segunda-feira, julho 31, 2017

Carros 3, de Brian Fee **

Dentro do quesito de padrão de criatividade contemporâneo nas animações feitas por grandes estúdios, a Pixar é a que mais se destacou no aspecto de ousadia nos últimos vintes anos, principalmente por saber conciliar os ditames das narrativas tradicionais no gênero com grafismo requintado e moderno e roteiros repletos de sagacidade e densidade dramática acima da média. Mesmo quando enveredava para continuações de sucessos, o estúdio conseguia manter essa abordagem artística (vide, por exemplo, o coerente amadurecimento emocional na franquia “Toy Story”). Dentro da riqueza desse contexto histórico, uma produção como “Carros 3” (2017) acaba sendo ainda mais frustrante. Não chega a ser um filme ruim – é apenas irrelevante e por vezes beira o insosso. É claro que algumas sequências de ação são divertidas, principalmente quando envolvem as corridas de carros, mas passando metade da trama até tais momentos vão se tornando cansativos na sua previsibilidade narrativa. Clichês de produções sobre esportistas em decadência são reciclados sem maiores inspirações e nem mesmo a habitual competência de seu grafismo consegue alterar o clima de marasmo da animação. Para quem quiser ver algo de diferente dentro dessa temática, recomenda-se o brilhante “Ricky Bobby – A toda velocidade” (2006).

sexta-feira, julho 28, 2017

Más notícias para o Sr. Mars, de Dominik Moll ***

Em termos de estrutura narrativa, a produção francesa “Más notícias para o Sr. Mars” (2015) beira a banalidade devido a alguns excessos de convencionalismos formais e temáticos. O que desperta curiosidade em relação ao filme é a oscilação entre sobriedade e exagero de sua encenação e a riqueza simbólica de seu subtexto. O diretor Dominik Moll consegue extrair uma interessante atmosfera mista de pesadelo e paranoia, em que a caracterização dos personagens e situações apresenta uma forte carga opressiva que destila um incómodo mal-estar existencial. Tal concepção se mostra em sintonia com um roteiro que parece refletir em suas nuances cômicas e dramáticas os dilemas e contradições da sociedade europeia contemporânea. A figura do protagonista Philippe Mars (François Damiens), um amargo burocrata perplexo com as complexidades e estranhezas do mundo que o cerca, parece representar o tradicional indivíduo ocidental incapaz de lidar com a nova ordem mundial na sua desumanizada visão sócio-econômica (representada pela arrivista filha mais velha do personagem principal) e com a própria reação cultural a esse ordenamento (concentrada, por outro lado, na figura do contestador e ingênuo caçula). Se tais analogias da trama soam simples, é inegável também que com o desenvolver da narrativa oferecem considerável tensão dramática e irônica para a obra, ainda que as conciliadoras e forçadas resoluções finais do roteiro tirem um pouco da contundência da visão crítica do filme.

quinta-feira, julho 27, 2017

Kiki - Os segredos do desejo, de Paco León *

A promessa de uma obra libertária por parte da produção espanhola “Kiki – Os segredos do desejo” (2015) só fica mesmo na premissa de seu roteiro. Em termos formais, o filme em questão é de caretice e mediocridade extremas – narrativa engessada em formato episódico e estética estilo “comercial de sabonete” (tendência essa deixada evidente logo de cara na horrorosa sequência inicial de créditos). Em sua parte temática, as coisas ficam ainda piores. Por mais que se pretenda fazer uma espécie de inventário sobre as manias e taras sexuais dentro da sociedade espanhola, os direcionamentos da trama sempre se encaminham para adequação de tais “desvios” comportamentais para dentro do modelo familiar, ou seja, o casamento sempre deverá ser preservado. Pode-se dizer que tal orientação existencial teria ligação com a tendência cristã conservadora típica da Espanha, mas na realidade isso cai por terra quando se lembra de alguns filmes marcantes da filmografia espanhola de diretores como Luis Buñuel, Pedro Almodovar e Bigas Luna que questionam com grande criatividade artística e contundência temática os valores morais pequeno-burgueses.

