A real Porto Alegre contemporânea parece ser o cenário de “Tinta
bruta” (2018). Até mais do que isso: a capital gaúcha por vezes se mostra como
uma personagem própria do filme. Dentro da concepção artística-existencial
colocada em prática pelos diretores Filipe Matzembacher e Márcio Reolon,
entretanto, esse espaço físico e mesmo o espaço temporal dão a impressão de que
estamos assistindo a uma espécie de mundo paralelo distópico. Essa sensação se
desenvolve a partir de sutis e reveladoras sacadas narrativas, visuais e
textuais – as sufocantes sequências em tribunais, as cenas em festas que se
desenrolam de maneira que beiram o clandestino, os olhares que sugerem
desaprovação por parte de anônimos, a frieza emocional de ruas e avenidas quase
desertas no Centro. Em um pungente diálogo, um personagem diz se sentir em um
limbo/purgatório ao descrever qual é a sensação de viver nessa Porto Alegre
opressiva e desumanizada. Em mais de uma oportunidade, indivíduos manifestam a
vontade de sair da cidade. Impossível não pensar “Bem-vindo à Porto Alegre de
Marchezan e ao Brasil de Bolsonaro”... Nesse contexto, a vida virtual de Pedro
(Shico Menegat) como performer erótico e o intenso caso amoroso que ele mantém com
Leo (Bruno Fernandes), ainda que por vezes reforcem uma ideia de alienação e
escapismo, têm o significado de uma transgressão libertária e hedonista diante
de uma sociedade que massacra moral e fisicamente o diferente. Nesses termos
políticos-existenciais, a obra de Matzembacher e Reolon tem conexão com o
também recente “Rasga coração” (2018), mas enquanto o filme de Furtado opta
pela prolixidade de seus diálogos e numa marcação que resvala no teatral, “Tinta
bruta” é lacônico e preciso no seu texto e enfatiza seu forte componente
dramático no vigor da sua encenação, com destaque para voluptuosidade
desesperada das cenas de sexo, e na expressividade de silêncios, gestos e
olhares. Não à toa, a sequência final da dança solitária de Pedro em uma
melancólica rave evoca na lassidão e delicadeza de sua coreografia uma
declaração de irresignação e desafio em resistir diante de um repressivo aparato
burocrático/político/moral.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
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Um comentário:
Tinta Bruta é uma representação de uma geração solitária, da qual se vê na luta contra uma cidade de Porto Alegre moldada por sombras conservadoras e retrógradas. Saiba mais no meu blog.
https://cinemacemanosluz.blogspot.com/2018/12/cine-dica-em-cartaz-tinta-bruta.html
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