quarta-feira, novembro 30, 2016

Creepy, de Kiyoshi Kurosawa ****

O diretor japonês Kiyoshi Kurosawa tem uma forte vinculação com o cinema de gênero, principalmente na área de interligação entre o suspense e o horror, mas sua abordagem artística é bastante diversa daquela de produções nipônicas como “O chamado” (1998) e derivados. Isso fica bastante evidente em sua obra mais recente, “Creepy” (2016). Não há grandes inovações em termos formais e temáticos, e por vezes até pode haver um certo incômodo com algumas incongruências do roteiro. O forte de Kurosawa está na construção de uma atmosfera densa e perturbadora de tensão e terror, na caracterização bizarra de personagens e situações, na forte e sutil simbologia da trama e numa encenação desconcertante que varia do intimismo dramático ao puro horror gore. Os clichês narrativos tradicionais do gênero estão presentes de maneira constante, mas uma das grandes sacadas do cineasta está na sua criatividade e virtuosismo estéticos em manipular tais recursos e os colocar em cena sob uma perspectiva insólita e mesmo de caráter desafiador. Nesse sentido, a relação emocional que se estabelece no triângulo composto pelo protagonista Takakura (Yuko Takeuchi), sua esposa Yasuko (Hidetoshi Nishijima) e o asqueroso psicopata Nishino (Teruyuki Kagawa) revela nuances existenciais inquietantes, principalmente na forma com que questiona valores morais e comportamentais. A lógica e prática distorcidas de Nishino em induzir laços emocionais estimulando o vício em drogas pesadas e exterminar famílias parece evocar uma espécie de expiação das hipocrisias da sociedade moderna. Por trás desse discurso ambíguo há um complemento formal de coerência sensorial impressionante, vide a fotografia de tons sombrios, a trilha sonora de temas efetivamente assustadores e a edição que conduz a narrativa como se fosse um macabro conto gótico.

terça-feira, novembro 29, 2016

Menino 23: Infâncias perdidas no Brasil, de Belisário Franca ***

A premissa básica do argumento de “Menino 23: Infâncias perdidas no Brasil” (2016) pode fazer pensar até numa obra de cunho ficcional beirando o fantástico: nos anos 30, garotos negros órfãos são levados do Rio de Janeiro para uma grande fazenda do interior de São Paulo de propriedade de simpatizantes do integralismo e do nazismo e lá são submetidos a condições de escravidão. Ocorre, entretanto, que o filme dirigido por Belisário Franca é um documentário, ou seja, mostra fatos que realmente aconteceram, o que torna tudo ainda mais assustador e revoltante. A abordagem formal de Franca é simples e direta, utilizando depoimentos recentes, encenação discreta e registros audiovisuais de arquivo. A partir de tal recursos, o diretor consegue obter uma síntese narrativa eficiente e de impacto, conciliando de maneira precisa o aspecto histórico/didático, ao mostrar o contexto sócio-político do racismo naquele período, com o fator intimista/dramático, dando a palavra a dois homens que fizeram parte de tal “experimento” nefasto. A partir desse conjunto estético-temático, “Menino 23” traça um perfil complexo e contundente da trajetória do preconceito racial no Brasil, mostrando também como tal questão está intrinsecamente ligada aos mecanismos de opressão para perpetuação no poder de uma oligarquia econômica, evidenciando uma sintonia, dessa forma, com alguns fatos bem recentes da história do nosso país.