quarta-feira, julho 26, 2017

Homem-Aranha: De volta ao lar, de Jon Watts ***

A incorporação do herói aracnídeo ao universo oficial cinematográfico dos estúdios Marvel tem como principal fator positivo o fato de que a caracterização do protagonista em questão ter ficado bem mais carismática e fiel ao original dos quadrinhos do que aquela que se configurou nos insossos dois filmes dirigidos por Marc Webb. Outra boa sacada de “Homem-Aranha: De volta ao lar” (2017) é que o roteiro dispensa a tarefa de contar novamente a origem do personagem e parte logo para uma nova situação na vida do Aranha e de seu alter-ego Peter Parker, o que torna a narrativa bem mais dinâmica (afinal, o herói já aparece logo na trama em plena ação). Outra bola dentro: o Abutre (Michael Keaton) é disparado um dos vilões mais convincentes dentro das franquias cinematográficas dos Estúdios Marvel. Aliás, a figura do antagonista evidencia, ainda que de maneira discreta, um subtexto sócio-político típico do conturbado período histórico que vivemos: ainda que as opções criminosas do personagem em questão sejam consequências de ações opressoras e injustas por parte do Estado, as resoluções da trama indicam a necessidade da manutenção do status quo. À parte esse direcionamento conservador em seu discurso, o filme do diretor Jon Watts se adequa ao padrão de qualidade formal e narrativo típico da maioria de tais produções que se conectam nesse mesmo universo – as sequências de ação são movimentadas e divertidas, boa parte dos personagens tem razoável caracterização psicológica, a trama resgata alguns dos principais elementos essenciais dos quadrinhos. No geral, entretanto, o resultado final em termos criativos é previsível e destituídos de maiores ousadias temáticas e estéticas, ou seja, é bom entretenimento, mas bem distante, por exemplo, da vertiginosa fúria sensorial do “Homem-Aranha 2” (2004) de Sam Raimi. Além disso, a trama sugere que é apenas preparação para voos futuros mais épicos. Nesse sentido, é inegável que cria expectativa para o que ainda vem por aí.

terça-feira, julho 25, 2017

Além da ilusão, de Rebecca Zlotowski ***1/2

O universo imaginário-artístico de “Além da ilusão” (2016) se assemelha ao da obra imediatamente anterior da diretora Rebecca Zlotowski, “Grand Central” (2016), configurando-se como obras marcadas por uma atmosfera de romantismo mórbido e um certo classicismo em seu formalismo. Nesse trabalho mais recente da cineasta, há até uma preponderância maior para a estilização narrativa, além de um subtexto mais sofisticado e nebuloso na sua visão de uma Paris tomada pelo nazismo e a alienação mística. Aliás, é fascinante o paralelo que se estabelece entre a atração pelo mundo metafísico e a paixão pelo mundo de fantasias da indústria cinematográfica – a necessidade dos personagens por alguma espécie de magia transcendental se vincula a um papel ambíguo, tanto no sentido de ser uma válvula de escape perante uma realidade de opressão sócio-cultural quanto um instrumento obscurantista que impede que os indivíduos contestem esse mesmo ordenamento de opressão. Tal discurso existencial vem embalado por um roteiro de notáveis sutilezas e por uma estética requintada em suas nuances imagéticas, fazendo com que as soluções criativas de “Além da ilusão” soem obscuras e atraentes na forma com que se recusam a apresentar caminhos fáceis para o espectador.

segunda-feira, julho 24, 2017

Sobre viagens e amores, de Gabriele Muccino *1/2

Quando despontou no cenário cinematográfico do seu país com "Para sempre na minha vida" (1999) e "O último beijo" (2011), o diretor italiano Gabriele Muccino chamou atenção por mostrar uma assinatura formal e temática que revelava uma certa coerência artística. Os filmes mencionados faziam um divertido e sentimental inventário emocional sobre o comportamento amoroso da juventude contemporânea, com o cineasta sabendo conciliar roteiros espirituosos e narrativas de dinâmica cativante. O sucesso de público e crítica de tais produções fizeram com que realizasse alguns trabalhos nos Estados Unidos, o que fez com que progressivamente o seu traço autoral se diluísse. Em sua volta para a terra natal, Muccino parece querer retomar a linha artística de suas primeiras obras, mas o resultado final de "Sobre viagens e amores" (2016) mostra que ele perdeu o gume da sua antiga pegada estética-existencial. Por vezes, pode-se perceber todas as suas boas intenções - a trama apresenta tintas libertárias, há a pretensão de que a visão sobre amores juvenis e o consegue processo de amadurecimento emocional de seus personagens seja mais realista, o formalismo aposta em fotografia e edição de talhe mais moderno. Ainda que todo essa concepção não seja algo especialmente original, uma direção que soubesse sintetizar ousadia e rigor narrativo poderia geral algo de memorável. Não é o caso, entretanto, desse trabalho mais recente de Muccino. O diretor se rende a truques formais e abordagem emocional apelativos e óbvios - é de se reparar, por exemplo, como trilha sonora repleta de canções pop é invasiva e ostensiva, fazendo tudo parecer em vários momentos um fotogênico video-clip. E aquilo que era para se converter numa espécie de viagem sensorial de autodescobertas e hedonismo, na prática é apenas uma junção de formalismo cartão-postal e encenação embregalhada. Ou seja, "Sobre viagens e amores" parece a versão "novela mexicana" da obra-prima "E sua mãe também" (2001). 

