No livro de ensaios “Problema no paraíso”, o filósofo e
psicanalista polonês Slajov Zizek faz uma constatação de ácida lucidez ao
estabelecer uma relação entre os filmes “Lincoln” (2012) e “Abraham Lincoln –
Caçador de vampiros” (2012) – a de que tanto a pretensa séria obra de Steven
Spielberg quanto a tranqueira misto de horror e aventura escapista optam por artifícios
narrativos que procuram maquiar e simplificar complexos personagens e situações
reais, com o fim de oferecer para as atuais gerações uma versão saneada e
maniqueísta da História. A figura de Lincoln também é evocada de forma
constante em “Os oitos odiados” (2015), o mais recente trabalho de Quentin
Tarantino, e de certa forma com fins semelhantes. Uma carta falsa escrita pelo
referido presidente norte-americano acaba funcionando como uma espécie de
gatilho dramático para alguns dos momentos-chaves da trama. Há uma diferença
fundamental, entretanto, no uso desse recurso na obra de Tarantino: o cineasta
recorre ao expediente em questão justamente para reforçar o nebuloso e
sarcástico caráter moral da história que é contada, e não para reforçar
qualquer ideologia ou conduta específica. No particular universo do diretor, um
blefe acaba tendo até mais validade existencial que uma suposta verdade.
Se “Bastardos inglórios” (2009) e “Django livre” (2012) marcavam
uma espécie de virada artística na filmografia de Tarantino, em que as suas
concepções formais e temáticas autorais se adaptavam de forma admirável a
estruturas narrativas mais tradicionais, “Os oito odiados” é um filme que dá a
impressão de ser uma volta a um estilo de filmar de seus trabalhos iniciais,
com destaque para “Cães de aluguel” (1992) e “Pulp Fiction” (1994). Assim como
no seu primeiro filme, boa parte da ação se desenvolve em espaços físicos
reduzidos, gerando uma tensão que beira o claustrofóbico, o que é ainda mais
reforçado pelo fato que de um dos principais dilemas da trama é a tentativa de
descoberta de traidores dentro de um grupo limitado de personagens. Por outro
lado, há uma profusão de diálogos ultra lapidados, repletos de nuances irônicas
e referências culturais e históricas, que remetem à genial verborragia de “Pulp
Fiction” – é só reparar, por exemplo, que as conversas na diligência entre os
caçadores de recompensa Marquis Warren (Samuel L. Jackson) e John Ruth (Kurt
Russell) e o candidato a xerife Chris Mannix (Walton Goggins) sobre a Guerra
Civil tem uma dinâmica que remete aos antológicos bate-papos entre Vincent Vega
(John Travolta) e Jules (Samuel L. Jackson, de novo) sobre massagens eróticas e
lancherias. Mas o que temos aqui não é uma reciclagem barata, e sim um
refinamento extraordinário da característica linguagem cinematográfica de
Tarantino. Ele concilia de maneira precisa as variações no ritmo da narrativa,
que oscila de forma compacta entre as sequencias reflexivas repletas de
diálogos e mesmo silêncios, o suspense e as explosões frenéticas de violência
(provavelmente, é o mais gore dos filmes de Tarantino). Por mais que na
aparência se esteja assistindo a um faroeste, o que se tem de forma efetiva é
uma espécie de conto gótico marcado por uma estranha combinação entre requinte
e sordidez visuais e também por uma atmosfera oblíqua e melancólica.
As escolhas artísticas de Tarantino para “Os oito odiados”
marcam um novo ciclo para a sua filmografia. Pode parecer clichê, mas o que se
tem no filme é um passo para um outro tipo de amadurecimento. Não se fala aqui
daquele amadurecimento que implicaria numa forma de se mostrar mais acessível
ou abrandado para o gosto médio. É justamente o contrário – esse amadurecimento
exige do espectador um olhar mais amplo e cuidadoso para o filme, pois o que se
tem é uma abordagem de maior profundidade estética e textual. Nesse sentido, a
espetacular fotografia que praticamente exige do espectador que se assista à
obra no cinema para poder fruir o máximo possível de sua grandeza e detalhismo
imagéticos, as habituais sacadas geniais da trilha sonora (uma bem azeitada
combinação de temas incidentais originais e reaproveitados com canções) e o
elenco em estado de graça (com destaque para a caracterização demente de Jennifer
Jason Leigh) são outros elementos que confirmam esse patamar diferenciado no
qual Tarantino se embrenha com maestria. A arrasadora e perversa conclusão de “Os
oito odiados” é coerente e exemplar em relação a tudo isso que o diretor
almejou e atingiu nessa obra-prima– o ambíguo simbolismo da união dos dois
personagens sobreviventes, refugos da Guerra Civil entre o sul e o norte dos
Estados Unidos, para executar o inimigo comum, motivados pela referida carta
falsa de Lincoln, serve tanto para ilustrar o caráter amargo do filme perante a
condição humana quanto a sua ironia sardônica para com a história dos Estados
Unidos.
Um comentário:
Um filme que ando percebendo tem dividido bastante a opinião, mas acredito que, gradualmente, possa ser reavaliado melhor
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