segunda-feira, novembro 28, 2016

Snowden - Herói ou traidor?, de Oliver Stone ***1/2

Parte significativa da filmografia do diretor norte-americano Oliver Stone é dedicada a fazer uma espécie de inventário sócio-político-cultural da história do seu país. Dentro desse nicho, seu maior acerto artístico foi “JFK” (1991), que apresentava uma combinação notável entre narrativa dinâmica e envolvente e um conteúdo aprofundado e inquietante sobre a temática que versava. Essa síntese também é o grande mérito de “Snowden – Herói ou traidor” (2016), obra mais recente de Stone, que foca a história do ex-agente da CIA que denunciou os mecanismos de espionagem virtual praticada pelos Estados Unidos. Ainda que o filme se renda a alguns convencionalismos narrativos, a noção de ação cinematográfica é muito bem trabalhada, vide a edição que incorpora com naturalidade e coerência efeitos digitais a simularem o mundo da virtualidade e a encenação vigorosa e bem coreografada que extrai uma tensão perturbadora nas sequências mais cruciais em termos dramáticos. O roteiro apresenta um certo traço panfletário, o que fica evidente na caracterização maniqueísta de personagens e situações, mas ao mesmo tempo sabe valorizar a complexidade dos dilemas morais e contradições de seu protagonista, além de mostrar detalhes das operações políticas e de segurança do governo norte-americano que geralmente são tratadas com superficialidade na mídia “oficial”. Para falar a verdade, é até provável que a falta de escrúpulos da CIA e do NSA a investigarem indevidamente cidadãos nativos e governos estrangeiros seja muito mais acentuada e cruel na realidade do que na simulação de uma obra para o cinema. E ainda que tais fatos retratados no filme sejam ainda relativamente recentes, a abordagem de Stone traz um traço atemporal ao deixar evidente mais um dos métodos da permanente opressão de governos e grandes corporações sobre os indivíduos.

sexta-feira, novembro 25, 2016

BR 716, de Domingos de Oliveira ***1/2

Alguns dos filmes mais recentes do diretor Domingos de Oliveira pecavam por um acabamento formal meio qualquer nota e um texto autoindulgente, vide “Juventude” (2008) e “Paixão e acaso” (2012). Em “BR 716” (2016), o cineasta corrige esse rumo criativo e entrega um dos seus trabalhos mais expressivos e cativantes. Para começar, ele conta com uma direção de fotografia de notável beleza plástica, num registro preto e branco que sublinha com sensibilidade uma atmosfera mista de nostalgia e onirismo. Por se tratar de uma obra de caráter memorialista e autobiográfica, marca de grande parte da filmografia de Domingos, a narrativa vem marcada por algo de difuso e exuberante, como se as lembranças viessem sob um prisma exagerado e sem um grande compromisso com o “real”. Essa preferência pelo subjetivismo acaba tornando o filme muito mais visceral e verdadeiro na forma com que retrata com crueza e carinho os dilemas e contradições existenciais do protagonista Felipe (Caio Blat), alter ego do diretor. Outro trunfo de “BR 716” é a uma encenação que sabe unir rigor e um teor libertário, havendo um dinamismo coerente tanto nas sutilezas dramáticas e cômicas dos momentos mais intimistas quanto na caracterização dionisíaca das festas constantes promovidas por Felipe. Por se tratar de um retrato geracional focado no Rio de Janeiro de 1964, há momentos que a produção assume alguns clichês narrativos um tanto ingênuos na sua contextualização histórica, mas isso na realidade se incorpora com naturalidade dentro do próprio espírito de melancolia nostálgica da obra. Domingos de Oliveira ainda acerta num dos pontos que costuma ser o seu forte, a direção de atores, fazendo com que o seu elenco mostre algumas atuações memoráveis, como a evocação de uma diva esfuziante de Sophie Charlotte, a caracterização alucinada de Glauce Glima e mesmo a intepretação de Blat, que faz uma verdadeira possessão incorporando os trejeitos e maneirismos típicos de Oliveira.