sexta-feira, julho 21, 2017

Dick Tracy, de Warren Beatty ****

Adaptar histórias em quadrinhos para o cinema não é propriamente uma novidade e nos últimos anos se tornou uma prática recorrente nos grandes estúdios norte-americanos, principalmente por motivos comerciais. Na grande maioria desse tipo de produções, a transposição de uma mídia para a outra obedece a uma fórmula simples – pega-se personagens e situações marcantes de uma HQ, ou seja, uma trama originária de “comics”, e se enquadra tais elementos dentro de uma linguagem cinematográfica tradicional. São poucas os filmes que enveredam por uma via criativa mais ousada e interessante que seria a de incorporar a estética característica dos quadrinhos. Pois é justamente isso que “Dick Tracy” (1990) coloca em prática e com muita inspiração. Encenação, narrativa e caracterização visual emulam de maneira brilhante os maneirismos típicos das histórias do clássico detetive escritas e desenhadas por Chester Gould. Nesse sentido, a produção dirigida e estrelada por Warren Beatty apresenta nuances extraordinárias, como a fotografia baseada em monocromatismos concebida por Vittorio Storaro, a direção de arte fortemente estilizada e as atuações do elenco vinculadas a uma síntese entre o grotesco e o ingênuo, além do excepcional trabalho de efeitos visuais que combina de maneira fluida efeitos digitais, maquetes e cenografia à moda antiga, dando ao filme uma estranha atmosfera de atemporalidade. Aliás, “Dick Tracy” parece nem ter vindo de um grande estúdio devido à maneira natural com que violência cartunesca e singeleza maniqueísta convivem no mesmo universo. Dentro desse particular conjunto artístico, o filme de Beatty ocupa um espaço privilegiado de obras memoráveis como “Danger Diabolik” (1968), “Sin City” (2005) e “Scott Pilgrim contra o mundo” (2010).

quinta-feira, julho 20, 2017

Divinas divas, de Leandra Leal ***

A estrutura narrativa de “Divinas divas” (2016) lembra bastante outro documentário de temática semelhante, “Dzi Croquettes” (2009) – a partir de lembranças pessoais da diretora Leandra Leal, a obra faz um inventário histórico e sentimental sobre algumas das principais figuras do universo de artistas travestis que despontaram no cenário cultural brasileiro nos anos 60. O roteiro estabelece uma forma simples de contar a sua história, alternando sequências de ensaios e apresentação de um show recente que trouxe as artistas de volta à cena, trechos com fotos e imagens de arquivo e depoimentos de suas principais personagens. Se esse encadeamento da trama pode parecer previsível em um primeiro momento, com o desenvolvimento da narrativa vai se revelando coerente e eficaz. A abordagem emocional e a atmosfera do documentário têm um forte viés de sentimentalismo e nostalgia, mas Leal consegue oferecer outras nuances para o seu trabalho, enveredando ainda para uma perturbadora e sardônica perspectiva mista de malícia, sordidez e teor grotesco. Assim, o retrato existencial que oferece passa distante do unidimensional e meramente laudatório, focando com contundência e vigor uma passagem histórica do Brasil, no caso o tenebroso período da ditadura militar, marcada por uma ambígua combinação de sombria repressão moral e esfuziante hedonismo comportamental.

