segunda-feira, março 05, 2007

Os Infiltrados, de Martin Scorsese ****

Uma das coisas que mais me irrita entre críticos e cinéfilos em geral é uma visão sectária e estanque do próprio cinema que boa parte dessa gente tem. Seguido ouço comentários do tipo “os filmes de antigamente são melhores que os de hoje” ou “fulano já teve a sua época de ouro”. Na minha opinião, isso tudo representa uma visão comodista e equivocada. Afinal, é muito mais fácil dizer que o cinema atual é uma merda do que procurar uma nova obra-prima.

Mas por que essas considerações antes de falar de “Os Infiltrados”? Ora, a maioria dos textos e comentários que observei nesses últimos meses sobre o filme em questão e Martin Scorsese dizem que o apogeu criativo do cineasta já passou a alguns anos, sendo que esses Oscars que o mesmo recebeu por “Os Infiltrados” seriam na realidade uma homenagem ao conjunto de sua carreira. Sei que críticas são subjetivas na sua essência, mas discordo radicalmente dessa visão sobre Scorsese. Para começar, pelo menos nesses últimos quinze anos ele é responsável por algumas das mais expressivas e brilhantes obras do cinema mundial como “Cabo de Medo”, “A Idade da Inocência”, “Cassino”, “Vivendo no Limite” e “O Aviador”. Isso sem contar os dois monumentais documentários feitos para televisão “Feel Like Going Home” e “Bob Dylan: No Direction Home”. E, por fim, sem querer desmerecer produções geniais como “Caminhos Perigosos”, “Touro Indomável”, “Taxi Driver”, “O Último Concerto de Rock” e “Os Bons Companheiros”, mas “Os Infiltrados” é o grande apogeu artístico da carreira de Scorsese.

Da primeira a última cena, “Os Infiltrados” é uma verdadeira aula de cinema. A abertura já é antológica. Cenas documentais de conflitos em um bairro negro são logo seguidas da narração de Frank Costello (Jack Nicholson) dissecando a sua cínica e violenta filosofia de vida. Nesses primeiros momentos, Scorsese teve a sacada genial de deixar a fisionomia de Costello envoltas em sutis sombras, numa bela homenagem do diretor ao universo noir o qual ele tanto admira. Quando finalmente o rosto de Costello aparece claramente, o impacto da sua figura é impressionante.

Admirável também nessa obra mais recente de Scorsese é o casamento perfeito do roteiro preciso com um trabalho de edição fenomenal. O ritmo narrativo de “Os Infiltrados” é incansável: todas as suas seqüências giram quase que exclusivamente em torno dos malabarismos de Billy Costigan (Leonardo DiCaprio), policial que age como espião dentro da quadrilha de Costello, e Collin Sullivan (Matt Damon), homem de confiança do mesmo Costello que trabalha no departamento de polícia, para que não sejam descobertos nas suas respectivas farsas. Essa objetividade de Scorsese no dimensionar o foco da sua trama oferece a “Os Infiltrados” um clima de crescente tensão que fica cada vez mais angustiante com o desenrolar dos fatos.

Ao mesmo tempo que Scorsese consegue desenvolver suspense de forma impressionante, é de se tirar o chapéu também para as fantásticas cenas de ação que o diretor conseguiu obter para o seu filme. Seqüências como a que Costigan persegue Sullivan no bairro chinês e o apoteótico tiroteio final entre a polícia e a gangue de Costello revelam a maestria da direção de Scorsese, estando no mesmo nível de obras policiais clássicas de William Friedkin como “Operação França” e “Viver e Morrer em Los Angeles”. De se destacar ainda que as seqüências de ação de “Os Infiltrados” demonstram também influências do cinema oriental policial. Dessa forma, o fato do filme ser uma adaptação de uma produção chinesa chamada “Conflitos Internos” não se restringiu apenas a uma simples transposição da trama, mas também na incorporação por parte de Scorsese de novos caminhos para o seu já clássico estilo de filmar. Interessante mencionar que esse encontro entre Ocidente e Oriente se reflete ainda em outro dos momentos mais luminosos de “Os Infiltrados” que é aquele em que a quadrilha de Costello se encontra com um grupo de criminosos chineses em um depósito de caís de porto para uma transação escusa, ao mesmo tempo em que estão sendo monitorados pela polícia. A alternância entre as duas ações ocorre numa dinâmica precisa e que se torna cada vez mais tensa a cada segundo.

