Se em “Corumbiara” (2009), obra anterior do diretor Vincent
Carelli, a narrativa convencional e apenas correta não acompanhava a
contundência de sua temática, em “Martírio” (2016) esse descompasso desaparece,
tendo por resultado uma obra inquietante e muito bem resolvida em termos
estéticos e existenciais. E isso fica evidente logo nas primeiras sequências do
filme, em que o brilhante jogo de edição contrapõe o discurso preconceituoso de
políticos e da mídia oficial em relação à questão indígena com a realidade
desoladora dos nativos. Tal engenhoso recurso narrativo também serve para
estabelecer como o trabalho de Carelli transcende a simples reportagem informativa,
deixando claro que o gênero do documentário cinematográfico tem como uma de
suas funções principais oferecer uma perspectiva humanista e artística que vai
além da abordagem jornalística “imparcial” da grande imprensa. Para o diretor,
não basta que a sua obra se limite a uma descrição cronológica e minuciosa de
fatos – na verdade, o que ele se propõe é jogar o espectador dentro de uma
perturbadora jornada histórica e sensorial sobre a trajetória de sistemática
dizimação física e cultural de povos indígenas no Brasil a partir do relato das
experiências traumáticas sofridas pelo grupo Guarani Kaiowá. Para isso, Carelli
constrói uma narrativa que se vale de recursos variados (relato histórico,
registro etnográfico, depoimentos, filmagens amadoras, farto material de
arquivo audiovisual, perspectiva emocional e intimista) e lhes dá uma unidade
artística admirável e também desconcertante, pois se há momentos de intensa
melancolia, principalmente nas entrevistas com os indígenas a descreverem seus
calvários, e até mesmo assustadores (com destaque para as falas hipócritas de
latifundiários e políticos), há também sequências em “Martírio” que trazem um
comovente encanto pelo dimensão cultural de rezas e danças nos rituais
indígenas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário