quinta-feira, julho 17, 2014

O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese ****



Uma obra como O lobo de Wall Street (2013) é impossível de dissociar do seu contexto histórico. Vendo o filme de Scorsese, não há como não fazer associações em relação à crise econômica que estourou nos Estados Unidos em 2008 e se disseminou de forma implacável pelo resto do mundo, perdurando os seus efeitos até os dias de hoje. Por mais que analistas gastem o seu “economês”, a verdade é que tal “crack” teve por origem causas cujas razões não são tão incompreensíveis assim para leigos: mercado financeiro desregulamentado, especulações diversas atrás de lucro fácil, consumismo exacerbado, a ascensão social a qualquer preço vista quase como religião. De certa forma, seria a distorção de todos aqueles valores tomados como verdades incontestáveis no mundo ocidental, principalmente no pós-queda da União Soviética – a de que os mercados livres se auto-regulariam de forma natural, a de que bastaria o cidadão comum trabalhar sem o Estado atrapalhar para que ele fosse “bem sucedido”. Mas e se tudo isso não for distorção e apenas a consequência natural ao culto do individualismo? De qualquer forma, a crise econômica de 2008 (assim como outras que existiram na história mundial) acaba ganhando a conotação metafórica de ser o inferno do capitalismo, o momento em que as suas culpas estão sendo expiadas. Ora, e de culpa, expiação e inferno o cinema de Martin Scorsese entende muito bem! Na abertura de O lobo de Wall Street ele já procura sintetizar a essência de seu filme: começa com uma peça publicitária asséptica, louvando a respeitabilidade e a tradição da empresa de corretagem de Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), para logo depois cortar em uma orgia nos escritórios da tal firma, onde o ápice consiste num torneio de arremessos de anões. O contraste entre o discurso hipócrita marqueteiro de moralidade e a realidade de puro hedonismo amoral nesse pequeno truque de edição pode até ser considerado um recurso barato, mas é eficiente e perturbador no efeito de causar sensações tanto de repulsa quanto de atração pelo mundo enlouquecido de picaretagens, sexo e drogas de Belfort. E é com base em tal ambiguidade que Scorsese norteia todo o seu vasto arsenal formal e temático ao longo das três horas de duração da sua mais recente produção.

É recorrente entre público e crítica a comparação que se faz entre O lobo de Wall Street e uma das mais estimadas obras de Scorsese, Os bons companheiros (1990), tendo em vista o fato de ambas as produções se basearem numa estrutura narrativa no estilo ascensão, apogeu e queda de um protagonista de moral e comportamento duvidosos. Tal relação procede, mas se a análise for mais minuciosa se poderá observar que esse tipo de abordagem é até habitual na trajetória do diretor. Afinal, O touro indomável (1980) e Cassino (1995) também obedeciam a tal preceito de estruturação de trama. Na verdade, O lobo de Wall Street não resgata apenas essa característica do cinema de Scorsese – também retorna a outras das suas obsessões estéticas e temáticas, já bastante delineadas em outros de seus filmes. Não se trata, entretanto, de mera reciclagem. Nessa nova empreitada, o cineasta filtra o seu conhecido material autoral sob uma ótima muito mais exagerada, chegando às raias do grotesco. As nababescas festas patrocinadas por Belfort, por exemplo, parecem um circo de freaks onde quase todas as depravações imagináveis podem se tornar realidade. Nesse sentido, esse pendor para o barroquismo bizarro, que Scorsese já havia tangenciado em O cabo do medo (1991), remete a uma influência daquele Fellini no auge de seus delírios visuais (Satyricon, Julieta dos espíritos) e a uma aproximação do virtuosismo de extremos de Brian De Palma em Scarface (1983) e O pagamento final (1993). E chega até ser engraçado que toda essa fúria sensorial de O lobo de Wall Street tenha vindo logo depois de uma obra bem mais doce e comportada que foi A invenção de Hugo Cabret (2011) – é como se Scorsese dissesse que nunca será domesticado.

À pretensão de O lobo de Wall Street não é explicar didaticamente as picaretagens praticadas no sistema financeiro da bolsa de valores ou expor com detalhes as razões da já mencionada crise econômica – para isso, já existem documentários esclarecedores como Capitalismo: Uma história de amor (2009) ou Trabalho interno (2010). A intenção é mais sutil e ambiciosa: é radiografar a alma de uma geração. Ao narrar os trambiques de Belfort na bolsa de valores e o seu hedonismo sem limites, o filme envereda por uma perspectiva que foge dos padrões moralistas óbvios quando se toca em assuntos como ambição econômica desmedida e comportamentos dionisíacos – a queda do anti-herói não traz a ideia de arrependimento típica de uma parábola moral. O conceito de culpa é muito mais nebuloso que aquele que o cristianismo nos ensina, e aí se chega a um ponto chave que norteia grande parte dos trabalhos de Scorsese. Jack LaMotta de O touro indomável, Henry Hill de Os bons companheiros, Sam Rothstein de Cassino e agora Jordan Belfort são retratados como sociopatas. Sendo assim, como se pode falar em culpa? E no caso de Belfort, talvez isso seja mais perturbador, pois até ser preso seu comportamento é aceito perante a sociedade que o cerca como legítimo, dentro daquele ideal em que o que interessa é “vencer na vida” dentro de um ambiente competitivo. Ou seja, o velho jogo entre predadores e presas dentro de uma selva moderna (e onde tais presas nem são tão vítimas assim). Não à toa, as primeiras lições que Belfort recebe de seu mestre Mark Hanna (Matthew McConaughey) são resumidas num canto de selva, com direito a batidas no peito estilo Tarzan.

E se O lobo de Wall Street representa uma espécie de conto de fadas perverso da deterioração do tão decantado sonho americano, dentro dessa linha conceitual mais coerente em termos artísticos e existenciais se torna a colaboração constante entre Scorsese e DiCaprio. A persona deste último sempre foi ambivalente, num sentido em que a sua aura de babyface carismático e transbordando autoconfiança, de certa forma o modelo imagético do imaginário do que o indivíduo norte-americano deveria ser, também esconde um lado obscuro, sombrio. Assim era o magnata visionário e obsessivo de O aviador (2004), o angustiado policial de Os infiltrados (2006) e o investigador/paciente psiquiátrico de A ilha do medo (2010). E a mesma construção dramática se aplica para Jordan Belfort, personagem cativante com as vítimas de suas falcatruas, generoso e paternal com seus sócios e subordinados, e que não hesita um segundo quando se trata de dar um golpe para ganhar uma boa grana. DiCaprio encarna com espantosa naturalidade tais facetas, indo de momentos de refinado cinismo até cenas de puro humor físico que beiram o pastelão. De lambuja, tem um parceiro de cena em absurda sintonia – Jonah Hill parece em possessão no papel de Donnie Azoff, sócio de Belfort, numa caracterização assustadora que oscila entre o hilário e o doentio.

Mais que um delírio opulento a retratar uma malfadada saga individual, O lobo de Wall Street é o retrato épico e sarcástico de uma época. Se Gangues de Nova Iork (2002) mostrava os primitivos passos da constituição moral e cultural não só de uma cidade mas também de uma nação em meio a barbárie e violência, em sua obra mais recente Scorsese mostra que nas entrelinhas de discursos, condutas e vestimentas ditos civilizados se esconde ainda a lei da selva.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

um dos filmes que mais me identifiquei recentemente