Outro ponto alto em “Os Infiltrados” é a forma como a música é inserida dentro da narrativa. Todo apreciador de cinema se recorda da relação apaixonada de Scorsese com as trilhas sonoras do seu filme, principalmente em termos de seleção de canções. As mesmas nunca são utilizadas de forma gratuita, fornecendo sempre a paisagem sonora perfeita para as situações e personagens do universo de Scorsese. Nesse campo, talvez apenas Quentin Tarantino tenha sensibilidade comparável. Em “Os Infiltrados”, essa capacidade de Scorsese é elevada à enésima potência. A começar pela mencionada cena de abertura, em que a poderosa e épica “Gimme Shelter” dos Rolling Stones acompanham de forma grandiosa os “ensinamentos” de Costello. Já “Confortably Numb” do Pink Floyd, mas na versão arrepiante com Van Morrison nos vocais, é apresentada num contexto ainda mais ousado: começa de forma plácida numa reunião entre a quadrilha de Costello num armazém e acompanha Costigan na caminhada em direção ao apartamento de Madolyn (Vera Farmiga), explodindo no seu refrão justamente quando os dois começam a transar, num trabalho de edição primoroso e clássico. E é claro que não dá para esquecer da folk punk “I’m Shipping Up To Boston”, dos Dropkick Murphys, presente em duas seqüências cruciais de “Os Infiltrados” e que representam com fidelidade o espírito do filme.

Contribui ainda para o excepcional resultado final de “Os Infiltrados” um elenco de atores em estado de graça. DiCaprio faz de William Costigan um indivíduo que é pura tensão, enquanto Matt Damon oferece o contraponto exato: Sullivan tem a dose certa da inexpressividade maliciosa mais que adequada para o papel. Já Mark Wahlberg é um dínamo de fúria como o durão Sargento Dignam. E nunca as caretas e olhares de maníaco de Jack Nicholson fizeram tanto sentido em um filme quanto em “Os Infiltrados”, fazendo do violento e carismático Frank Costello um indivíduo que oscila fantasticamente entre o engraçado ao francamente assustador.

Eu poderia escrever mais algumas linhas sobre “Os Infiltrados” e mesmo assim eu não conseguiria dar a dimensão exata da grandeza dessa obra prima de Scorsese. Esse é o tipo de filme que só assistindo várias vezes conseguimos captar uma boa parte de suas nuances. Ou seja, o tipo de obra que já nasce clássica e que certamente está ao lado de outras produções cinematográfica fundamentais como “Meu Ódio Será Tua Herança” e “O Poderoso Chefão”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Também gosto muito desse filme. Assisti pela terceira vez ontem, e sempre me chama a atenção a atuação do Leonardo Di Caprio pela maneira como a personalidade dele fica cada vez mais intensa durante o filme. No início do filme ele se apresenta como um recém formado da academia de polícia, um pouco inseguro e com a vontade normal de ser aceito. Então ele é compelido à trabalhar como um policial infiltrado em situação terrível e reclama diversas vezes de ter que fingir todos os dias ser alguém que ele não é. De fato, não dá tempo de saber quem ele era antes, ou o que ele achava que era, ou o que ele era de verdade: somente conseguimos acompanhar o sofrível trabalho desenvolvido como "espião" e as seguidas crises de ansiedade, de identidade e de paixão. É um personagem que começa tímido e com o decorrer da história é levado à limites da própria capacidade emocional. Gosto da maneira como o personagem foi construído. No fim do filme ele diz que só quer de volta o cartão de identidade. Inteligentemente, acho que foi a maneira de ele dizer que precisava de algo que dissesse quem ele era. Tipo um ponto de partida. Porque ele mesmo já havia se perdido.