quarta-feira, junho 26, 2019

Dor e glória, de Pedro Almodóvar ***


Na maioria das oportunidades, quando um cineasta de forte traço autoral resolve realizar um filme de teor autobiográfico, o resultado final costuma ser memorável. Afinal, há um artista de visão criativa e existencial diferenciada a refletir sobre o próprio passado sob uma perspectiva subjetiva particular e mais livre das amarras mercadológicas. Dentro de tal concepção, por exemplo, diretores consagrados como Federico Fellini, Ingmar Bergman, John Boorman e Woody Allen conceberam trabalhos antológicos como, respectivamente, “Amarcord” (1973), “Fanny e Alexander” (1982), “Esperança e Glória” (1987) e “A era do rádio” (1987). Assim, um filme como “Dor e glória” (2019) acaba sendo um tanto decepcionante. Afinal, trata-se de obra baseada nas lembranças pessoais de seu diretor, o espanhol Pedro Almodóvar, um dos grandes diretores em atividade. É claro que não chega a ser ruim – pelo contrário, por vezes é até uma obra bem envolvente. A impressão constante, entretanto, é que alguns elementos temáticos e estéticos presentes no longa em questão já foram muito melhor trabalhados em trabalhos anteriores de Almodóvar. As sequências em aparente flashback são exemplos claros de uma certa falta de vigor de “Dor e glória” – são corretas, mas genéricas, quase nem parecendo que são de autoria de alguém de abordagem artística tão original e característica quanto Almodóvar. É claro que alguns detalhes fazem o filme valer uma conferida, principalmente pela ótima atuação de Antonio Banderas e o conjunto fotografia-direção de arte repleto de belos achados imagéticos. Ainda assim, pode ficar para o espectador aquela sensação de que no conjunto geral poderia ter sido bem melhor.

sexta-feira, junho 21, 2019

Suspiria, de Luca Guadagnino ****


No terreno das refilmagens, poucas obras podem ser consideradas como verdadeiras recriações tais como a recente versão de “Suspiria” (2018). Se o filme original dirigido por Dario Argento, lançado em 1977, era uma combinação brilhante de violento terror gráfico e barroquismo beirando o delirante, aliada a um roteiro que respeitava a tradicional divisão maniqueísta entre o bem e o mal (nesse último caso, representado na figura das feiticeiras), na revisão do cineasta Luca Guadagino permanece um formalismo de forte caráter virtuosístico, mas o horror agora recebe uma forte conotação de simbologias sócio-políticas. O papel das bruxas ainda é a de antagonistas, ainda que se contextualizando em aspectos existenciais mais complexos. A trama é inserida em um conturbado contexto local-histórico – a Alemanha de meados dos anos 70 tomadas por manifestações estudantis em prol de grupos terroristas. Se tais organizações eram vistas por alguns como legítimas contestações ao ordenamento burguês-cristão-patriarcal da sociedade ocidental, as bruxas que comandam uma academia de dança moderna em Berlin acabam ganhando de maneira perversamente sutil (e cortante) essa conotação de desafio à ordem vigente. Sem simplificar essas questões histórico-políticas, o filme faz um inventário artístico-temático sensível e contundente de fatos decisivos na formação cultural do século XX – 2ª Guerra Mundial, Guerra Fria, contracultura – evidenciando para a humanidade um período em que os conflitos armados, a exploração sócio-econômica e a opressão religiosa-comportamental criaram um ambiente de paranoia e violência (com reflexos que sentimos até os dias de hoje). Guadagnino ainda aproveita as possibilidades criativas de boa parte da história se desenvolver em uma academia de dança expondo na tela sequências luxuriantes e perturbadoras de balés coreografados com precisão e originalidade atordoantes. Nesse sentido, a síntese entre dança e horror faz lembrar outra obra extraordinária lançada recentemente, “Clímax” (2018). É claro que a particular concepção artística engendrada por Guadagnino provocou repulsa em boa parte dos apreciadores do longa de Argento e mesmo de fãs de terror convencional, mas o que realmente frustraria seria tentar adaptar a obra original mimetizando preguiçosamente maneirismos estéticos e textuais de quarenta anos atrás. Nesse sentido, a visão autoral de Guadagnino na verdade também serve para atestar a atemporalidade do filme de Argento mostrando a impossibilidade de apenas tentar repetir aquilo que já havia sido feito com brilhantismo nos 70.

