Mesmo estando longe de ser uma unanimidade em termos de
reconhecimento artístico, é inegável que “Kids” (1995) foi uma obra marcante em
mais de um aspecto, ao lançar as bases estéticas e temáticas nas quais o
diretor Larry Clark e seus colaboradores se aprofundaram em obras posteriores –
vide Harmony Korine em “Gummo” (1997) e “Spring Breakers” (2012). A abordagem
conceitual crua sobre uma juventude mergulhada em hedonismo e vazio existencial
ganhou admiradores e seguidores confessos, mas também veio acompanhada de uma
legião de detratores. Enquanto havia uma ala de crítica e público que se
encantava por uma certa poesia visceral em meio aquela sordidez visual e
degradação comportamental, também existia setores que viam em Clark uma espécie
de voyeur e marqueteiro a se deliciar com a violência e a sexualidade brutal de
seus jovens belos e malditos. A ambiguidade tanto na concepção artística dos
seus filmes que se sucederam (“Bully”, “Ken Park”) quanto nessa recepção ao seu
trabalho permaneceu ao longo dos anos.
O amplo espectro de elogios que “O cheiro da gente” (2014)
vem recebendo pode até sugerir que houve alguma mudança nessa dubiedade que
marcou de forma constante a carreira de Clark. A verdade, entretanto, é que a
impressão efetiva é de que o diretor se embrenhou ainda mais nas suas contradições
conceituais habituais, reforçando o seu caráter de cronista das delícias e
tormentos das crianças e adolescentes pequeno burgueses da sociedade ocidental
contemporânea. A diferença é que nessa empreitada mais recente existe um
acabamento formal extremamente refinado, mas que em nenhum momento retira o
traço visceral e autoral que sempre foi inerente à filmografia de Clark. Pelo
contrário: a sofisticação plástica de “O cheiro da gente” torna o seu impacto
sensorial ainda mais potente na capacidade de provocar nas plateias aquela
reação mista entre o encantamento e a perturbação. Esse pendor para o requinte
estético vem acompanhado de uma visão de mundo ainda mais nebulosa e
desafiadora na forma com que expõe os conflitos e dilemas de seus jovens
personagens. Tanto que o próprio Clark se coloca na trama como uma figura
ficcional, um mendigo asqueroso que ora serve como diversão sádica para a
garotada ora é uma espécie de confidente e parceiro de diversão de seus
algozes. Ou seja, um alter ego mais que adequado para o cineasta...
É bem provável que o fato da trama de “O cheiro da gente” se
desenvolver em Paris tenha sido uma influência decisiva para esse esteticismo
renovado de Clark. É engraçado, entretanto, que as referências artísticas que
mais vem à mente ao longo da projeção do filme sejam algumas obras fundamentais
da época de ouro do cinema italiano (anos 50, 60 e 70). O tom operístico e
trágico de algumas sequências remete aos filmes da fase “alemã” de Luchino
Visconti (“Os deuses malditos”, “Ludwig”, “Morte em Veneza”), na sua combinação
de homossexualidade, incesto, decadência e morte. A encenação picaresca e
realista e a profusão de cenas sexo lembram muito daquele Pasolini da “Trilogia
da vida”. Algumas cenas de atmosfera onírica e chapada, junto com a
caracterização algo misteriosa de efebo prostituto Math (Lukas Ionesco),
parecem habitar o mesmo universo do Fellini delirante de “Satyricon” (1969). E
de forma sutil, perpassa no roteiro um forte subtexto de revolta e desprezo
contra a ordem vigente de adultos hipócritas que evoca a ácida rebeldia de
“Zabriskie Point” (1970). Tais influências e referências não fazem da narrativa
de “O cheiro da gente” uma mera colcha de retalhos com pretensões
pseudointelectuais. Elas são incorporadas de maneira muito particular dentro do
modus operandi de Clark e se expressam dentro de um registro que varia de forma
admirável entre o virulento e o poético.
Talvez alguns críticos e “formadores de opinião” fiquem
inconformados com a recusa de Clark em fazer um retrato sociológico mais claro
dessa juventude contemporânea dos grandes centros urbanos. Mas é justamente na
imprecisão de seu “discurso”, aliado à criatividade de virtuosismo estético,
que “O cheiro da gente” se mostra em perfeita sintonia existencial e artística
com os tempos confusos que vivemos, colocando-se no rol das produções
cinematográficas dessa década que fizeram registros contundentes e memoráveis
da juventude como “Depois de maio” (2012) e “Nós somos as melhores” (2013).
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