quinta-feira, novembro 24, 2016

Cinema Novo, de Eryk Rocha ***1/2

Seria um tanto incoerente fazer um documentário sobre o Cinema Novo utilizando uma linguagem convencional e acadêmica, tendo em vista o fato do movimento deflagrado por Glauber Rocha e outros inquietos cineastas ter procurado justamente romper com tradicionalismos mofados dentro da ordem cinematográfica. Por esse motivo, o cineasta Eryk Rocha adota uma via criativa e ousada em “Cinema Novo” (2016) – ao invés de simplesmente “contar uma história” utilizando os recursos mais óbvios nesse tipo de produção como se fosse uma reportagem, ele preferiu fazer o espectador entrar numa viagem sensorial dentro de um imaginário delirante e criativo para ter uma ideia do significado artístico e existencial das principais obras daquele período e de seus criadores. Nesse sentido, a citação visual direta de “O encouraçado Potemkin” (2016) não é gratuita, pois o enfoque na montagem, o grande legado de Serguei Eisenstein, é o principal mote criativo no documentário em questão. Praticamente todo o material audiovisual é composto de trechos documentais da época e cenas dos principais trabalhos do Cinema Novo e de obras que influenciaram, foram influenciadas ou simplesmente tiveram alguma sintonia com tais produções cinemanovistas. Eryk Rocha organiza as ideias sobre a sua temática dentro de uma linha teórica delimitada com precisão e sensibilidade, criando dessa forma uma trama sutil e complexa. Há o surgimento explosivo dos filmes, o momento em que os cineastas discutem suas criações e o contexto sócio-cultural que as envolvem, o impacto que os filmes causam no Brasil e no mundo e, por fim, os motivos que levam à implosão do movimento e a dispersão de seus principais diretores. É fascinante a forma com que o documentarista estrutura o seu caleidoscópio narrativo dentro dessa lógica histórica, fazendo com que um mosaico de conceitos, abordagens e discursos diversos e muito pessoais ganhem uma coerência intrínseca na leitura que fazem do Brasil e do cinema do passado, do presente e do futuro.

quarta-feira, novembro 23, 2016

Elle, de Paul Verhoeven ****

A produção francesa “Elle” (2016) é uma bela síntese das concepções autorais muito particulares do cineasta holandês Paul Verhoeven, combinando refinamento narrativo com um sensorialismo visceral. Estão lá boa parte dos clichês básicos do gênero suspense, mas eles são manipulados com uma elegância fenomenal e ao mesmo tempo também são pervertidos dentro de uma trama repleta de desdobramentos insólitos e um forte conteúdo simbólico (nesse sentido, é antológica a sequência do jantar de natal, em que a composição e dinâmica da mesa reflete as divisões sócio-econômicas-culturais da sociedade ocidental contemporânea). O roteiro em sua primeira metade até insinua um formato que evoca a atmosfera de algumas obras de Alfred Hitchcock, principalmente naquela fórmula “quem é o culpado”, mas esse direcionamento aparentemente convencional vai se tornado cada vez mais difuso, com Verhoeven transformando a narrativa numa espécie de perturbadora parábola moral. Os dilemas e contradições da protagonista Michèle (Isabelle Huppert) são complexos e por vezes até bizarros, mas exalam uma humanidade crua e contundente na forma plural com que as diversas facetas da personagem se expõem e interagem (sentimental/existencial/profissional). Esse contexto temático repleto de nuances recebe um tratamento formal bastante lapidado, com destaque para a encenação precisa na sua junção de naturalidade e detalhismo imagético, vide as intensas cenas de sexo e violências (aliás, na melhor tradição Paul Verhoeven), e as sequências em que os games eletrônicos se inserem na narrativa, guardando uma correlação irônica sensacional com aquilo que se passa no mundo “real” da trama, além da trilha sonora tensa e sedutora e o elenco de atuações antológicas (Huppert, por sinal, num dos grandes momentos de sua expressiva carreira).

terça-feira, novembro 22, 2016

Depois da tempestade, de Hirokazu Koeeda ***

Em suas obras mais recentes, o cineasta japonês Hirokazu Koeeda vem formatando seu estilo dentro do gênero do melodrama familiar. Nessa vertente, ainda que não apresente nada tão contundente quando o drama fantástico “Depois da vida” (1998) ou o suspense intimista “Ninguém pode saber” (2003), o diretor lançou trabalhos que se afastam de uma abordagem óbvia ou do sentimentalismo excessivo. Esse é o caso de “Depois da tempestade” (2016). A história do escritor e detetive Ryota (Hiroshi Abe) que se sente frustrado pelas dificuldades financeiras e pelo fracasso do casamento é enquadrada numa narrativa sóbria e num roteiro que não abre concessões fáceis. A caracterização de personagens e situações é delineada de maneira sensível e complexa, o que cria tanto tensão dramática para o filme quanto empatia com o espectador. A marca autoral de Koeeda é nítida de maneira sutil – a síntese entre formalismo e temática tem notável coerência artística e se mostra desafiadora ao não se adaptar às necessidades comerciais de se mostrar acessível, preservando a crueza dos sentimentos e sensações dos personagens e dispensando um final feliz e conciliador artificioso.

