Combinar drama racial com preceitos de horror gótico típicos
de cinema B pode parecer uma mistura indigesta em um primeiro momento. Nas mãos
do diretor Jordan Peele, entretanto, tudo isso adquire uma estranha coerência. “Corra!”
(2017) é uma obra que prima pelo exagero – com direito, inclusive, a passagens
no roteiro envolvendo transplantes cerebrais! – mas é justamente nesse aspecto
do excesso que o filme se torna tão marcante. A caracterização de personagens,
situações e ambientação é ambígua – na superfície, há uma beleza que é asséptica,
evocando sempre uma espécie de América “idealizada” e perdida, possivelmente
aquela buscada por Donald Trump e seus seguidores, e que esconde também um lado
sombrio e degradado na sua moralidade distorcida. Ainda nesse aspecto
existencial, mesmo a visão sobre a questão racial na produção é marcada por uma
originalidade surpreendente, em que a pró-atividade dos personagens negros na
defesa de sua integridade física-moral foge dos caminhos óbvios de uma hipócrita
saída conciliadora, além do fato de que o racismo dos vilões da trama esconde
na sua gênese uma admiração pela própria figura do negro (afinal, por que os
personagens brancos escolheriam passar o resto de suas vidas dentro dos corpos
de afro-americanos?). No mais, a narrativa é marcada por encenação e atmosfera
elaboradas a partir de uma uma dinâmica tensa e brutal, beirando por vezes o
barroco e o delirante nas nuances visuais de algumas sequências.
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