem.

quarta-feira, outubro 13, 2010

Máscara da Traição, de Roberto Pires ***1/2


Esta produção de 1969 dirigida por Roberto Pires representa um tipo de realização que é cada vez mais raro na cinematografia nacional: um filme no gênero policial. O interesse em “Máscara da Traição”, entretanto, não se resume à mera curiosidade, pois se trata de uma obra muito bem delineada em termos formais. Pires incorpora algumas influências estéticas típicas da época, mas com personalidade, indo de uma abordagem emocional distante típica do cineasta francês Jean Pierre-Melville, passando por referências visuais do suspense italiano (a utilização das máscaras lembra muito o “Danger: Diabolik” de Mario Bava) e chegando nos elementos narrativos característicos de clássicos norte-americanos de tramas que esmiúçam roubos ousados (“O Grande Golpe”, “O Segredo das Jóias”, “Rififi”). “Máscara da Traição” processa toda essa gama de influências sob uma ambiência bem brasileira. O detalhe, por exemplo, de usar o Maracanã lotado como cenário de um assalto é uma ideia que é explorada com louvor por Roberto Pires. Além disso, o diretor utiliza trucagens simples, com alguns aparentes “efeitos especiais” se tratando na realidade de uma engenhosa manipulação da montagem, mas com um resultado visual mais do que eficiente. Essa concepção de cinema beirando o artesanal de Pires é uma lição de inventividade em tempos que se defende que produções do gênero dependem de grandes quantias para se efetivarem.

sexta-feira, outubro 08, 2010

Césio 137, de Roberto Pires ***1/2


O gênero cinematográfico de obras que retratam situações históricas, geralmente, gera produções oportunistas que procuram chamar atenção mais pela curiosidade temática do que propriamente pelos seus méritos artísticos. O diretor Roberto Pires consegue transcender essa situação em “Césio 137” (1990) ao buscar uma abordagem insólita para um episódio de envenenamento radioativo ocorrido em Goiânia na década de 1980. A recriação dos fatos por parte de Pires vai muito mais além do burocrático. Há toques cômicos no roteiro, que parecem vir até de alguma daquelas antigas comédias com Mazzaropi, o que dá uma dimensão humana para a trama ainda mais impactante, no sentido de que evidencia que a tragédia se desenrolou também pela ingenuidade das vítimas, todas moradoras de uma região mais empobrecida da cidade. A narrativa expõe passo a passo o processo de contaminação das pessoas, estabelecendo uma inquietante atmosfera de tensão e tragédia anunciada. A impressionante naturalidade de encenação de “Césio 137” também se deve ao trabalho do elenco, em composições dramáticas notáveis de Nelson Xavier, Joana Fomm, Stepan Nercessian e Denise Milfont. Vale ainda mencionar que Pires insere no seu filme até algumas referências visuais de ficção científica que se inserem principalmente quando se foca o olhar atônito dos personagens perante eventos que fogem da sua compreensão.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Redenção, de Roberto Pires **1/2


O primeiro longa-metragem rodado na Bahia não desperta atenção apenas por interesse histórico. “Redenção” (1959) apresenta também algumas ideias que posteriormente seriam melhores exploradas pelo cineasta Roberto Pires nos seus filmes posteriores. As limitações oriundas dos precários recursos de produção são visíveis, mas não impedem que aflorem a expressiva concepção criativa do diretor. Pires explora consideravelmente as possibilidades da linguagem cinematográfica: a fotografia busca ângulos inusitados e a montagem alterna com naturalidade os tempos narrativos, ao mesmo tempo arriscando fusões de imagens em sequências de sonhos e delírios. A encenação pode pecar por ingenuidades típicas da época (principalmente na questão das interpretações de seus protagonistas). Traz, entretanto, uma cativante fluência de ritmo narrativo que se cristalizaria de forma mais plena em obras como “Máscara da Traição” (1969) e “Césio 137” (1990). Assim, “Redenção” é mais um capítulo obscuro da História do Cinema Brasileiro que merece ser redescoberto.

quarta-feira, outubro 06, 2010

Mademoiselle Chambon, de Stéphane Brizé ***


Por mais que se possa criticar o cinema de Hollywood pelo uso recorrente de clichês, é inegável que as cinematografias de outros países também se valem de lugares comuns formais e temáticos. A produção francesa “Mademoiselle Chambon” (2009) é um exemplo claro disso. Sua trama é simples e não apresenta novidades: um discreto pedreiro (Vincent Lindon) se apaixona pela professora de seu filho, a personagem-título (Sandrine Kiberlain), com esta também desenvolvendo o mesmo sentimento por ele. Assim, aparecem os já previsíveis dilemas que os impedem de ficarem juntos, principalmente, é claro, pelo fato dele ser casado. Se o roteiro pouco inova, em termos estéticos a diretora Stéphane Brizé também não apresenta maiores ousadias dentro desse padrão de melodramas franceses. Deve-se reconhecer, entretanto, que a cineasta manipula com elogiável eficiência tais fórmulas narrativas, principalmente por uma contida ambiência emocional. Brizé valoriza silêncios, gestos e olhares, com temas musicais derivados da música clássica pontuando as cenas. Essa sutileza na abordagem proporciona uma forte tensão dramática em algumas sequências. A cena do primeiro beijos dos protagonistas, nesse sentido, é sintomática: eles ficam ouvindo um melancólico tema musical erudito, olham-se de forma tímida, pouco falam e por fim irrompe o beijo. Descrevendo assim a cena, a mesma parece até mesmo bem banal, mas a sua execução é tão fluida que acaba tendo um forte impacto. Esse tratamento formal encontra seu ápice na sequência de uma despedida entre os amantes. Ambos estão dentro de um carro, em silêncio, com a câmera os focando pelas costas. A mulher sai, afasta-se e entra dentro do seu apartamento. Nesse processo, percebe-se, mesmo não se vendo diretamente o rosto do protagonista, que lágrimas caem da sua face, com o mesmo chorando em um desespero surdo. É a força de cenas como essas que dá uma dimensão diferenciada para “Mademoiselle Chambon”, mesmo que na superfície o filme aparente ser mais do mesmo.