segunda-feira, novembro 21, 2016

Dr. Estranho, de Scott Derrickson ***

Por mais que haja uma coerência na forma com que os filmes interagem dentro do seu universo e uma competente qualidade narrativa nas suas realizações, a atual linha de produções cinematográficas da Marvel não permite grandes variações e ousadias dentro de sua fórmula artística – claro que com algumas honráveis exceções, como “Os guardiões da galáxia” (2014). Dentro dessa lógica, “Dr. Estranho” (2016) é um exemplar bastante sintomático de tal situação. Estão presentes boa parte dos preceitos formais e temáticos que já pautaram os demais filmes das outras franquias, principalmente no que diz respeito às obras que mostram as origens dos super-heróis, e que de certa forma também são característicos dos próprios quadrinhos que as inspiraram. O diretor Scott Derrickson segue tão à risca essa cartilha que por vezes temos a impressão de se estar assistindo a refilmagem de “O homem de ferro” (2008), só que por um prisma místico (as piadinhas bestas, por exemplo, são as mesmas). Ainda assim, o ritmo da narrativa tem uma desenvoltura cativante e as cenas de ação tem uma coreografia bem resolvida. E se por um lado o roteiro tem uma mecânica um tanto previsível em excesso e falte uma efetiva tensão dramática capaz de surpreender o espectador (culpa principalmente de um vilão sem graça, o que é recorrente nos filmes da Marvel), há de se destacar como a questão do misticismo é bem incorporada na trama, apresentando tanto alguns conceitos bem interessantes quanto rendendo algumas sequências de força imagética deslumbrante.

sexta-feira, novembro 18, 2016

Tio Bernard - Uma antilição de economia, de Richard Brouillette ****

O grande trunfo artístico de “Tio Bernard – Uma antilição de economia” (2015) está na ligação estético-existencial que se estabelece no discurso sócio-político-econômico do seu protagonista, Bernard Maris, economista e editor do periódico humorístico Charlie Hebdo, com a formatação concebida pelo diretor Richard Brouillette. A narrativa do documentário consiste basicamente num longo depoimento do citado intelectual, dado no ano de 2000, dissecando as contradições e hipocrisias do capitalismo moderno e também expondo os mecanismos de manipulação e opressão escondidos por trás dos discursos edificantes de livre mercado e prosperidade propagados por grande parte de economistas e tecnocratas. Para acompanhar tal diatribe lúcida e desafiadora, Brouillette utiliza uma abordagem que sintetiza urgência, contenção de recursos e um teor reflexivo sobre o seu próprio mecanismo de realização, em que mesmo detalhes de bastidores refletem uma atmosfera de contestação e ironia. A edição se efetiva nas trocas de rolos de película, detalhe esse que é incorporado dentro da própria encenação como recurso dramático-cômico (é de se reparar que nesses “intervalos”, em que a tela escurece, tio Bernard continua a falar sem parar e até acentua a acidez de suas tiradas). O talento oratório, a capacidade de fundamentação arguta e o carisma de Marin são aproveitados ao máximo diante dessa linguagem cinematográfica que combina com precisão sofisticação e fúria. Tais soluções narrativas afastam a obra do campo da simples reportagem e a configuram como um contundente libelo humanista-artístico contra um ordenamento social e político marcado pela injustiça e o absurdo e ajudam a entender como uma figura como a do tio Bernard pode perturbar tanto o status quo vigente. Não por acaso, ele estava entre as vítimas do lamentável atentado terrorista sofrido pelo Charlie Hebdo em janeiro de 2015.

