quarta-feira, abril 12, 2017

O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues ***1/2

Uma intrigante simbologia permeia toda a narrativa de “O ornitólogo” (2016). Nas sequências iniciais, em que o protagonista Fernando (Paul Hamy) estabelece uma rotina de silenciosa e rigorosa observação de pássaros no meio de uma floresta, o diretor João Pedro Rodrigues utiliza um registro audiovisual típico do estilo naturalista – fotografia e edição evocam trejeitos de cinema documental, encenação remete à escola realista, há um certo distanciamento emocional na abordagem temática, trilha sonora musicada praticamente ausente. Tais opções de linguagem cinematográfica revelam sutilmente um universo marcado pelo predomínio da ciência e da razão. Quando Fernando acidentalmente se perde na floresta, ambientação e atmosfera existencial da obra se transformam radicalmente, como se o personagem tivesse ultrapassado para uma dimensão paralela. Nesse novo contexto de teor fantástico e delirante, surgem figuras e situações estranhas e perturbadoras, como as amigas chinesas adeptas de um catolicismo obtuso, um grupo de nativos que celebram rituais pagãos, amazonas fora do tempo e do espaço, um pastor de ovelhas mudo e gay, até mesmo um pombo branco que parece configurar uma espécie de espírito da floresta. A conexão entre “O ornitólogo” e os conflitos e dilemas do mundo contemporâneo é claro, ainda que tal ligação se estabeleça por caminhos insólitos – quanto mais Fernando, agnóstico e homossexual, se embrenha na floresta, mais ele se confronta com o atavismo e a tradição opressores de um lugar marcado pelo misticismo obscurantista. Ao avançar por trilhas e matos, sua individualidade e sua psique vão se dissolvendo aos poucos num assustador processo de “sublimação”. Ou seja, a metáfora exata a retratar a retomada de uma sufocante religiosidade no mundo contemporâneo. Nesse sentido, “O ornitólogo” se irmana com outra extraordinária obra de temática semelhante, “A bruxa” (2015), em que truques e efeitos habituais do gênero horror são transformados em valiosos recursos na composição de narrativas de forte caráter libertário.

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