quinta-feira, agosto 31, 2017

Hara-Kiri: A morte de um samurai, de Takashi Miike ****

Em um primeiro momento, pode parecer uma tremenda heresia fazer um remake de uma obra-prima monumental como o “Harakiri” (1962) de Masaki Kobayashi. Seria, realmente, se a refilmagem em questão estivesse nas mãos de um qualquer, mas quando o responsável é um Takashi Miike inspirado o risco acaba valendo à pena. Em termos de roteiro, “Hara-Kiri: A morte de um samurai” (2011) não acrescenta muito ao original de décadas atrás. A sua força está na encenação e narrativa de tremendo rigor artístico de Miike, bem como naquela atmosfera sutilmente demente que é característica no melhor da filmografia do cineasta. A beleza imagética, a forte densidade dramática e o humanismo pungente da trama compõem uma obra memorável que se equivale a outro expressivo de trabalho de Miike no campo das releituras, o insano “13 assassinos” (2010).

quarta-feira, agosto 30, 2017

Anabelle 2 - A criação do mal, de David F. Sandberg **1/2

A franquia “Invocação do mal” e os filmes derivados com a boneca Anabelle têm uma certa coerência artística e temática, propondo-se a uma atualização dos principais clichês narrativos do gênero horror, principalmente dentro de uma fórmula acessível para o grande público em que o roteiro evoca no seu âmago a proteção dos valores familiares diante de ameaças satânicas e o formalismo se baseia em uma concepção mais limpa em termos visuais – claro que há os momentos de violências e trucagens explícitas de monstros e efeitos sobrenaturais, mas nada também que ofenda ou traumatize o gosto das plateias. O fato das tramas se passarem em um determinado período entre os anos 60 e 70 faz também com que a estética das produções se aventure dentro de uma discreta abordagem retrô. Dentro de tal abordagem do gênero, o ponto alto foi "Invocação do mal 2” (2016), onde todos esses elementos adquiriam uma harmonia narrativa mais coesa e eficiente. Em “Anabelle 2 – A criação do mal” (2017), a fórmula já começa a apresentar alguns desgastes. Há alguns aspectos que se mostram promissores, principalmente na questão do roteiro centralizar boa parte das ações dentro de um grupos de garotas órfãs, que oscilam de idade entre a infância e a adolescência, fazendo com que o subtexto da história guarde algumas sacadas interessantes relativas a ritos de passagem e sexualidade feminina. Tais pontos existenciais, entretanto, são apenas tangenciados diante da necessidade comercial de se atender aos preceitos mais previsíveis do gênero. O mecanismo de sustos do filme por vezes consegue criar alguma tensão e impacto para o espectador, mas nada que chegue a ser especialmente memorável. Falta para a produção dirigida por David F. Sandberg sutileza e ousadia na construção de uma atmosfera de mistério, pois sempre fica patente a necessidade de não deixar pontas soltas e fazer ligações protocolares com os roteiros dos demais filmes da franquia.

terça-feira, agosto 29, 2017

Julho-agosto, de Diastème **

A conjunção cinema francês e juventude sempre vai despertar algum tipo de atenção. Partindo de obras clássicas como “Zero de comportamento” (1933) e “Os incompreendidos” (1959) e chegando a obras mais recentes memoráveis como “O verão do Skylab” (2011), a filmografia da França sempre contou com filmes que trouxeram um retrato vigoroso e poético sobre a temática relacionada ao universo de crianças e adolescentes. Dentro da riqueza desse contexto histórico-artístico, uma obra como “Julho-agosto” (2016) acaba soando bastante frustrante. A sequência inicial até parece indicar algo de promissor ao mostrar a adolescente Laura (Luna Lou) incendiando a caixa de correspondência da própria casa e depois saindo para fumar. A boa impressão inicial vai se desfazendo, entretanto, com o desenrolar da narrativa, com o diretor Diastème se contentando com uma encenação pouco imaginativa e um roteiro esquemático, previsível e conservador. Faltou para o cineasta mais ousadia estética e temática para entregar um trabalho capaz de causar alguma tensão ou atrito para o espectador. Dentro dessa concepção artística meia-boca, salva-se apenas a atuação marcada por alguma crueza da jovem Luna Lou.