quinta-feira, novembro 17, 2016

O plano de Maggie, de Rebecca Miller ***

A influência que talvez mais salte aos olhos ao se assistir a “O plano de Maggie” (2015) seria a filmografia de Woody Allen. A diretora norte-americana Rebecca Miller evoca algumas referências tanto do estilo de filmar quanto na concepção de roteiro típicos do estilo de Allen. Estão lá a concepção formal que por vezes emula uma espécie de documentário caseiro, o senso de humor que sintetiza leveza e amargura, a trama repleta de situações entre o inusitado e o embaraçoso, além de personagens confusos em termos sentimentais e existenciais. O resultado final, contudo, está longe do mero pastiche. Os truques dramáticos e cômicos da história são eficientes em suas cirandas amorosas e quiproquós familiares, além de condensarem com alguma crueza alguns dos principais dilemas e contradições de uma certa classe média intelectual contemporânea. A encenação proposta por Miller tem naturalidade e apresenta nuances que procuram fugir das soluções fáceis, tendência essa que é reforçada pela trinca principal do elenco em interpretações que trazem complexidade e ironia nas doses certas.

quarta-feira, novembro 16, 2016

Indignação, de James Schamus **1/2

Transpor o universo literário do escritor Philip Roth para o cinema é uma tarefa penosa. A produção norte-americana “Indignação” (2016) é um exemplo enfático de tal dificuldade. Estão lá na trama as habituais obsessões temáticas-existenciais do autor – o questionamento dos valores éticos e morais da sociedade norte-americana, a exposição dos preconceitos raciais e sociais, os tormentos sexuais de personagens complexos. O problema é que tais temas são trabalhados de forma artificial e solene tanto pelo roteiro quanto pela encenação, retirando, dessa forma, a verve e a ironia com que Roth costuma tratar esse material em seus romances. A linguagem literária também não consegue se consolidar em outro tipo de narrativa – a descrição oral em primeira pessoa do protagonista Marcus Messner (Logan Lerman) é excessiva e afetada, roubando um espaço essencial que deveria ser ocupada pela concepção imagética do filme. Assim, falta sutileza e uma efetiva profundidade na forma com que personagens e situações são desenvolvidos. Ainda que a fotografia e a direção de arte demonstrem alguma beleza visual na sua reconstituição dos anos 50 e a atuação de Olivia Hutton apresente um interessante encanto, “Indignação” tem um resultado final falho na sua proposta de dissecação sensorial das hipocrisias arraigadas dos Estados Unidos devido a uma abordagem estética e textual que carece de força e ousadia.

sexta-feira, novembro 11, 2016

Busca insaciável, de Milos Forman ****

Quando se fala na fase norte-americana da carreira do cineasta tcheco Milos Forman, logo vem à mente filme antológicos como “Um estranho no ninho” (1975), “O povo contra Larry Flynt” (1996) e “O mundo de Andy” (1999). Pouco se comenta, entretanto, sobre sua produção de estreia nos Estados Unidos, “Busca insaciável” (1971), o que é uma grande injustiça, pois se trata de uma obra que está, no mínimo, no mesmo nível artístico dos trabalhos mencionados. A formatação narrativa mantem muito da original abordagem de linguagem cinematográfica que Forman praticava em alguns de seus filmes mais marcantes realizados em seu país natal como “Os amores de uma loira” (1965) e “O baile dos bombeiros” (1967) – é de se reparar, por exemplo, que a sequência inicial de “Busca insaciável” em que vários jovens, num inventivo truque de edição, cantam a mesma música é semelhante à da jovem que canta ao violão na abertura de “Os amores de uma loira”. Assim, a visão de ironia ácida de Forman sobre os hipócritas valores sócio-culturais da sociedade norte-americana da época (e que se mantém até hoje, vide a recente eleição de Donald Trump) vem embalada por um sofisticado formalismo que combina uma direção de fotografia seca e objetiva e uma edição de cortes insólitos. A contundência de tal estética se alia a uma esquisita e sardônica atmosfera de distanciamento emocional, gerando um efeito desconcertante para o espectador – a aparente frieza da encenação esconde uma grande tiração de sarro do reacionarismo e visão obtusa do americano norte-americano médio. Nesse sentido, é particularmente brilhante a sequência em que respeitáveis pais de família fumam maconha num evento social para tentar entender os motivos dos filhos terem fugido de casa. No mais, é curiosa como essa reflexão sobre o período do flower power acaba se relacionando com outro filme de Forman que versava sobre temática semelhante, o musical “Hair” (1979), formando um expressivo e amargo panorama sobre a contracultura.

