quarta-feira, outubro 08, 2014

Sem pena, de Eugênio Puppo ***1/2


Uma das cenas iniciais de “Sem pena” (2014) é exemplar síntese da contundente concepção formal-temática do documentário em questão: num plano-sequência, a câmera retrata infindáveis corredores de um arquivo judiciário abarrotado de milhares (ou milhões?) de autos processuais, tudo ao som de um tema instrumental opressivo de John Cage. Em tais imagens, o diretor Eugênio Puppo já deixa claro que sua visão sobre o aparato estatal legal/repressivo não é das mais generosas. Mas o discurso afiado do filme não é apenas mais uma variação da linha denúncia que grassa tanto no cinema quanto na televisão nacional. O que diferencia a obra de Puppo são opções estéticas bastante criativas que acentuam ainda mais o impacto sensorial do seu complexo conteúdo. Quando a produção se foca para os depoimentos de várias esferas envolvidas no processo punitivo (polícia, apenado, juristas, parentes), são dispensados os enquadramentos diretos nos entrevistados – ficam somente as vozes, ilustradas por tomadas envolvendo o cotidiano das prisões ou de cenários de instituições (tribunais, prédios de faculdades de direito) que seriam responsáveis por uma justiça que na realidade se revela cada vez mais distorcida. Em outros momentos, Puppo apenas faz registros visuais que acentuam a melancolia e a desesperança de uma problemática que parece não ter solução, sensações essas que ganham uma conotação ainda mais sinistra pelas já aludidas músicas que beiram a dissonância de John Cage. A partir dessa narrativa singular, “Sem pena” consegue se expandir para além daquele tema que seria a princípio o seu mote principal: ao evidenciar a falência e a inutilidade de um sistema legal que não dá conta de apresentar soluções minimamente dignas para dilemas fáticos que deveria resolver, o filme quebra noções equivocadas que o senso comum de mídia, políticos e “opinião pública” tanto gostam de levantar e conclui que tudo isso acaba sendo o sintoma de uma sociedade tomada por profundas desigualdades sociais e hipocrisias diversas.

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