segunda-feira, agosto 28, 2017

Corpo elétrico, de Marcelo Caetano ***1/2

A presença de Hilton Lacerda, diretor de “Tatuagem” (2013), na elaboração do roteiro de “Corpo elétrico” (2017) não é gratuita, assim como o fato do diretor Marcelo Caetano ter participado em produções como “Boi neon” (2015), “Mão só há uma” (2016), “Aquarius” (2016) e o próprio “Tatuagem”. Seu longa-metragem de estreia como cineasta se coloca numa certa tradição recente das obras mencionadas, combinando temática e encenação de caráter libertário e estética criativa e de feroz coerência artística. Por vezes, a ambição do filme no seu retrato-manifesto existencial esbarra em algumas soluções óbvias do roteiro, principalmente na sequência em que o protagonista Elias (Kelner Macêdo) é assediado moralmente por seu chefe para não se misturar com seus colegas subordinados. Mas tal equívoco é apenas um detalhe menor, pois o que predomina na narrativa é um formalismo desconcertante, que se alterna de maneira fluida entre o rigor realista e atmosferas hedonistas que beiram o delirante. A naturalidade e rigor com que tal concepção artística é colocada em prática geram alguns momentos antológicos, como o plano-sequência em que Elias e amigos descem uma rua e desenvolvem uma interação cênica repleta de nuances dramáticas-cômicas ou as cenas em que uma gangue de drags tocam o horror nas ruas e em boates. Além disso, as despudoradas cenas de sexo são filmadas dentro de uma síntese de fúria e lirismo, enquanto a sequência de encenação do casamento de um casal proletário repleto da junção de signos ritualísticos de diversas religiões e culturas traz uma atordoante carga simbólica de contestação sócio-política. Coroando tais escolhas artísticas ousadas, há uma poética conclusão da trama que se mostra em sensível e contundente sintonia com o belo discurso temático-estético de “Corpo elétrico”.

sexta-feira, agosto 25, 2017

Os campos voltarão, de Ermanno Olmi ***1/2

O diretor italiano Ermanno Olmi atinge um feito memorável na produção “Os campos voltarão” (2014) ao obter uma síntese insólita e pungente entre poesia e brutalidade. O retrato que oferece de uma frente de batalha na I Guerra Mundial em um primeiro momento impressiona pela sua crueza realista em termos de recriação imagética – fotografia e direção de arte valorizam uma composição visual marcada pela sujeira e por uma atmosfera sombria, ainda que por vezes faça um contraste perturbador com a beleza das paisagens interioranas onde o conflito se desenvolve. Aliás, esse pendor para ressaltar nuances de um ambiente agrário remete diretamente ao grande clássico da filmografia de Olmi, “A árvore dos tamancos” (1978), de onde também se assemelha em um certo teor de beatitude de algumas passagens do roteiro. Nesse ponto, reside o grande ponto de transcendência artística do filme, onde a perspectiva principal da narrativa se encontra na rotina melancólica e desesperada de um grupo de soldados italianos em uma trincheira violentamente acossada pelos inimigos germânicos. A obra capta com sensibilidade detalhes existenciais contundentes, como a resignação fatalista de soldados e praças oriundos das camadas mais pobres da sociedade até a alienação e perplexidade de seus oficiais. Olmi consegue conciliar com maestria essa profunda abordagem intimista a uma dinâmica de ação típica do gênero filme de guerra. Nesse sentido, os ataques finais dos morteiros alemães impressionam pelo sensorialismo devastador de sua encenação.

quinta-feira, agosto 24, 2017

Rifle, de Davi Pretto ***1/2

Se em “Castanha” (2014) o diretor Davi Pretto focava o seu olhar sobre um sombrio cenário urbano de Porto Alegre, em “Rifle” (2016) volta sua câmera para um ambiente rural contemporâneo. Não se trata, entretanto, de uma revisão óbvia de um desgastado cinema “regional” típico de uma ala das produções gaúchas contemporâneas. Na produção em questão, alguns preceitos típicos do gênero faroeste recebem uma releitura radical e peculiar e se entrelaçam com os elementos de forte teor social do subtexto do roteiro. Em uma descrição mais simbólica, é como se a estrutura narrativa clássica estabelecida em “Os brutos também amam” (1953) fosse perpassada pelo viés melancólico e naturalista do conceito do “gaúcho à pé” firmado na obra literária concebida por Cyro Martins. Assim, o que está em pauta não é uma visão idealizada e idílica daquele interiorano puro e corajoso, discutível mito tão valorizado em comemorações “farroupilhas” e afins, mas sim o sujeito humilde inserido num contexto sócio-econômico de exploração e abandono. Ainda que tomado por esse caráter de crítica social, a perspectiva do roteiro foge de maniqueísmos e outras simplificações – a revolta e fúria do protagonista Dione diante do assédio inclemente de um grande latifundiário é difusa e desordenada, fruto de uma alienação incontornável, fazendo com que seus atos de brutalidade soem patéticos e pouco eficazes. Dentro desse complexo panorama existencial, as escolhas estéticas e narrativas de Davi Pretto são desconcertantes, em que um classicismo imagético que evoca o cinema de grandes paisagens de John Ford se une com naturalidade a uma encenação vigorosa e precisa herdada do neo-realismo italiano. Nesse último aspecto, é extraordinário o trabalho de direção dos atores amadores, em que a força das composições dramáticas do elenco está justamente na veracidade de suas caracterizações (a forma truncada como falam configura um quase dialeto em que a riqueza do sentido está dentro do contexto daquilo que falam e não nos conceitos previsíveis de dicção e clareza). No mais, Preto pontua “Rifle” com detalhes narrativos expressivos como a sóbria e expressiva trilha sonora baseada em drones sonoros e na bela homenagem que faz ao clássico “Targets – Na mira da morte” (1968) na sequência em que Dione sai atirando a esmo em veículos que transitam solitários em estradas pampeanas.