quinta-feira, novembro 10, 2016

O pecado de Hadewijch, de Bruno Dumont ***1/2

A filmografia do diretor francês Bruno Dumont é baseada numa síntese bastante particular de preceitos artísticos e existenciais que remetem a cineastas como Roberto Rossellini e Robert Bresson. Assim, seus filmes abarcam uma estranha combinação de conto moral e formalismo rigoroso e ascético, em que a exposição do mal estar e inquietações ético-religiosas da sociedade ocidental contemporânea vem acompanhada de uma linguagem estética contida e distanciada na configuração de seu modus operandi. “O pequeno Quinquin” (2014) é a representação mais expressiva das concepções insólitas de Dumont, mas “O pecado de Hadewijch” (2009) mostra que esse estilo já estava cada vez mais delineado em suas nuances de sensibilidade e esquisitice. A trajetória da protagonista Céline (Julie Sokolowski) em busca de redenção espiritual e de uma aproximação mais íntima com uma divindade superior é esmiuçada numa narrativa seca e sem concessões, em que elementos como a ironia e a sensualidade se manifestam com discrição perversa. No meio dessa jornada intimista, Dumont estabelece uma sutil amostragem sócio-cultural da Europa desse século, principalmente em questões conflitantes e contraditórias como o preconceito racial e o fanatismo religioso.

quarta-feira, novembro 09, 2016

Curumim, de Marcos Prado ***1/2

O que diferencia um documentário cinematográfico de uma reportagem audiovisual? A pergunta pode parecer complexa e para alguns a fronteira entre esses dois gêneros narrativos é até muito tênue, mas um filme como “Curumim” (2016) acaba por estabelecer uma diferenciação bastante contundente. O assunto principal de sua trama, a prisão e fuzilamento do brasileiro Marco Archer na Indonésia por tráfico de drogas, foi bastante comentado na mídia. A abordagem concebida pelo diretor Marcos Prado, entretanto, afasta-se do meramente informativo, fazendo com que a sua obra seja uma viagem existencial perturbadora tanto na mente de seu protagonista quanto nas circunstâncias históricas e sociais do período abrangido na trajetória de Archer. Para isso, Prado utiliza recursos diversos para compor a narrativa – filmagens próprias, registros obtidos por Archer na prisão (onde aguardou por mais de 10 anos pela sua execução), imagens de arquivo, depoimentos e até mesmo encenações. A edição consegue equilibrar de maneira notável a precisão de um formalismo “profissional” com o caráter amador de algumas tomadas, criando uma atmosfera ambígua na sua mescla de “filme caseiro” e sóbrio retrato geracional. O formalismo criativo articulado pelo cineasta consegue captar com sensibilidade e vigor as nuances dramáticas da história contada, abrangendo a era de hedonismo e inocência do Rio de Janeiro dos anos 70 e 80, a decadência de uma classe alta brasileira de perfil aristocrático na virada do século, os “causos” movido a aventuras e drogas do protagonista ao redor do mundo e a sua final degradação física e mental trancafiado numa prisão fuleira nos cafundós da Ásia. Nesse relato sombrio que se situa num ponto difuso entre o épico e o intimista, “Curumim” ainda se permite de maneira sutil uma amarga reflexão sobre o sistema de valores distorcidos que envolvem questões polêmicas como a pena de morte e o combate ao tráfico de drogas. Nesse amplo espectro temático, as ambições artísticas e contestadoras de Prado se mostram elevadas, com o cineasta dando conta de tais intenções com a criatividade e ousadia das soluções narrativas e de conteúdo de uma produção memorável.