terça-feira, outubro 05, 2010

Tocaia no Asfalto, de Roberto Pires ***1/2


A seqüência de abertura de “Tocaia no Asfalto” (1962) reflete com fidelidade o espírito do filme: depois de uma breve discussão com seu antagonista, o pistoleiro Rufino (Agildo Ribeiro) dispara um tiro na testa do mesmo. A execução da cena revela um raro domínio da ação cinematográfica por parte do diretor Roberto Pires, assim como a trucagem envolvida se mostra simples, mas eficiente. Durante toda a metragem de “Tocaia no Asfalto”, pode-se perceber a destreza de Pires na manipulação dos seus parcos recursos de produção com uma criatividade de encenação apurada. O cineasta busca com constância perspectivas diferenciadas para a sua câmera. As tomadas com Rufino em uma igreja estudando as melhores posições para uma tocaia são uma oportunidade para que a direção de fotografia viaje em planos de ângulos inusitados. É interessante também a forma com que Pires transporta dentro do gênero policial uma série de referências típicas do universo social brasileiro como os pistoleiros de aluguel, a corrupção política e o coronelismo, mas sem que tal combinação pareça forçada. Antecipa, de certa forma, a integração de faroeste e regionalismo social que Glauber Rocha (discípulo de Pires) faria em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

segunda-feira, outubro 04, 2010

Nosso Lar, de Wagner Assis *


Aquilo que considero como principal ponto negativo de “Nosso Lar” (2010), provavelmente para seus produtores e grande parte de seu público seja uma virtude da obra: trata-se de uma pura peça de propaganda da doutrina espírita. Na história do cinema, há casos emblemáticos desse tipo de produção que acabaram se tornando clássicos, mas pelos seus méritos artísticos, e não pelo conteúdo de sua mensagem – o exemplo mais notório é a obra-prima “O Triunfo da Vontade” (1935), documentário de exaltação dos valores nazistas dirigido por Leni Riefenstahl. Mesmo veiculando um repugnante conteúdo moral e social, é inegável que a cineasta alemã arquitetou uma narrativa dinâmica de imagens esplendorosas de desfiles, paradas, discursos e multidões. Em “Nosso Lar”, a elaboração visual é asséptica e fria. Basicamente, é um filme sem alma sobre espiritismo. O diretor Wagner Assis não soube aproveitar a milionária infra-estrutura de efeitos especiais que tinha a sua disposição. Sua encenação é frouxa e as trucagens resvalam apenas no competente. A caracterização do limbo, por exemplo, é patética pelo enfoque teatral e mambembe (Zé Mojica Marins, por exemplo, com muito menos recursos, criou um Inferno memorável em “Esta Noite Encarnarei em Seu Cadáver”). Os conflitos e situações do filme são expostos com didatismo, mas sem tensão e com banal dramaticidade. Os atores proferem seus diálogos em tom pouco natural, isso quando não caem no escancaradamente professoral. Nem mesmo a trilha sonora do consagrado compositor Philip Glass funciona a contento – é melodramática em excesso e inconveniente ao ser muito retumbante em sequências que exigiam uma música mais reflexiva.

E frustra também em “Nosso Lar” saber que a sua temática, por mais que se acredite ou não no espiritismo, possibilitaria voos criativos bem maiores em se tratando de uma história que se desenvolve no terreno do fantástico, o que acabou não se efetivando pela necessidade de seu realizador em focalizar uma “mensagem” de tons moralistas e edificantes, de acordo com a expectativa daqueles que defendem essa crença.

sexta-feira, outubro 01, 2010

Flor do Deserto, de Sherry Horman **1/2


É inegável que emana de “Flor do Deserto” (2009) um certo ar de filme institucional. A obra narra a trajetória da modelo internacional Waris Dirie, que fugiu do seu país, a Somália, para Londres e lá foi descoberta, depois de alguns percalços pessoais, por um prestigiado fotógrafo de moda. Tendo mutilado o seu clitóris quando criança, devido a um bárbaro ritual cultural, Waris se tornou uma espécie de embaixadora da ONU a fazer campanha contra tal prática. Com essa linha de argumento, “Flor do Deserto” apresenta uma linha narrativa tradicional e pouco ousada (até porque essa não era a intenção dos seus produtores). Mesmo dentro desse formalismo simples, entretanto, é uma produção que pode interessar os apreciadores de cinema em geral. A direção de fotografia apresenta em algumas sequências deslumbrantes dos desertos da Somália, aproveitando muito bem as possibilidades da iluminação diferenciada do local. Além disso, a diretora Sherry Horman dá uma certa dimensão épica e aventuresca para a vida de sua protagonista, com passado e presente se alternando sem sobressaltos, o que inegavelmente prende de forma razoável a atenção do espectador. Horman também contou com interpretações carismáticas de atores britânicos diferenciados como Sally Hawkins e Timothy Spall. Assim, mesmo longe do inesquecível, “Flor do Deserto” consegue ir um pouco além do seu destino prévio de mero veículo de mensagem político-social.