quarta-feira, julho 19, 2017

Mulher do pai, de Cristiane Oliveira **

O que mais incomoda em “Mulher do pai” (2016) é a sua rigorosa previsibilidade. E não só em termos de roteiro – o filme da diretora Cristiane Oliveira obedece a uma lógica narrativa óbvia e que beira a preguiça criativa. Fotografia e edição são corretas em sua concepção e execução, oferecendo uma moldura formal adequada no retrato de um interior rio-grandense rústico, melancólico e algo tedioso. Tais aspectos estéticos esbarram, entretanto, numa encenação travada e na falta de uma maior ousadia artística-existencial. A história de descobertas morais e sentimentais por parte de personagens adolescentes já foi retratada várias vezes no cinema e em alguns casos rendeu obras memoráveis, principalmente pelo motivo de seus realizadores privilegiarem o vigor narrativo, o que não é o caso de “Mulher do pai”. Os elementos cênicos são dispostos na tela de maneira burocrática, como se a cineasta seguisse as regras de um manual do gênero “drama de formação”. Por outro lado, mesmo a temática da produção transpira um incômodo subtexto genérico e moralista, quase pudico. Em uma obra que tem o despertar sexual como um dos seus principais motes dramáticos, o erotismo poucas vezes se manifesta de forma gráfica e contundente (na realidade, há apenas uma efetiva sequência de sexo, e mesmo assim tendo uma prostituta em cena). A questão do incesto se desenvolve sob uma desgastada perspectiva carregada de simbologia cristã pequeno-burguesa. Nesse sentido, não há como esquecer o recente “Sangue azul” (2014), que destroça tal percepção obscurantista a partir de um ideário libertário e poético.

segunda-feira, julho 17, 2017

Ao cair da noite, de Trey Edward Shults ***

Em um mundo tomado por uma epidemia misteriosa e altamente contagiosa, onde água e comida se tornam bens escassos e valiosos, uma família vive isolada numa casa no meio de uma floresta e ao se aproximar de um outro clã acaba entrando em um irrefreável vórtice de paranoia e violência. Essa trama básica de “Ao cair da noite” (2016) não chega a ser exatamente uma novidade e mesmo a sua narrativa não apresenta maiores sobressaltos criativos. Ainda assim, o filme do diretor Trey Edward Shults chama a atenção pela forma segura com que clichês formais e temáticos se desenvolvem na tela. Por mais que os rumos da trama sejam previsíveis, a produção tem alguns momentos que conseguem causar uma genuína tensão dramática para as plateias, principalmente pela encenação precisa e sóbria articulada por Shults e pela valorização de um convincente suspense psicológico, em que as explosões de brutalidade e de grafismo entre o escatológico e o mórbido são econômicas, em termos de quantidade de cenas de tal natureza, e eficazes no seu sensorialismo.

sexta-feira, julho 14, 2017

Na vertical, de Alain Guiraudie ***1/2

Depois de recriar o gênero suspense de maneira bastante peculiar no brilhante “O estranho do lago” (2012), o diretor francês Alain Guiraudie monta uma narrativa idiossincrática e fascinante em “Na vertical” (2016). O cineasta parece buscar inspiração na encenação crua e libertária de Pasolini e nas atmosferas delirantes e sardônicas dos melhores trabalhos de Luis Buñuel, com um resultado final que está muito longe do derivativo. Por vezes, até se tem a impressão de se estar assistindo a uma espécie de conto moral distorcido e que se desenvolve por uma lógica temática-formal muito particular. Ao mesmo tempo, cada nuance imagética da austera direção de fotografia, a edição de ritmo sóbrio e o roteiro de desenvolvimento desconcertante e de estranha coerência revelam um tremendo rigor artístico em termos de concepção e execução da narrativa. Nenhuma das escolhas criativas de Guiraudie é marcada pela gratuidade ou a simples procura do choque – o caráter explícito e bizarro das sequências de sexo, a caracterização de situações e personagens que sintetizam viés naturalista e onirismo, a reinterpretação irônica da mitologia cristã e a constante sensação de uma realidade em desagregação reforçam um discurso artístico de forte caráter humanista e de grande ousadia estética.

quarta-feira, julho 12, 2017

Neve negra, de Martín Hodara **

O cinema “mainstream” argentino costuma ser elogiado por um certo padrão de qualidade em suas produções, principalmente no que diz respeito à narrativa adequada aos padrões convencionais (e também comerciais) estabelecidas pelos grandes estúdios norte-americanos (e que, por tabela, se estendem a outras escolas cinematográficas ocidentais). Dessa forma, há uma quantidade razoável de filmes portenhos que se mostram acessíveis ao público em geral, ainda que em boa parte de tais obras fique evidente um caráter asséptico e derivativo em suas respectivas concepções artísticas. Esse é justamente o caso de “Neve negra” (2016) – há a impressão constante ao se assistir ao filme que o diretor Martín Hodara segue um manual de como fazer um trabalho no gênero suspense de acordo com todos os clichês e ditames narrativos e temáticos inerentes a esse tipo de produção. Os elementos formais se colocam em cena de forma correta, mas sem qualquer traço de ousadia e criatividade. Por mais que o roteiro possa evocar questões tabu como o incesto e algumas sequências vazem momentos de maior violência gráfica, tais aspectos são abrandados pelo tratamento artístico destituído de vigor de Hodara. Ou seja, no geral “Neve negra” não chega a ser exatamente ruim e é capaz de entreter as plateias menos exigentes, mas também está bem longe de ser considerado algo de memorável.