terça-feira, novembro 08, 2016

A viagem de meu pai, de Philippe Le Guay ***

Dentro de uma temática já bastante abordada por outras produções cinematográficas, a das dificuldades da velhice, “A viagem de meu pai” (2015) não chega a ser uma obra-prima, mas ainda assim consegue apresentar algumas surpresas positivas capazes de gerar inquietação para o espectador. A maior delas é a forma com que o diretor Philippe Le Guay formata a sua narrativa, que se desenvolve a partir de uma relação com a própria dinâmica do processo gradual de senilidade do protagonista Claude Lherminier (Jean Rochefort). Assim, as noções de tempo e realidade vão se tornando cada vez mais difusas com o avançar da trama, ainda que a encenação evoque um tom naturalista, fazendo com que fatos corriqueiros do cotidiano convivam em uma estranha harmonia com toques oníricos e por vezes delirantes. É mérito também do filme em manter uma atmosfera de sobriedade emocional, em que situações melancólicas e mesmo cruéis não são expostas com obviedades sentimentais, prevalecendo uma certa crueza existencial e se permitindo até em alguns momentos uma dose de ironia. Claude não é retratado de forma simplista como uma mera vítima de sua condição como idoso – os percalços pelos quais ele e sua família passam ganham uma condição de inevitabilidade do destino, sugerindo-se ainda como consequências de atos praticados pelo protagonista quando mais jovem e de seu próprio e inato temperamento orgulhoso. Dentro dessa proposta de Le Guay, a atuação de Rochefort ganha especial ressonância, pois sua interpretação é repleta de notáveis nuances dramáticas e cômicas.

segunda-feira, novembro 07, 2016

Canção da volta, de Gustavo Rosa de Moura **1/2

Os conceitos estéticos e existenciais de “Canção da volta” (2016) são consistentes e inquietantes. A trama que que trata das consequências práticas e sentimentais provocadas pelas crises de depressão de Julia (Marina Person) para sua família apresenta um subtexto desafiador no sentido de questionar os preceitos comportamentais de uma classe média dita civilizada e humanista. A concepção narrativa procura acompanhar esse caráter ousado do roteiro, valendo-se de uma estrutura temporal que por vezes se afasta do linear, como se mostrasse em sintonia com o caráter errático da personalidade da protagonista. O problema central da produção dirigida por Gustavo Rosa de Moura, entretanto, está numa encenação um tanto engessada e que não acompanha esse espírito libertário da história que é contada. Falta uma maior desenvoltura na interação dos atores com aquilo que é contado em cena, fruto de uma excessiva racionalização na hora de colocar as ideias em prática. Os melhores momentos da obra são aqueles em que a forma e o conteúdo encontram uma síntese mais livre e espontânea, vide a sequência em que Julia entra em uma espécie de transe e dança sozinha esbarrando pelos móveis da casa ou as tomadas das aulas de balé da personagem – tais trechos imagéticos conseguem apresentar uma carga simbólica forte apenas pelo vigor da ação e sintetizam melhor o espírito contestador de “Canção da volta”. Se o diretor tivesse mantido esse tipo de solução narrativa, talvez seu filme tivesse apresentado um resultado artístico semelhantes a produções memoráveis que versaram sobre temática semelhante como “Possessão” (1981) e “Melancolia” (2011).

sexta-feira, novembro 04, 2016

O contador, de Gavin O'Connor ***

A descrição de “O contador” (2016) como uma espécie de cruza picareta entre a “Bourne” com “Gênio indomável” (1997) pode parecer um exagero jocoso, mas também não deixa de ter a sua pertinência. Ou seja, pelo menos em termos de premissa de trama, a produção em questão não passa de uma bobagem escapista. Sorte que o diretor Gavin O’Connor, o mesmo do excelente “Guerreiro” (2011), consegue oferecer um senso narrativo envolvente e faz com que o roteiro sobre um contador autista com apurado treinamento militar que desvenda e destrói uma conspiração corporativa consiga gerar alguma tensão e interesse para o espectador. As cenas de ação envolvendo lutas e tiroteios são coreografadas com clareza e filmadas com uma fotografia elegante. Esse formalismo concebido por Gavin O’Connor é até previsível, entretanto é executado com precisão e convicção. Até a habitual inexpressividade de Ben Affleck consegue ser aproveitada dramaticamente tendo em vista o distúrbio do protagonista. E é interessante também notar que mesmo uma história repleta de inverossimilhanças como a apresentada no filme revela um subtexto um tanto nebuloso, na forma com que a lei e seus respectivos agentes (policiais, políticos e afins) são retratados como ineficientes na busca de justiça, e reforçando a necessidade de indivíduo suprir tais “lacunas” com iniciativas próprias truculentas. Os fãs da barbárie de toga no Brasil provavelmente vão se identificar...