quarta-feira, agosto 23, 2017

Valerian e a cidade dos mil planetas, de Luc Besson ***

Depois de enveredar pela ficção-científica pós-moderna metida à besta de “Lucy” (2014), o diretor francês Luc Besson muda o seu foco artístico e busca uma concepção mais clássica do mesmo gênero em “Valerian e a cidade dos mil planetas” (2017). Tanto que o roteiro se baseia numa série de HQs dos anos 60. O resultado final é bem divertido e, por vezes, até ousado na sua estética que combina atmosfera retrô e trucagens digitais na linha estabelecida por “Avatar” (2009). Alguns cânones temáticos da ficção científicas são ordenados com coerência e sensibilidade por Besson, principalmente no confronto que se estabelece dos princípios idealizados de uma sociedade futurista avançada na sua síntese de tecnologia de ponta e princípios humanistas com a realidade de uma distopia marcada pela injustiça social e pela violência. É claro que tal visão existencial se estabelece como sutil subtexto em meio a uma típica narrativa de aventura que por vezes beira o frenético, mas também é o mote que dá a convincente tensão dramática para a obra. Os efeitos especiais não chegam a ser algo tão chamativo em termos de originalidade. Em conjunto, entretanto, com o criativo trabalho de direção de arte acabam gerando uma concepção imagética memorável. Besson também mostra um forte domínio da ação cinematográfica, fazendo lembrar aquele cineasta que nos legou o antológico policial casca-grossa “O profissional” (1994). Nesse sentido, estão entre os melhores momentos de “Valerian” a sequência em que o protagonista (Dane DeHaan) e sua parceira Laureline (Cara Delevingne) entram numa perseguição alucinada em meio a um mercado que oscila entre os planos dimensionais real e virtual e aquela em que o personagem principal corre alucinado pela tal cidade dos mil planetas atravessando paredes, pulando prédios e outras demências.

terça-feira, agosto 22, 2017

Planeta dos macacos: A guerra, de Matt Reeves ***1/2

Depois do melodrama excessivo de “Planeta dos macacos: A revolta” (2014), o diretor Matt Reeves arruma a casa e faz com que a franquia retome um rumo mais convincente e divertido em “Planeta dos macacos: A guerra” (2017). Ainda que a trama apresente os seus momentos sentimentais, o roteiro consegue fazer uma síntese eficiente entre a aventura e as implicações morais da história. Logo no início do filme, já é apresentada uma memorável sequência de batalha envolvendo símios e humanos, aproximando novamente a série daquela atmosfera casca-grossa das clássicas produções de décadas atrás da franquia. Reeves conseguiu desenvolver de maneira inspirada os preceitos básicos do gênero aventura fantástica pos-apocalítptica – a caracterização imagética é impactante, os principais personagens apresentam efetivas nuances psicológicas (com destaque para o atormentado protagonista César e seu antagonista humano Coronel), as sequências de ação são coreografadas com detalhismo e fúria. E mesmo o subtexto do roteiro apresenta elementos surpreendentes na visão de contundente acidez crítica na exposição sem atenuantes do militarismo obtuso e desumano da sociedade ocidental, bem como à intolerância em relação àquilo que é considerado diferente. Nesse sentido, a figura dos macacos em fuga à procura de um lugar em que possam viver em paz tanto se conecta as passagens bíblicas quanto aos episódios recentes de refugiados da África e Ásia que são perseguidos por questões políticas e religiosas e são tratados com desdém desumano pelos povos ocidentais. Poucos blockbusters nos últimos anos tiveram a ousadia de fazer tal reflexão.