terça-feira, julho 11, 2017

Quem é Primavera das Neves, de Jorge Furtado e Ana Luíza Azevedo **1/2

Há uma base conceitual engenhosa e contundente que paira sobre a concepção e narrativa do documentário “Quem é Primavera das Neves” (2017). O roteiro parte de uma premissa inicial de forte traço pessoal – o interesse do diretor Jorge Furtado em saber mais sobre quem seria Primavera das Neves, uma obscura tradutora e poetisa que trabalhou em edições brasileiras de vários clássicos literários na segunda metade do século XX. Ainda que se vincule, dessa forma, a uma obra de cunho biográfico, a abordagem do roteiro traz em seu subtexto um forte caráter humanista, no sentido que vai expondo de maneira sutil que a formação cultural de sua protagonista, filha de dois anarquistas europeus que se exilaram no Brasil fugindo de regimes autoritários, evidencia sensibilidade e inteligência diante de um contexto histórico marcado por obscurantismo e brutalidade, em que os aludidos traços da personalidade de Primavera se mostram influentes e encantadores para boa parte das pessoas que conviveram com ela. Dessa forma, o viés existencial do filme dirigido por Furtado e Ana Luíza Azevedo ganha especial ressonância ao se relacionar com o atual e conturbado cenário sócio-político brasileiro e mundial. A complexidade e ousadia da temática de “Quem é Primavera das Neves” não recebe, entretanto, um complemento narrativo e formal à altura. A dupla de cineastas responsável pela produção se contenta com um acabamento convencional e de pouco impacto sensorial, opção artística essa que fica clara numa edição apenas correta, nas melodias banais da trilha sonora, na afetação das sequências de declamação com a atriz Mariana Lima e no excesso de depoimentos um tanto redundantes. Faltou para o documentário uma pegada estética mais sanguínea e criativa, coisa que Furtado já mostrou ser capaz de fazer no inquietante “O mercado de notícias” (2014).

segunda-feira, julho 10, 2017

Cidades fantasmas, de Tyrell Spencer ***

A temática do documentário “Cidades fantasmas” (2017) é bem definida – as histórias de quatro pequenas cidades da América do Sul que por ações da natureza ou do homem (ou por ação conjunta de ambos os fatores) acabaram sendo abandonadas pelas suas respectivas populações. O diretor Tyrell Spencer adota um direcionamento narrativo que se mostra em forte sintonia com o viés melancólico do assunto principal do filme, em que a austera direção de fotografia em preto e branco, a edição de ritmo sereno e a discreta trilha sonora formam um conjunto estético contundente que sabe ressaltar as amargas nuances dramáticas dos eventos mostrados na tela, fazendo com que tal obra não se limite a um formato de reportagem convencional transplantada para a tela grande. Aliás, essa concepção de audiovisual é tão eficaz na sua sombria beleza que até torna, por vezes, dispensáveis e redundantes alguns depoimentos dados durante a narrativa. No mais, “Cidades fantasmas” ganha uma especial ressonância na conturbada conjuntura sócio-econômica em que vivemos, pois em cada um dos casos expostos no documentário fica evidente o descaso com aspectos humanistas em prol de ações visando o lucro financeiro e político de uma pequena elite.

sexta-feira, julho 07, 2017

Una, de Benedict Andrews **

Num primeiro momento, a abordagem artística concebida pelo diretor Benedict Andrews para “Una” (2016) pode até sugerir alguma ousadia – a temática polêmica da pedofilia parece ser filtrada por uma narrativa mais atmosférica e de sóbria abordagem emocional. O desenrolar da narrativa, entretanto, revela que tal impressão se mostra enganosa. O desenvolvimento da trama vai mostrando um caráter novelesco, beirando o exagero e o brega, e por vezes caindo no francamente moralista (afinal, a sugestão de que a protagonista Una tem uma vida “dissipada” em termos de comportamento por ter sido abusada sexualmente na adolescência está bem longe de caracterizar uma visão libertária). Há até uma menção de ambiguidade na relação entre Una (Rooney Mara) e seu algoz/amante Ray (Ben Mendelsohn), mas tal sutileza dramática é progressivamente abafada em nome de uma solução mais previsível e adequada em termos “morais”. O formalismo do filme se mostra em sintonia com as escolhas convencionais e um tanto hipócritas do roteiro, dando para a narrativa uma estruturação asséptica, típica de um telefilme derivativo, 