quinta-feira, novembro 03, 2016

Lolo: O filho da minha namorada, de Julie Delpy ***

A filmografia de Julie Delpy como diretora parece girar dentro de uma fórmula narrativa simples – crônicas familiares que além da reflexão sobre as relações pessoais também apresentam um subtexto sócio-político. Dentro desse conceito artístico, o ponto alto da carreira da cineasta é o extraordinário “O verão do Skylab” (2011). “Lolo: O filho da minha namorada” (2015) não apresenta o mesmo nível de qualidade, mas ainda assim tem os seus pontos inquietantes. Num primeiro momento, o espectador se sente envolvido pelos eficientes truques cômicos relacionados aos planos perversos do jovem Lolo (Vincent Lacoste) para acabar com o namoro de sua mãe, a cosmopolita Violette (Delpy), com o ingênuo interiorano Jean-René (Dany Boon), rendendo algumas divertidas cenas que envolvem um humor físico que beira o pastelão e o escatológico. Numa visão mais atenta da trama e mesmo da encenação concebida por Delpy, entretanto, pode-se perceber algo de sombrio e irônico em detalhes como a caracterização psicótica de Lolo, a violência física e psicológica de algumas das “brincadeiras” do personagem-título e as sutis ironias que se fazem em determinadas situações do roteiro que envolvem questões de classe e a atual situação econômica da Europa. De se considerar também a crueza de alguns diálogos a expor a sexualidades e as seguranças existenciais de uma mulher adulta na sociedade contemporânea. Ainda que o final feliz agridoce do filme represente uma espécie de concessão típica de uma comédia romântica, “Lolo” reforça a impressão de que Delpy possui um traço autoral na forma com que elabora suas narrativas cinematográficas.

terça-feira, novembro 01, 2016

Demônio de neon, de Nicolas Winding Refn ****

A obra-prima “Drive” (2011) se provou como uma extraordinária exceção dentro do estilo habitual do diretor Nicolas Winding Refn, pois era uma obra marcada por uma narrativa precisa e de formalismo clássico que se adaptava de acordo com a marca autoral do cineasta. Nas demais produções de sua filmografia, o dinamarquês investe numa abordagem que valoriza muito mais o sensorial e o atmosférico do que os meandros do roteiro, vide filmes antológicos como “O guerreiro silencioso” (2009) e “Apenas deus perdoa” (2013). “Demônio de neon” (2016) é uma continuação dos preceitos artísticos de Refn – imagine-se um conto moral às avessas sobre a beleza e a inocência marcado por uma ambientação difusa de hedonismo, horror e delírio onírico e se pode ter uma ideia do que representa essa estranha narrativa. As referências visuais e temáticas são diversas e insólitas, como o horror sensual e barroco de Mario Bava, as nuances enigmáticas de David Lynch, o realismo de corres berrantes de algumas produções oitentistas (leia-se “O fundo do coração” e “Dublê de corpo”). Refn amarra todas essas influências e citações dentro de uma linguagem coesa e particular, fazendo o espectador entrar num vórtice de loucura, violência e erotismo, ora repugnante, ora bizarramente encantador. O esmero estético se manifesta em cada detalhe do filme e não se reduz a mero exibicionismo técnico, revelando notável sintonia existencial com a própria natureza misteriosa e simbolista do roteiro, conforme pode ser observado na climática trilha sonora de temas eletrônicos, na fotografia que varia com notável desenvoltura entre o sombrio sutil e o luminoso exagerado, na encenação de síntese desconcertante entre o naturalismo e o estilizado, na caracterização maneirista e icônica dos personagens. Por falar nisso, é curioso perceber que no elenco da produção está Karl Grusman, que atuou no papel principal de “Love” (2015), de Gaspar Noé, cineasta que é uma espécie de gêmeo criativo existencial de Refn.