Uma intrigante simbologia permeia toda a narrativa de “O
ornitólogo” (2016). Nas sequências iniciais, em que o protagonista Fernando (Paul
Hamy) estabelece uma rotina de silenciosa e rigorosa observação de pássaros no
meio de uma floresta, o diretor João Pedro Rodrigues utiliza um registro
audiovisual típico do estilo naturalista – fotografia e edição evocam trejeitos
de cinema documental, encenação remete à escola realista, há um certo
distanciamento emocional na abordagem temática, trilha sonora musicada praticamente
ausente. Tais opções de linguagem cinematográfica revelam sutilmente um
universo marcado pelo predomínio da ciência e da razão. Quando Fernando
acidentalmente se perde na floresta, ambientação e atmosfera existencial da
obra se transformam radicalmente, como se o personagem tivesse ultrapassado
para uma dimensão paralela. Nesse novo contexto de teor fantástico e delirante,
surgem figuras e situações estranhas e perturbadoras, como as amigas chinesas
adeptas de um catolicismo obtuso, um grupo de nativos que celebram rituais
pagãos, amazonas fora do tempo e do espaço, um pastor de ovelhas mudo e gay,
até mesmo um pombo branco que parece configurar uma espécie de espírito da
floresta. A conexão entre “O ornitólogo” e os conflitos e dilemas do mundo
contemporâneo é claro, ainda que tal ligação se estabeleça por caminhos
insólitos – quanto mais Fernando, agnóstico e homossexual, se embrenha na
floresta, mais ele se confronta com o atavismo e a tradição opressores de um
lugar marcado pelo misticismo obscurantista. Ao avançar por trilhas e matos,
sua individualidade e sua psique vão se dissolvendo aos poucos num assustador
processo de “sublimação”. Ou seja, a metáfora exata a retratar a retomada de
uma sufocante religiosidade no mundo contemporâneo. Nesse sentido, “O
ornitólogo” se irmana com outra extraordinária obra de temática semelhante, “A
bruxa” (2015), em que truques e efeitos habituais do gênero horror são
transformados em valiosos recursos na composição de narrativas de forte caráter
libertário.
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