quarta-feira, junho 12, 2019

Compra-me um revólver, de Julio Hernández Cordón ***1/2


A referência mais óbvia que vem à mente ao se assistir à produção mexicana “Compra-me um revólver” (2018) é “Mad Max – Além da cúpula do trovão” (1985). Afinal, o filme dirigido por Julio Hernández Cordón é uma ficção-científica futurista distópica tendo entre seus principais personagens crianças órfãs abandonadas sobrevivendo em um ambiente hostil. Ao invés de adotar o tom espetaculoso/apoteótico do clássico oitentista de George Miller, esse longa-metragem mais recente se utiliza de uma concepção narrativa-estética mais contida e de uma encenação sóbria, em que efeitos especiais praticamente inexistem e a economia de recursos é determinante em termos de direção de arte e fotografia. E tudo isso que poderia ser visto como um limitador criativo na verdade se converte em uma grande força artística no filme de Cordón, pois aproxima um possível futuro tenebroso de um presente não muito diferente, causando para o espectador um efeito sensorial/existencial perturbador (caos social, exploração humana, violência desmedida, machismo e abandono infantil não estão distantes da realidade do México e de vários outros países da América Latina). O limite entre a sufocante tensão dramática de um thriller de suspense e a reflexão melancólica do subtexto de forte teor sócio-político é sempre difuso, fazendo com que a ligação entre esses dois lados da obra seja intrínseca de maneira contundente. Ainda que a dureza temática e formal predomine na narrativa, “Compra-me um revólver” sabe se permitir nos momentos certos uma certa dose de poesia, conforme se pode perceber em sua evocativa sequência de conclusão.

terça-feira, junho 11, 2019

Thriller - Um filme cruel, de Bo Arne Vibenius ****


Na sessão comentada da produção sueca “Thriller – Um filme cruel” (1973) realizada na última edição do FANTASPOA, a atriz Christina Lindberg disse que o filme em questão teria sido feito pelo diretor Bo Arne Vibenius com a intenção principal de ganhar um bom dinheiro, tendo em vista que o cineasta na época se encontrava na época em séries dificuldades financeiras, abusando, dessa forma, de alguns dos preceitos básicos do cinema exploitation da época, principalmente nos quesitos violência gráfica e sexo explícito. Por mais que a obra seja apelativa no uso constante de tais elementos de choque, entretanto, seu resultado final acabou extrapolando os meros fins lucrativos aludidos por Lindberg. Por mais que a brutalidade e pornografia estejam presentes, elas são incorporadas dentro de uma atmosfera desolada e uma narrativa sóbria, por vezes quase rarefeita, além de um subtexto repleto de ironia perversa, o que faz com que o conjunto estético-temático possua aquela bizarra síntese de repulsa e encantamento dos melhores filmes da linhagem exploitation setentista. Detalhes cênicos como as estranhas sequências de ação em câmera lenta e a atuação icônica de Lindberg fazem entender por que Quentin Tarantino sempre cita “Thriller” como uma das suas grandes inspirações criativas.

segunda-feira, junho 10, 2019

Viagem ao mundo da alucinação, de Roger Corman ***1/2


Ainda que seja um diretor bastante cultuado, Roger Corman foi antes de mais nada um grande homem de negócio dentro do cinema. Mesmo os antológicos filmes que realizou adaptando a obra literária de Edgar Allan Poe são frutos principalmente de um afiado senso de oportunidade mercadológica e de utilização de recursos de produção. Essa mesma lógica artística-comercial o levou a realizar alguns longas dentro da temática sexo-drogas-rock and roll quando essa tríade estava no auge em meados dos anos 1960. “Viagem ao mundo da alucinação” (1967) talvez seja o exemplar mais emblemático de tal tendência, tendo também relevante conotação histórica por trazer em seu elenco e equipe criativa os nomes de profissionais que poucos anos mais tarde estouraram em Hollywood como Jack Nicholson, Denis Hooper, Peter Fonda e Bruce Dern. Por outro lado, o filme de Corman transcende a mera curiosidade histórica ou comercial, tendo um peso artístico considerável. Em meio a maneirismos típicos de um caráter exploitation há momentos efetivamente antológicos, em que as angústias e inquietações existenciais do roteiro encontram uma moldura estética-narrativa mais que adequada. Truques imagéticos baratos, encenação vigorosa e uma trilha sonora que sintetiza rock psicodélico e easy listening de maneira notável formam um todo sensorial entre o atordoante e o encantador. Nessa levada, Corman articula com sensibilidade e ironia a sua particular visão sobre o universo lisérgico sessentista.