segunda-feira, agosto 21, 2017

Saint Amour - Na rota do vinho, de Benoit Delépine e Gustave Kervern **1/2

Em sua concepção artística-narrativa, “Saint Amour – Na rota do vinho” (2016) apresenta uma intrigante conjunção de preceitos formais e temáticos, misturando estética realista, atmosfera libertária, traços de comicidade ingênua, crítica social e truques sentimentais. Tal receita é até simpática por vezes, rendendo momentos genuinamente engraçados e outros desconcertantes. Predomina, entretanto, uma percepção de uma obra que avança em sua narrativa de maneira desajeitada, faltando um rigor mais consistente na direção de Benoit Delépine e Gustave Kervern. Se houvesse um maior controle na junção de tais elementos tão diversos talvez o impacto sensorial e textual da obra fosse bem maior para o espectador.

sexta-feira, agosto 18, 2017

O estranho que nós amamos, de Sofia Coppola **1/2

Em seus dois primeiros filmes, “Virgens suicidas” (1999) e “Encontros e desencontros” (2003), a diretora norte-americana Sofia Coppola delineou uma assinatura artística de sutileza autoral, em que um certo classicismo de filmar se aliava a discretos elementos modernizantes – nesse último aspecto, pode-se dizer que havia a utilização de aspectos de uma cultura indie, partindo de um olhar existencial de caráter feminino e se aproveitando de signos pop contemporâneos, principalmente na forma com que se utilizava de canções da trindade rock-pop-eletrônico. Posteriormente, essa receita narrativa se diluiu e banalizou de maneira considerável, ainda que a cineasta tenha mostrado um amadurecimento no acabamento formal de seus filmes (ainda que isso implicasse na perda da espontaneidade criativa de suas duas mencionadas obras iniciais). “O estranho que nós amamos” (2017) se encaixa justamente no caso de seus trabalhos mais recentes. Pode-se perceber uma sofisticação em sua arquitetura estética, além de sua abordagem emocional mostrar uma considerável sobriedade. E é claro que ela tinha todo o direito de oferecer uma nova perspectiva criativa para a obra literária original que também serviu de base para o filme de 1971 de Don Siegel. O problema, no entanto, é que no inevitável embate de comparação entre os dois trabalhos a balança pende de maneira ostensiva para o clássico setentista. Falta para a produção recente o vigor narrativo e a irônica atmosfera de ambiguidade que tornaram “O estranho que nós amamos” de Siegel uma produção referencial. Assim, a nova visão de Coppola acaba soando irrelevante por não acrescentar algo de novo para uma história que em sua versão cinematográfica anterior já havia recebido um tratamento artístico definitivo.

quinta-feira, agosto 17, 2017

O culto a JT Leroy, de Marjorie Sturm ***

A história do escritor fake JT Leroy já é fascinante por si só em todas as suas circunstâncias que envolvem questões artísticas e picaretagens editoriais. Nesse sentido, o documentário “O culto a JT Leroy” (2014) impressiona pela quantidade de informações e cenas de arquivo que focam toda a saga de ascensão, apogeu e queda do seu protagonista, com a diretora Marjorie Sturm conseguindo conciliar tais elementos em uma narrativa tensa, sombria e algo irônica. Trata-se de uma obra que também tem o mérito de conseguir captar muito bem o espírito de uma época no que diz respeito a uma síntese perturbadora de vazio existencial, culto a celebridades e a visão romantizada da decadência. Além disso, Sturm consegue construir um sofisticado subtexto a partir de sutis nuances narrativas – é de se reparar que a trama se estrutura por vezes quase como uma trama policial ou detetivesca, realçando a revolta de artistas e fãs com os desdobramentos da farsa que envolvia Leroy, mas em pequenos detalhes fica evidente uma exposição crua e impiedosa de um meio editorial marcado pelo machismo e elitismo que propicia toda uma teia de mentiras e enganos.

