Por mais que puristas e parte da crítica não admitam, a
verdade é que o cinema em primeiro lugar é indústria e cultura de massa. O que
permitiu que ele se consolidasse como meio de expressão cultural foi justamente
o fato de que boa parte do que era produzido teve viabilidade financeira,
permitindo o lucro para produtores e demais partes envolvidas no processo.
Dentro dessa lógica, se um determinado produto cinematográfico tem um lucro
considerável, é natural que seus “donos” queiram prolongar essa oportunidade de
ganhar mais dinheiro. Assim, continuações de um filme que fez sucesso
representam uma prática consagrada dentro da indústria de cinema desde
praticamente quando tal indústria se estabeleceu. Esse raciocínio pode parecer
frio ou pragmático, mas na realidade é apenas a constatação de uma realidade
fática. Dentro dessa lógica capitalista, contudo, é claro que pode haver uma
transcendência artística, em que essas produções que dão continuidade aos
eventos de um determinado universo (sequências, spin-offs, prequels e afins)
acabam oferecendo uma dimensão existencial ainda mais aprofundada para
personagens e situações. E é justamente nesse caso que se pode enquadrar “Creed”
(2015), obra que dá prosseguimento aos fatos apresentados em “Rocky: Um lutador”
(1976) e suas demais sequencias.
Ainda que a figura do pugilista Rocky Balboa (Sylvester
Stallone) hoje esteja grudada no imaginário cinematográfico geral, a verdade
também é que ao longo dos anos a imagem do personagem foi vilipendiada e
banalizada pelo caráter oportunista de algumas das continuações que a franquia
teve. Nesse sentido, talvez o auge dessa postura esteja no nacionalismo obtuso
de “Rocky 4” (1985), em que o combate final entre Rocky e Ivan Drago (Dolph Lundgren)
servia como metáfora picareta do conflito político entre Estados Unidos e União
Soviética durante a Guerra Fria. Em “Rocky Balboa” (2006), Stallone retomou o
caráter mais humano e pé-no-chão para o personagem que o consagrou, com uma
trama que evoca dilemas típicos da obra clássica de 1976, além da abordagem
estética que dava uma atmosfera nostálgica e crepuscular para a saga do célebre
lutador. Dentro dessa perspectiva, “Creed” não só investe no prosseguimento desse
processo de recuperação da imagem de Rocky, como também oferece caminhos
renovadores e dá ao personagem um tamanho existencial notável.
O diretor Ryan Coogler consegue uma síntese artística precisa
– ao mesmo tempo que a dinâmica narrativa é arejada e modernizada no melhor
sentido da palavra (é de se reparar como a linguagem televisiva de canais
esportivos da atualidade é integrada com naturalidade dentro de um estilo clássico
de cinema), ele incorpora a mitologia e todos os clichês temáticos e formais típicos
da série, dando-lhes um sentido de coerência artística extraordinária. Até o já
aludido e malfadado “Rocky 4” acaba ganhando uma importância redentora. E
dentro da construção dramática proposta por Coogler, o aspecto mais sensacional
é a forma como o próprio Rocky Balboa é mostrado em cena, um misto de lenda
viva e de humanidade fragilizada, fazendo de Stallone uma presença fortemente
magnética em cada enquadramento que aparece. No mais, o que se tem em “Creed” é
uma demonstração de vigoroso virtuosismo estético que se adequa perfeitamente à
ambientação mitológica. O filme é uma sucessão de sequências antológicas: a
mistura de pauleira e sentimentalismo da abertura, o plano-sequência da primeira
luta efetivamente profissional do protagonista Adonis Creed (Michael P.
Jordan), a sucessão da montagem das cenas de treinamento de Creed tendo ao
fundo um Rocky doente e envelhecido, a corrida de Creed pelas ruas cercado por
motociclistas, a subida do combalido Rocky pela célebre escadaria do Museu de Arte
da Filadélfia.
Se Stallone já tinha conseguido no surpreendente “Rambo 4” (2008)
dar um final casca grossa e digno para a saga do personagem-título, agora
Coogler constrói em “Creed” um belo canto do cisne para a outra famosa criatura
do veterano ator.
Um comentário:
Vai ser surreal ver Sylvester Stallone ganhar um Oscar por um personagem que criou a 40 anos atrás
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