quinta-feira, julho 06, 2017

A jovem rainha, de Mika Karismäki *1/2

Como explicar que o mesmo diretor dos idiossincráticos e criativos documentários “Tigreros” (1994) e “Moro no Brasil” (2002) é também responsável por uma obra tão enfadonha quanto “A jovem rainha” (2015)? Talvez o finlandês Mika Kaurismäki precisasse pagar as contas ou mesmo devesse algum favor a um produtor, mas o fato é que esse seu filme mais recente recebe um tratamento formal-temático bastante derivativo e desinteressante. Não dá para dizer que a premissa principal de sua trama e o fato da narrativa se vincular ao gênero do “filme de época” sejam desculpas fundamentais para o resultado final frustrante. O roteiro até esboça algumas situações potencialmente interessantes envolvendo questionamentos sobre a opressão social e moral do poder patriarcal político e um possível e explosivo romance lésbico. Nas mãos de um cineasta disposto a esmiuçar tais nuances e ousar em termos estéticos, poderia render algo de memorável (dentro de tal concepção, é só lembrar, por exemplo, do polêmico e extraordinário “A rainha Margot”). Do jeito que Kaurismäki leva as coisas, entretanto, tais expectativas caem por terra, vide uma encenação mofada, um formalismo bem-comportado e um roteiro que vai se aprofundando numa breguice novelesca e previsível.

terça-feira, julho 04, 2017

Stefan Zweig - Adeus, Europa, de Maria Schrader ***

Ainda que vinculado ao gênero do drama biográfico, “Stefan Zweig – Adeus, Europa” (2016) não tem como principal intenção temática fazer um grande resumo sobre a vida de seu protagonista. Dentro da concepção artística-existencial da diretora Maria Schrader, mais importante seria fazer uma espécie de retrato de uma nebulosa sensação de desconforto espiritual-filosófico de um imaginário coletivo diante do avanço inexorável da barbárie sócio-política-cultural na sociedade ocidental da primeira metade do século XX. Dentro de tal ambientação narrativa e histórica, a opção da cineasta em termos de abordagem emocional e estética é por um formalismo contido e por um roteiro sem grandes reviravoltas dramáticas (com exceção, é claro, da sequência final na revelação do suicídio duplo de Zweig e sua esposa), formando um conjunto narrativo sereno e cinzento, por vezes quase tedioso, mas que oferece a moldura adequada para o sombrio subtexto de sua trama, e que acaba ganhando uma ressonância ainda mais perturbadora quando se pensa na atual conjuntura mundial política e social.

segunda-feira, julho 03, 2017

Z - A cidade perdida, de James Gray ****

Assim como já tinha feito em “Era uma vez em Nova Iorque” (2013), o diretor norte-americano James Gray recria o gênero do “filme de época” sob uma perspectiva bastante particular e preciosista em “Z – A cidade perdida” (2016). Com uma trama baseada em fatos reais, não há um foco principal concentrado na reconstituição de fatos históricos, mas sim numa narrativa que se situa entre o classicismo e o atmosférico, evocando um insólito encontro entre David Lean e Werner Herzog. Quando a história fica localizada na parte “civilizada” da Inglaterra, encenação, fotografia e direção formam um conjunto estético que tanto se vincula à linguagem naturalista quanto a uma estilização de beleza visual desconcertante. Aliás, pode-se dizer que os quinze minutos iniciais de “Z” traz uma das mais ácidas dissecações sobre a questão do preconceito classes na sociedade ocidental já apresentadas no cinema. Quando a ação se volta para a selva amazônica, formalismo e narrativa ganham uma conotação de sutil viés delirante, focando na clássica dicotomia entre o jogo de atração e repulsa do homem ocidental frente a uma natureza misteriosa, bela e perigosa, na tradição de obras épicas que alternam com admirável naturalidade a tensa aventura “física” e a viagem existencial – nesse sentido, por vezes a sofisticada e intrigante concepção artística de Gray para “Z” faz lembrar a obra-prima “conradiana” “Apocalypse Now” (1979).