quarta-feira, agosto 16, 2017

Dunkirk, de Christopher Nolan ***1/2

Um dos aspectos mais interessantes na carreira do diretor Christopher Nolan é a forma como conseguiu desenvolver e manter um certo padrão autoral em grandes produções dos estúdios norte-americanos. Esse seu traço artístico peculiar se aplica até para alguns dos equívocos estéticos que são recorrentes em suas obras, principalmente no que diz respeito a uma certa assepsia visual. Em “Dunkirk” (2017), seu filme mais recente, tal incômodo persiste – para um filme de 2ª Guerra Mundial repleto de violência brutal, chega a ser estranho a ausência de sangue e uma “limpeza” na caracterização de personagens e situações. Por outro lado, daria para dizer que isso se vincula a uma concepção de narrativa que se liga muito mais à recriação de um imaginário do conflito do que ao desejo de uma reconstrução mais realista de fatos históricos – é de reparar, por exemplo, nas ótimas interpretações no estilo icônico de Tom Hardy e Mark Rylance. Ou seja, aquilo que era para ser um “erro” acaba adquirindo um sentido estético-temático e se torna uma condição estilística de efetiva coerência. É fato também que outros aspectos pertinentes do estilo de Nolan também ficam evidentes em “Dunkirk”, principalmente no que diz respeito a uma encenação precisa e a fluidez do ritmo narrativo. Dentro de tais preceitos formais, Nolan consegue realizar um feito admirável ao articular com que lugares comuns do roteiro ligados a patriotismo e sentimentalismos adquiram uma dimensão mais ampla e complexa, em que as ações relacionadas à retirada de tropas francesas e inglesas sob inclemente ataque alemão se mostram como uma intensa luta pela sobrevivência sob uma perturbadora atmosfera de pesadelo. Nesse sentido, uma das grandes sacadas narrativas de Nolan está no uso do som ambiental e dos temas musicais da trilha sonora, que se entrelaçam de maneira orgânica e insólita, resultando em algumas sequências de angustiante tensão dramática.

terça-feira, agosto 15, 2017

Monsieur & madame Adelman, de Nicolas Bedos **1/2

É difícil não lembrar de “Cenas de um casamento” (1973) ao se assistir a “Monsieur & Madame Adelman” (2017). Em ambos os filmes, roteiro e estrutura narrativa se baseiam na exposição dos fatos mais relevantes e emblemáticos na história de um casamento, passando por uma gama considerável de situações, sentimentos e sensações inerentes a esse tipo de relacionamento amoroso. Nas duas obras há também o desejo de se afastar das idealizações romantizadas que geralmente produções no gênero costumam cair, com enfoques, dessa maneira, que buscam uma certa crueza realista em sua abordagem artística-existencial. Outro ponto em comum é que nas produções mencionadas há o questionamento do papel da mulher dentro do matrimônio diante de um contexto sócio-cultural ocidental que ainda guarda fortes traços machistas e patriarcais. Feitas essas aproximações, cabe deixar uma coisa bem clara – por mais que se simpatize com algumas escolhas criativas da produção francesa dirigida por Nicolas Bedos, ela ainda se encontra a milhas de distância da obra-prima concebida por Ingmar Bergman. Algumas passagens do roteiro até surpreendem pela sua síntese de ironia divertida e nuances dramáticas inquietantes, mas a encenação por vezes previsível, o didatismo primário na caracterização do ambiente histórico e a queda excessiva para o convencionalismo formal atenuam muito o impacto sensorial de “Monsieur & madame Adelman”, ao contrário do rigor estético e da cruel (e muito humana) dissecação filosófica-emocional de um casamento arquitetados no perturbador filme de Bergman.

segunda-feira, agosto 14, 2017

O filme da minha vida, de Selton Mello *

Na função de diretor, Selton Mello se mostrou um nome promissor em seus dois primeiros longas-metragens, “Feliz natal” (2008) e “O palhaço” (2011), obras que, ainda que mostrassem alguns tropeços em suas respectivas narrativas, evidenciavam um vigor admirável na reciclagem de clichês formais e temáticos inerentes aos gêneros melodrama e comédia, na encenação equilibrada entre o sutil e o rascante e no belo trabalho de direção de elenco. Dentro desse contexto pregresso, a produção mais recente de Mello como cineasta, “O filme da minha vida” (2017), é uma expressiva decepção artística. Se nos mencionados filmes anteriores se podia perceber um considerável caráter desafiador no conjunto estético-existencial, agora Mello se mostra de maneira escancarada com a intenção de se adequar a moldes mofados e despersonalizados de concepção narrativa, como se procurasse uma linguagem mais “acessível” para buscar a aceitação comercial de um público maior. Na busca de tal intento, articulou uma fórmula medíocre e sem graça de “contar uma história”, algo como a assepsia audiovisual de uma minissérie global somada ao sentimentalismo óbvio e barato de produções “de qualidade” como “Cinema Paradiso” (1988) e “O carteiro e o poeta” (1994) – não é à toa que o roteiro se baseou na obra literária original de Antonio Skarmeta, mesmo escritor de “O carteiro e o poeta”. Diante de tais escolhas artísticas, não adianta contar com Walter Carvalho como diretor de fotografia se enquadramentos e iluminação vão emular um traço imagético de cartão postal ou ter alguns nomes interessantes no elenco se todos eles vão afundar com a mãe pesada de Mello na encenação. Isso sem falar no constrangedor caráter machista de algumas passagens do roteiro que vêm travestidas de humanismo e sensibilidade. Há de se convir, entretanto, que “O filme da minha vida” acaba traduzindo com fidelidade o espírito do nosso tempo nesse reacionário Brasil pós-golpe em que vivemos – seu mercantilismo conservador disfarçado de “qualidade artística” é sintomático da hipocrisia e moralismo obtusos que grassam em nossa sociedade.