quinta-feira, junho 06, 2019

Mutant Blast, de Fernando Alle ***


Uma produção portuguesa de baixo orçamento envolvendo zumbis e uma sociedade pós-apocalipse? É claro que uma obra assim só poderia ser encarada como comédia. E o diretor Fernando Alle tem a plena consciência disso na realização de “Mutant Blast” (2018), fazendo de suas limitações de recursos e de uma sagaz criatividade formal/artesanal seus principais trunfos para realizar um longa divertido tanto em termos de ação quanto de ironia ácida. E o próprio fato dos atores falarem seus diálogos repleto de clichês do gênero com um sotaque lusitano dá um charme cômico para tudo isso ainda maior. É claro que nem sempre o tom debochado/esculachado do filme consegue garantir o equilíbrio narrativo, mas a série considerável de boas sacadas estéticas e textuais segura o interesse do espectador – nesse sentido, é de se destacar a atuação bonachona de Pedro Barão Dias no papel principal e a caracterização física-existencial de um refinado homem-lagosta!

quarta-feira, junho 05, 2019

Mormaço, de Marina Meliande ***


Não há como não traçar paralelos entre “Mormaço” (2018) e “A sombra do pai” (2018). Ambas são obras dirigidas por mulheres que enveredam para o gênero fantástico visando configurar alegorias sócio-políticas do Brasil contemporâneo. Se no filme de Gabriela Amaral Almeida há a predominância de um viés intimista, no longa dirigido por Marina Meliande a trama abarca um espectro maior, focalizando as ações do governo carioca para desalojar várias famílias de seus lares para executar as obras das Olimpíadas de 2016 e a contrarreação de populares para evitar tais despejos. Ainda que bem-intencionadas e louváveis, as sequências de caráter mais realista a focalizar discussões em gabinetes e tribunais e enfrentamentos físicos entre agentes da segurança e moradores por vezes têm uma fluência narrativa e mesmo encenação mais truncadas, pouco fluidas. O filme de Meliande realmente transcendo quando parte para uma concepção estética-temática que sintetiza teor imagético simbolista e horror metafísico, principalmente no terço final da narrativa, quando a doença de pele da protagonista Ana (Marina Provenzzano) se acentua e a personagem entra em um processo de fusão com o prédio deteriorado onde mora. O subtexto é claro e perturbador – a dissolução física de Ana corresponde à deterioração moral-ética da própria capital carioca, em que o antigo e tão decantado Rio de Janeiro marcado por um imaginário gentil e poético dá lugar a uma metrópole desumana e implacável contra aqueles sócio-economicamente fragilizados, em um retrato metafórico que serve também como moldura exata para o Brasil pós-golpe parlamentar.

terça-feira, junho 04, 2019

Vingadores: Ultimato, de Joe e Anthony Russo ***


Em tempos conturbados e complexos como o que vivemos, um filme-evento como “Vingadores: Ultimato” (2019) acaba não se tratando de apenas mais um blockbuster milionário. Por mais que a obra dos diretores Joe e Anthony Russo tenha mobilizado e emocionado milhões de espectadores, não há como dissociar suas conquistas das táticas de marketing agressivo/predatório de produtores e distribuidores. É só pensar, por exemplo, que o fato de ter abocanhado quase 90% das salas em território brasileiro contribuiu bastante para sua performance arrecadatória. É claro que quando a Marvel ascendeu como editora relevante de quadrinhos nos anos 1960 tinha como fim o sucesso comercial. É fato também, entretanto, que as HQs de Stan Lee e companhia tinham um caráter de reflexão cultural do mundo naquela época, o que ficou ainda mais evidente nas sutis tendências no subtexto de caráter libertário e crítica social de algumas de suas principais revistas na década de 70 (presente, inclusive, nas tramas cósmicas envolvendo Thanos). Assim, é algo decepcionante que o tom conformista e previsível de “Vingadores: Ultimato” seja predominante. A gente pode perceber a coerência temática que se construiu ao longo de anos em que filmes interagiram dentro desse universo com naturalidade, além de um competente padrão estético-narrativo na concepção visual e na coreografia da ação – “Ultimato”, aliás, coroa com eficácia tais atributos. A produção, contudo, pouco transcende dessa formatação, culpa de um roteiro fortemente esquemático. Há a pretensão de se apresentar épico, grandioso, mas a duração excessiva e as quedas seguidas para golpes melodramáticos tornam o filme por vezes bem anticlimático. Todas essas considerações não querem dizer que temos uma produção ruim. Pelo contrário – “Vingadores: Ultimato” diverte, até emociona em algumas passagens, além de não dar aquela impressão “nas coxas” dos filmes da DC. O que frustra mesmo é a sua incapacidade (ou mesmo falta de vontade) de sair dos ditames corporativos dos seus donos.