quarta-feira, setembro 23, 2020

O irlandês, de Martin Scorsese ***1/2

 


É estranho dizer que um filme é ótimo e também ao mesmo tempo é decepcionante. Mas esse é justamente o caso de “O irlandês” (2019). Contribui para essa percepção todo o contexto em que o filme foi lançado. O diretor Martin Scorsese vinha de uma sensacional trinca consecutiva de obras-primas: “O lobo de Wall Street” (2013), “Silêncio” (2016) e “Rolling Thunder Revue” (2019). A produção em questão ainda marca a volta do cineasta a um gênero, os filmes de gangsteres, no qual lançou algumas das suas obras mais memoráveis. Ocorre que nesse trabalho mais recente não há a tensão nervosa a flor-da-pele de “Caminhos perigosos” (1973), o misto de ironia e paranoia de “Os bons companheiros” (1990), o barroquismo gráfico grandioso e violento de “Cassino” (1995) e nem a ação eletrizante de “Os infiltrados” (2006). O que predomina em “O irlandês” é uma narrativa clássica e serena, quase solene, sem grandes arroubos estéticos. A ambição de Scorsese é grande: ao mostrar a história real do assassino da Máfia Frank Sheeran (Robert De Niro), procura fazer uma síntese entre um amplo painel sócio-político da história dos Estados Unidos do século XX e a trajetória pessoal de seu protagonista. Apesar da longa duração do filme, incomoda que determinadas passagens do roteiro se mostram um tanto superficiais e mal desenvolvidas, principalmente no que se refere à personagem Peggy (Anna Paquin), filha de Frank. Nesses momentos, há a sensação incômoda do filme cair num tom de melodrama moralista, como se em tais sequências Scorsese tivesse perdido a mão na condução rigorosa de direção, coisa praticamente inexistente no melhor de sua filmografia. Ainda que isso possa frustrar aqueles que tivessem altas expectativas para a obra, há qualidades notáveis que que colocam “O irlandês” em um nível muito acima da média. O extraordinário trabalho de montagem faz com que o espectador nem sinta as três horas e meia de duração passarem, a parte histórica do roteiro tem uma visão existencial bastante lúcida e sofisticada sobre a sua temática e há algumas interpretações magníficas no elenco, com destaque absoluto para Joe Pesci. De repente pode ser pouco em se tratando de Scorsese, mas tais qualidades artísticas tornam “O irlandês” um acontecimento cinematográfico bastante relevante no atual panorama do cinema mundial.

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