sexta-feira, agosto 11, 2017

O ninho, de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon **1/2

Em termos conceituais, a produção gaúcha “O ninho” (2016) se mostra bastante inquietante. Sua abordagem da temática LGBT foge bastante de estereótipos e obviedades – é claro que no roteiro perpassa a questão do preconceito, mas os diretores Filipe Matzembacher e Márcio Reolon buscam também um enfoque contundente que sintetiza uma narrativa de ritmo sereno e sequências pontuais de violência catártica. Ou seja, é uma obra de caráter desafiador tanto pelo lado formal quanto pelo aspecto existencial. Nesse sentido, talvez o grande acerto artístico seja a forma como os diretores conduzem as intepretações de seu elenco, principalmente a ala “não profissional” dos garotos que formam um grupo “anarco-queer”. São atuações espontâneas, vigorosas, e que aliadas a uma caracterização visual de forte presença cênica acabam rendendo algumas das sequências mais memoráveis da produção. Outro destaque positivo é a forma como Porto Alegre é retratada: nesse conjunto de hotéis e apartamentos algo decrépitos, de desolado cenários externos noturnos e de hedonistas e obscuras boates gays, é como se despontasse uma capital gaúcha de um perturbador e atraente universo paralelo. O problema de “O ninho” é que todas essas boas ideias e sacadas estéticas-temáticas, por vezes, não encontram uma narrativa equilibrada e envolvente. É como se seus realizadores se perdessem em alguns momentos no seu fascínio por esse universo e privilegiassem um olhar excessivamente fetichista.

quinta-feira, agosto 10, 2017

Em ritmo de fuga, de Edgar Wright ****

Assim como em “De canção em canção” (2016), o rock and roll não é exatamente o tema principal de “Em ritmo de fuga” (2016), mas os dois, estilo musical e filme, acabam apresentando um coerente paralelo existencial tal havia ocorrido também no trabalho mencionado de Terrence Malick. Tal relação se estabelece não apenas pelo fato da produção dirigida por Edgar Wright usar como elemento essencial da narrativa várias canções do tripé rock-pop-soul, mas também por um peculiar conceito artístico. Nesse sentido, é preciso ter em mente que o rock and roll entendido como fenômeno sociológico comportamental é algo que hoje em dia é de influência nula. Em termos musicais, ele pode até ter uma ascendência e mesmo assim se restringindo a um âmbito mais subterrâneo ou a pequenos nichos. Mas no sentido de se relacionar com as principais questões culturais e sociais do mundo contemporâneo, o rock não tem a mesma relevância de anos atrás, como aconteceu, por exemplo, com a sua ligação com a contracultura dos anos 60 ou com o niilismo e alienação da década de 90. Resumindo: o rock and roll hoje em dia é um artigo nostálgico de museu, congelado no tempo. Ou seja, perfeitamente de acordo com a estética retrô trabalhada por Wright em “Em ritmo de fuga”. No roteiro e na atmosfera de tal obra, há uma queda pela reconstituição de um imaginário particular, uma espécie de síntese sensorial dos preceitos básicos dos filmes de gangsteres e de jovens rebeldes, tudo embalado por temas musicais rockers. Longe da mera reciclagem, o que Wright faz é combinar tais referências em uma linguagem cinematográfica bastante ousada e dinâmica, em que o ritmo da narrativa se liga a intensidade rítmica e melódica de cada canção que surge em cena. Isso fica evidente logo de cara na sensacional sequência de abertura, em que cada passo de um assalto e da consequente perseguição automobilista parece determinado pela evolução da agitada e sinuosa “Bellbottoms” de Jon Spencer Blues Explosion. Como já havia mostrado de maneira contundente em filmes anteriores antológicos como “Todo mundo quase morto” (2004), “Chumbo grosso” (2007) e “Scott Pilgrim contra o mundo” (2010), Wright demonstra em “Em ritmo de fuga” um domínio expressivo da ação cinematográfica, vide sequências de perseguições e tiroteiros marcadas por coreografias ricas em detalhes e precisão cênicas, além de incorporar com sensibilidade e inteligência em diálogos e nuances imagéticas uma gama incrível de referências culturais.

