Pode-se dizer que a narrativa na versão cinematográfica de “O
beijo no asfalto” (2018) dirigida por Murilo Benício avança de forma linear.
Isso não quer dizer, entretanto, que estamos diante de mais uma adaptação
convencional da obra de Nelson Rodrigues. O cineasta envereda por uma escolha
estética bastante intrigante, dividindo a encenação em três planos: o ensaio em
uma mesa com os atores, a ação que se desenvolve em âmbito de cinema e a
dramatização como peça teatral. Em todas essas direções, sempre fica presente
de maneira visível para o espectador uma desconstrução da ilusão de “realidade”
– os artistas discutem as nuances do texto original, as câmeras interagem de
maneira ostensiva com o elenco, a plateia no teatro se mostra presente em
outras passagens. Tais detalhes formais não levam para um distanciamento
emocional em relação àquilo que se vê na tela, mas sim para explicitar a atemporalidade
da dramaticidade e lucidez do texto original, além de acentuar o vigor da
encenação proposta por Benício. A sensacional direção de fotografia de Walter
Carvalho a valorizar um expressionista preto-e-branco colabora para a sensação
de uma sombria e sufocante atmosfera de opressão e hipocrisia moral. A arejada
modernidade dessa concepção artística não se resume a uma mera experiência de
estilização, fazendo com que o texto de Nelson Rodrigues ganhe uma perturbadora
ressonância existencial com o tenebroso cenário sócio-político do Brasil atual.
3 comentários:
O novo O Beijo no Asfalto comprova que a obra de Nelson Rodrigues sobreviveu ao teste do tempo e que, novamente, revela um Brasil consumido pelo conservadorismo.Saiba mais no meu blog.
https://cinemacemanosluz.blogspot.com/2018/12/cine-especial-clube-de-cinema-de-porto.html
André, embora eu discorde do adjetivo linear para o filme, ao menos no que eu entendo para a palavra linear (e creio que o sentido que tu dás é provavelmente outro), teu texto capta muito bem todas as realidades do filme de Benício. E fecha pondo aquilo que parece desde o início a intenção central dos envolvidos na realização: qual é o sentido da arte no mundo brasileiro de hoje?
Quando eu falo em narrativa linear, comento no sentido de que ela não é fragmentada, que se sucede dentro de uma linha temporal convencional (o que não considero demérito), ainda que a encenação enverede por diversos formatos.
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