A sequência inicial de “O cidadão ilustre” (2016), em que o
escritor Daniel Mantovani (Oscar Martínez) recebe o Nobel da literatura, pauta
o grande dilema existencial do roteiro do filme dirigido por Mariano Cohn e
Gastón Duprat – a do real papel da arte no mundo contemporâneo. O texto raivoso
e amargurado do discurso proferido pelo protagonista durante o evento evidencia
o medo de uma estagnação criativa e da incapacidade de sua escrita gerar algum
incômodo ao status quo vigente. Assim, quando a narrativa passa a se concentrar
no ambiente da cidadezinha no interior da Argentina onde Mantovani nasceu, e
que serviu de maior fonte de inspiração para as histórias de seus livros, a
produção ganha um tom de fábula perversa, por vezes até kafkaniana na sua
caracterização de pesadelo, em que o personagem principal, inicialmente
convidado pela prefeitura local para ser homenageado, se embrenha em um
crescente vórtice de sentimentos nada nobres por parte dos habitantes da cidade
(mascarados por um hipócrita manto de cordialidade): invejas, ressentimentos,
obscurantismo, mesquinharias, repressão moral e interesses escusos das
oligarquias locais. Diante de tais situações, Mantovani é contraditório e
ambíguo em suas ações e sentimentos, mas de tais elementos fica tangível um
humanismo que se contrapõe ferozmente contra o opressor patriarcalismo político-cultural
da sua aparentemente pacata cidade natal. Ainda que por vezes “O cidadão
ilustre” caia em algumas caracterizações caricatas e simplistas e que o seu
formato seja o de uma comédia dramática convencional, a obra de Cohn e Duprat
tem momentos instigantes e memoráveis pela forma com que expõe a condição entre
o ridículo e o assustador da sociedade contemporânea, reafirmando a função da
arte e da cultura em desafiar tais aspectos deletérios da humanidade.
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