quarta-feira, agosto 09, 2017

O sonho de Greta, de Rosemary Myers *1/2

Ter influências artísticas na concepção de uma obra não é algo errado por si só. O problema é como tais influências são utilizadas. Em “O sonho de Greta” (2015), dá para perceber referências claras à encenação anti-naturalista típica de Wes Anderson, à estilização visual habitual de Tim Burton e ao onirismo característico de David Lynch. Na pretensão conceitual da diretora Rosemary Myers provavelmente estava o desejo de misturar tais influências com uma narrativa a versar sobro o rito de passagem da infância para a adolescência para a protagonista Greta (Belthany Whitmore) com todos os desdobramentos emocionais inerentes a tal mudança. O problema é que Myers não consegue dar uma fluência narrativa para tal ambição artística-existencial, vide uma encenação engessada, um formalismo pouco inspirado e um roteiro nada sutil que joga sem cerimônia o seu subtexto na cara do espectador (por vezes, dá a impressão de que o filme parece ser uma produção institucional a ser exibida em escolas). Mesmo elementos que poderiam trazer algum fator diferencial para o trabalho de Myers, como as citações setentistas da direção de arte e uma certa atmosfera sombria, acabam soando mais como forçadas tentativas de parecer cool do que propriamente como fatores criativos que se inserem de maneira orgânica e coerente na narrativa.

terça-feira, agosto 08, 2017

De canção em canção, de Terrence Malick ****

Não dá para dizer que “De canção em canção” (2016) seja exatamente sobre o rock and roll, ainda que a temática esteja presente dentro de sua trama que tem como uns dos seus principais cenários os bastidores de shows e festivais do gênero, além de trazer personagens relacionados ao meio. Na realidade, esse filme mais recente do diretor norte-americano Terrence Malick parece compor uma particular trilogia existencial-artística com os dois filmes anteriores do cineasta, “A árvore da vida” (2011) e “Amor pleno” (2012). Nas três obras, há uma síntese estética-temática a versar sobre um mal-estar existencial contemporâneo que se formata como um peculiar conto moral-místico. Dentro de tal concepção narrativa e textual, Malick destrincha uma formatação poética e intrincada, em que a fotografia esplendorosa e uma edição que parece se desenvolver como se fosse um fluxo de consciência não obedecem às regras “normais” da técnica – é de se reparar, por exemplo, um predomínio de cenas em que o áudio não se liga com exatidão ao que está na imagem, gerando um efeito sensorial que tanto desconcerta pelo inusitado quando encanta pela genialidade de sua execução. É na recusa de “De canção em canção” em se vincular a uma ortodoxia estilística que o filme efetivamente se aproxima do rock and roll. Tal estilo musical sempre foi marcado por uma contradição – ao mesmo tempo que apresenta uma corrente tomada pelo tradicionalismo e pela busca pelo “sucesso” comercial, há também uma linha que se expande para um universo de ousadia e inquietação artísticas, e que entra em choque com a realidade do mercado. A produção de Malick busca a ligação com essa segunda vertente rocker, tanto na maneira como mostra a relação entre o músico BV (Ryan Gosling) e seu empresário/produtor Cook (Michael Fassbender), marcada por um jogo ambíguo de admiração e exploração, quanto na forma como a própria música se insere na narrativa. Não à toa, a grande presença musical em cena é da cantora e compositora Patti Smith, artista de grande força lírica e messiânica, que se insere na trama em diálogos inspiradíssimos e também com algumas de suas melhores canções em algumas das cenas mais antológicas do filme.

segunda-feira, agosto 07, 2017

Transformers 5: O último cavaleiro, de Michael Bay *

O diretor Michael Bay aparenta em “Transformers 5: O último cavaleiro” (2017) um desespero para mostrar que está em sintonia com aquilo que está “na moda” em termos de produções blockbusters. A trama do filme é uma espécie de compêndio das tendências temáticas que estão “dando certo” nos últimos anos – ficção apocalíptica estilo “Jogos Vorazes”, narrativa de cavaleiros na linha “Game of Thones”/”Rei Arthur”, atmosferas “sombrias” que lembram a série “Alien”. Essa junção disparatada de referências, entretanto, nunca dá liga devido a uma encenação primária e a um roteiro repleto incongruências e simplificações constrangedoras. Aliás, Anthony Hoplins devia estar precisando urgentemente de uma grana para aceitar passar mais duas horas com um ar abobalhado em cena. O fato é que no primeiro filme da franquia lançado em 2007 havia mais convicção e criatividade artísticas que tornavam as bobagens da trama até palatáveis. Desde lá, a qualidade das continuações seguintes despencou ladeira abaixo até chegar no limite do insuportável desse “O último cavaleiro”. E como as últimas notícias dizem que Bay está preparando mais continuações da franquia, é provável que as coisas ainda não tenham chegado ao fundo do poço...

