sexta-feira, junho 26, 2015

Sangue azul, de Lírio Ferreira ***1/2


As primeiras cenas de “Sangue azul” (2014) são sintomáticas da sensação que será permanente por quase todo o filme. A barca que leva a companhia circense do protagonista Zolah (Daniel de Oliveira) para uma ilha avança lentamente. Quando eles chegam ao seu destino, montam o circo. A trilha sonora é quase inexistente, a fotografia é um clássico preto e branco sombrio, reforçado por uma atmosfera tensa, tudo configurando uma espécie de expectativa de tragédia que é quase palpável. Mesmo quando as cores e o som irrompem em cena, justamente quando começa a primeira apresentação do circo naquela localidade, a sensação de que algo de muito errado está por acontecer permanece bastante premente. Nessa linha de narrativa, o diretor Lírio Ferreira estrutura sua obra como se fosse uma tragédia grega. Por isso, causam estranhamento alguns elementos que contrastam com aquilo que era para ser uma obra de cunho realista: personagens se desenvolvem e situações se sucedem num tom solene, os diálogos por vezes são empostados quase como se evocassem uma origem teatral, os dilemas existenciais dos indivíduos se manifestam em tabus básicos da cultura ocidental (incesto, homossexualidade). A paixão que cresce de forma intensa entre o homem-bala Zolah e a sua irmã Raquel (Caroline Abras) e o relutante processo de sedução gay entre o marido dessa última (Rômulo Braga) e o “homem mais forte do mundo” Inox (Milhem Cortaz) se mostram como possíveis situações simbólicas de dissolução da paz e da ordem dentro da ilha. Ocorre, entretanto, que essa configuração de “conto moral” é enganadora de maneira perversa. As várias seqüências de sexo em que Zolah se envolve na trama trazem desenvoltura e intensidade admiráveis nas suas encenações, revelando de forma sutil o verdadeiro caráter libertário de “Sangue azul”. Quando as referidas paixões incestuosa e gay se concretizam, aquela percepção de apocalipse iminente se evidencia como ironicamente enganosa. A verdadeira intenção da obra está na desconstrução das tradicionais noções de culpa e castigo que se ligam ao sexo e ao desejo quando se foge dos padrões ditos de “normalidade”. “Sangue azul” cristaliza essa proposta artística/existencial de forma poética e com uma beleza formal bruta e exasperante.

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