sexta-feira, agosto 04, 2017

A filha, de Simon Stone *1/2

Os créditos de “A filha” (2015) dizem que o filme é uma adaptação de uma peça clássica do dramaturgo Henrik Ibsen. Do jeito que a produção ficou, entretanto, parece que é uma versão pseudo-artística de alguma novela global. Não que a trama em si seja propriamente brega e previsível, mas o que realmente incomoda nessa obra dirigida por Simon Stone é a mão pesada do cineasta em sua encenação. O tom solene e asséptico da primeira metade da narrativa até dá uma enganada, mesmo que o roteiro indique alguns incômodos lugares comuns temáticos. Na metade final do filme, a pretensa sobriedade da abordagem formal e textual vai para o espaço e “A filha” se torna uma irritante síntese de exageros melodramáticos e metáforas ordinárias. Pode-se perceber algumas intenções nobres em termos de expor no subtexto da obra um simbolismo mais contundente, a relacionar uma perspectiva intimista e uma visão social crítica dos valores morais hipócritas da sociedade ocidental, mas a falta de inspiração artística de Stone faz tal pretensão cair por terra.

quinta-feira, agosto 03, 2017

A vida de uma mulher, de Stéphane Brizé ***

A fórmula narrativa que o diretor francês Stéphane Brizé costuma apresentar em seus filmes está longe de ser especialmente original, mas de certa forma acaba até se mostrando por vezes ousada e com algo de uma pegada autoral pela forma elegante com que conduz seu conceito artístico – são tramas que se vinculam a uma estrutura típica de melodrama, mas que acabam recebendo um tratamento formal-existencial marcado pela sobriedade e rigor. Em “A vida de uma mulher” (2016) tal concepção de cinema fica bem evidenciada em suas nuances estéticas e na sua atmosfera sombria e melancólica. O roteiro é baseado em um original literário de Guy de Maupassant e se pode perceber que Brizé busca valorizar a força dos diálogos e os desdobramentos relevantes da trama. Dentro dessa abordagem, há uma impressão de distanciamento emocional, com o cineasta dispensando recursos óbvios que fatalmente fariam tudo descambar para o sentimentalismo. Tal orientação faz com que o processo de amadurecimento da protagonista Jeanne (Judith Chemia) seja mostrado sem concessões e com uma endurecida coerência filosófica-moral. Dessa maneira, a narrativa não é marcada por um arrebatamento sensorial, mas sim por uma espécie de lenta construção perturbadora de situações e personagens que revela o seu efetivo impacto para o espectador em sua conclusão. Ou seja, “A vida de uma mulher” se configura como um atemporal conto moral a dissecar com um misto de crueza, ironia e alguma doçura os típicos valores hipócritas e obscurantistas da sociedade francesa do século XIX (e que na realidade se estendem até hoje na sociedade ocidental contemporânea).

terça-feira, agosto 01, 2017

Gatos, de Ceyda Torun ***1/2

A intenção do diretor Ceyda Torun em “Gatos” (2016) não é apenas mostrar como os felinos são animais peculiares e cativantes (ainda que faça isso muito bem). Perpassa por toda a narrativa do filme um sutil conceito artístico-existencial – ao mostrar a relação cotidiana entre os moradores de Istambul com gatos de ruas, a obra valoriza um forte teor humanista e que por vezes insinua uma atmosfera de mistério típico que ronda o imaginário sobre tais animais. Em um mundo cada vez mais marcado pelo avanço capitalista-tecnológico desumanizador, a convivência entre humanos e felinos remete a uma ligação mais profunda com a natureza e mesmo com o desconhecido. No caso dos bichos em questão, tal relacionamento é ainda mais fascinante, no sentido que a personalidade de gatos é algo que beira o inescrutável. Afinal, eles são bem mais imprevisíveis que outros animais domésticos, tendo em várias situações atitudes inexplicáveis até para aquilo que é considerado instintivo. Tal caráter indomável revela um perfil de desafio perante à ordem “humana”, o que ajuda a explicar boa parte do fascínio que eles exercem. O filme de Torun consegue captar com sensibilidade e contundência toda essa complexidade de sensações e comportamentos, oferecendo um formalismo repleto de nuances estéticas extraordinárias que realçam com vigor a beleza e a estranheza de tal universo temático, vide a direção de fotografia de notável detalhismo imagético e o misto de exotismo e pungência dos temas musicais da trilha sonora (aliás, dentro desse conjunto audiovisual, não há como não se lembrar de outro marcante documentário ambientado em Istambul, “Atravessando a ponte”).